A Revista de estudos poético-musicais:
REPOM, publicação eletrônica especialmente dedicada às relações entre música
e literatura, chega a seu quinto número, no início de 2009, como uma das respostas
possíveis à demanda por parte de estudiosos e interessados no aprofundamento
das questões relativas à interface a que se dedica.
Composta ao longo de 2008, a REPOM 5 responde,
ainda, a duas celebrações essenciais: o centenário de Cartola e os 50 anos
de bossa-nova. Os temas, entretanto,
não estão presentes apenas nos textos em que aparecem, mas reverberam por
toda a revista nos artigos bem talhados, onde a questão do entrelaçamento
entre o erudito e o popular, que perpassa estas comemorações, se encontra,
de certa forma, sempre presente como constante cenário para compositores e
reflexões: de Caetano aos trovadores medievais, de Leminski ao gesto independente.
Na abertura, as seções Entrevista
e Contraponto fazem ecoar as duas
celebrações centrais do ano de 2008, no campo da música brasileira: o centenário
de Cartola e os 50 anos da bossa-nova.
Cartola
e os guardiões da cultura nacional
é o título da entrevista que Roberto Azoubel da
M. Silveira, doutor em literatura brasileira pela PUC-RJ, realiza com um dos
diretores do documentário Cartola: música
para os olhos, exibido pela primeira vez no Rio,
em 2006, e que vai tratar não somente do filme, mas das questões mais complexas
que a figura de Cartola e sua obra podem suscitar, para além da comemoração
do centenário.
A seção Contraponto, criada
como forma de dar lugar a artigos de cunho mais jornalístico recebeu duas
contribuições.
No artigo Zicartola: a trajetória da casa de samba de Cartola e Dona Zica,
Maurício Barros de Castro, doutor em História social pela USP, conta a história
do espaço mantido por Cartola e sua esposa, D. Zica.
Mas a memória do reduto possibilita mais que o simples viés informativo, na
medida em que permite entrever as formas de configuração do samba como espaço
de trânsito entre diferentes classes e agentes sociais e, ainda, ponto de
encontro e articulação de trocas com personagens atuantes em outro gênero
musical, híbrido por definição, a bossa-nova:
Nara Leão e Carlos Lira freqüentavam o local.
Já em Indeterminável
Tom Jobim, Pollyana Niehues,
bacharel em Comunicação Social/Ielusc, se dedica a homenagear a obra e a singularidade de
um dos compositores mais instigantes da história da música popular. A abordagem
de Niehues permite ao leitor rastrear, sob o signo
da “complexidade”, as características musicais do compositor, principalmente
no que diz respeito ao entrelugar ocupado por sua
obra entre as tradições erudita e popular.
No artigo Hoje,
grafo no tempo: a produção cancional de Paulo Leminski,
Ricardo Santhiago, pesquisador do Núcleo de Estudos
em Música e Mídia (Musimid) da USP, investiga o
Paulo Leminski cancionista, em relação ao Leminski
poeta, bem mais conhecido e cultuado. Conta que este, depois de aprender violão,
fascinado com as possibilidades abertas pela canção popular, investe sua vontade
de experimentação nesse campo e acaba demonstrando, aí também, a força de
sua forma peculiar de enunciação – para além de uma eventual qualidade de
produção nessa forma já estabelecida.
A abordagem de André Rocha Haudenschild,
mestrando em Teoria Literária pela UFSC, no artigo A
escuta da Mata em "Borzeguim": uma trilha pela lírica jobiana
da natureza, recai sobre a relação bem conhecida de Tom com a natureza.
Ao evocar o Borzeguim, a botina, metonimicamente, Tom mergulha no universo
da fruição concreta da natureza, não apenas nas reticências da letra como
também na tensão harmônica que preludia o ritmo
acelerado de um baião que norteia a entrada na mata. Ao perceber essa tensão,
Haudenschild destaca também a artificialidade de
composição, ou a racionalidade técnica de Tom, que contrasta com a própria
simplicidade que se espera, tanto da imagem em torno da natureza quanto do
caráter popular e nacional da música em questão.
Em O vazio e a literatura na
crítica da canção, Lucia de Oliveira Almeida, doutora em Teoria Literária
pela UFSC, sugere, como desafio a ser sempre enfrentado,
o olhar do crítico ao presente, um olhar que, geralmente, na falta de outras
âncoras, costuma recorrer àquelas fornecidas por costumeiros valores indiscutíveis
do passado. No início dos anos 90, por exemplo, ao discutir a música popular
brasileira de então (leia-se Marisa Monte), em sua franca dependência em relação
aos valores do mercado fonográfico, críticos como Luiz Tatit
e Júlio Medaglia (este se inserindo na separação adorniana entre alto e baixo) demonstravam olhares que se
turvavam nostalgicamente diante de um presente movediço e buscavam, mais uma
vez, manifestações canonizadas recorrentes.
A pesquisa da relação entre palavra e música chega ao nível da materialidade
mesma de ambas no artigo Caetano
interpreta Rosa, de Fabrícia Walace Rodrigues, professora
do Instituto Superior Paulo Martins, que analisa a sofisticação da releitura
que Caetano faz de Guimarães Rosa. A partir do jogo de palavras e de estruturas
que em “A terceira margem do rio” ao mesmo tempo “velam e revelam” leituras
diferentes, a autora demonstra que Caetano re(des)vela, de fato, o jogo de várias leituras em sua canção
correspondente – além de propor o próprio canto, na língua brasileira, como
capaz de desocultar o mistério da palavra, já que,
segundo consta no Caetano que relê Heidegger, só é possível filosofar em alemão.
Em mais um artigo sobre Caetano Veloso, intitulado Três
décadas velosianas, Elaine Aparecida Lima, doutoranda em
Letras pela UEL, analisa relações que o compositor constrói, via pastiche,
entre a historiografia e a música brasileiras, utilizando para isso conceitos
de nação, identidade, mídia e mercado para defender o hibridismo, a fragmentação
e a visualidade. E o faz em relação a um amplo conjunto de canções do autor,
produzidas ao longo de três décadas.
A partir de Nietzsche e Foucault, e da hipótese de que o desejo de
exercer o poder estaria na origem tanto da poesia e da música quanto das formas
de conhecimento, José D’Assunção Barros, professor titular do Conservatório
Brasileiro de Música, no Rio, apresenta no artigo A
poética musical dos trovadores medievais uma curiosa releitura do
trovadorismo ibérico do século 13. Através da análise de trovas, ele mostra,
por exemplo, uma produtiva relação entre a oposição entre desafiantes e a
tensão política entre a centralização e manutenção da tendência feudalizante.
No artigo Eu sou dono do meu nariz,
Arlindo Rodrigues da Silva, bacharel em Letras pela UFSC, mostra alternativas,
no âmbito da Internet, para a produção musical independente, não só no Brasil,
é claro. Para isso, retoma o conceito de indústria cultural em Adorno/Horkheimer
e apresenta uma revisão historiográfica do problema, na qual inscreve a “atitude
independente” como enfrentamento estético e político. Com isso, ele expõe
as potencialidades do caráter mesmo de rede do ambiente virtual, inclusive
no que se refere à dinâmica histórica entre estética e anestética
em Susan Bück-Morss.
Para sua realização efetiva, a Repom n.
5, contou, mais uma vez, com o trabalho da webdesigner Carolina
Vidal, responsável pela identidade visual da Revista, cuja continuidade
só foi possível graças ao apoio do selo Beluga
records, de Florianópolis e do Núcleo
de Estudos Poético-Musicais, NEPOM.