Olha eu sou um
garoto de Ipanema, criado na beira da praia.
Vi coisas lindas
que a civilização destruiu...
Tom Jobim (apud SOUZA,
1995, p.27).
Prólogo com os pés na terra
Ao nos encharcarmos das águas doces e salgadas das canções de Tom Jobim,
sempre poderemos auscultar uma harmonia orgânica capaz de devolver ao espírito
humano a força imanente da paisagem natural, como nos lembra o poeta caminhante
Henry Thoreau:
É inútil sonhar
com uma rusticidade distante de nós. Isso não existe. O que inspira tal
sonho é o charco que há em nosso cérebro e em nossas entranhas, o vigor
primitivo da natureza existente em nós (apud
SCHAMA, 1996, p.761).
Poderemos contemplar este “vigor primitivo da natureza” como a materialização
de um sentimento que irá se desvelar na lírica das canções jobinianas,
seja ao encontrarmos em suas letras elementos passíveis de serem considerados
como a atualização revisitada de um locus amoenus, ou como a busca da “harmonia ativa”
[1]
da paisagem, através de um sentimento de comunhão com
a própria natureza fundamentalmente romântico oriundo da cisão existencial
entre o homem e a natureza (desde Goethe, Wordsworth
e Schiller, entre outros poetas).
[2]
O fato de que uma boa parte da produção poética de Tom Jobim tenha a natureza
como objeto central de seu lirismo (com seus elementos marinhos, celestes,
e telúricos, principalmente, os da Mata Atlântica), ressalta a importância
de pensarmos na delicada construção do olhar jobiniano,
enquanto um eu-lírico profundamente sintonizado
com a potência da paisagem tropical. Seja como fonte de sua inspiração,
ou como o cenário de uma utopia, como ele ainda nos diz:
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Essas músicas que eu fiz, Dindi,
Borzeguim, Águas de março, e tantas outras, são todas inspiradas na
floresta atlântica. O visual é bonito, inspira pra fazer música. (...)
Na Mata Atlântica a vida é |
![]() |
Eu teria sido provavelmente
um literato, se não tivesse perdido meu pai. Eu o teria seguido. (...)
Esse negócio de poesia acho que nasce um pouco com a gente. A gente
é poeta ou não. É um pouco uma herança, uma maneira de ver o mundo.
Descobre-se Cassiano Ricardo, Alceu Wamosy,
Manuel Bandeira, Gonçalves Dias, Bilac, Augusto dos Anjos (apud
SOUZA, 1995, p. 25). |
Eis que aparece um borzeguim
![]() |
A palavra “borzeguim” significa, conforme o Dicionário Aurélio, “botina cujo cano é fechado com cordões” (palavra derivada do neerlandês broseken) [3] , e essas “fraldas” aqui deixadas “ao vento”, devem ser entendidas como as margens da encosta de uma montanha (como, por exemplo, a expressão “fraldas do mar”, usada para representar a imagem da praia). Ou seja, estamos aqui imersos no universo da fruição concreta da natureza, cujo fenômeno natural (o “vento”) deve continuar soprando as margens da mata para sempre. Ao pedir para que este suposto caçador saia da encosta da mata, o poeta transgride a fronteira entre o já conhecido e o desconhecido, e inicia um ritual pagão (literalmente, “aquele que mora no pago, no campo”), através de uma iniciação capaz de se transformar em um manifesto a favor da natureza. Ao usar a expressão “E vem dançar”, é interessante notarmos que o poeta convida o caçador para esta festa corpóreo-sensorial a partir do ponto de vista de quem já estava dentro da mata.
Na estrofe seguinte, o primeiro verso “Hoje é sexta-feira de manhã, hoje é sexta-feira” revela-nos a instauração
de uma atmosfera civilizada (datada pelos dias da semana), pois ainda não
penetramos no verdadeiro território do reino animal ao qual a canção pretende
nos conduzir. Todavia, esse é um aviso importante, pois segundo a crença
popular cristã, “não se deve caçar nas sextas-feiras” por ser o dia da morte
de Cristo, cujo interdito também comporta o consumo de carne-vermelha pelos
homens.
Os três versos seguintes têm a força de reiterar o pedido de consideração
à natureza: “Deixa o mato crescer
em paz / Deixa o mato crescer / Deixa o mato”. Entretanto, ao irem se apagando
concretamente as últimas palavras de cada um desses versos (como um eco
“nonada” da imensidão da paisagem), vamos entrando
para o terreno de uma materialidade incomensurável; ou seria esse eco no
vazio da paisagem um primeiro sintoma da impotência do sujeito lírico frente
à ameaça do bicho-homem?
Este recurso formal será repetido por várias vezes, como um modelo estético
da construção da canção, como uma voz em cânone que, simultaneamente, ecoa
e persegue, ad libitum,
as palavras proferidas, deixando os finais de todas as estrofes com
uma expressiva tensão dramática bem concretista, através da busca de uma
“identificação isomórfica” entre fundo e forma
[4]
.
Em seguida, a canção anuncia “Não quero fogo, quero água”, denunciando a
ação humana do “fogo” (o marco de fundação de nossa cultura, aquilo que
roubamos mitologicamente dos deuses e dos animais), como a ameaça eminentemente
destrutiva da natureza, e instaurando um antagonismo elemental: “fogo” versus
“água”. Um viés antropológico que podemos intuir a partir desta estrofe,
é a tensão que começa a se construir na canção entre o “domínio do cru”,
da natureza selvagem, versus o
“domínio do cozido”, do mundo civilizado (conforme nos ensina o olhar científico
de Lévi-Strauss, em O cru e o cozido)
[5]
, como veremos mais adiante, na estrofe 11, “Em nome de
Deus, é fruta do mato”. Afinal, o sujeito lírico pretende olhar nu e cruamente para a paisagem
tropical.
Ao proferir o verso “Hoje é sexta-feira da paixão”, o poeta explicita a importância desta
data cristã, no verso seguinte, “Sexta-feira
santa”, em referência ao celebrado
dia da celebração “do sangue e do corpo” de Cristo cuja “paixão” representa
todo o sofrimento de seu calvário, e cujos versos podem ser entendidos como
a proposta de um sentimento também de piedade e de respeito aos seres vivos
da paisagem da canção. Por isso, o sujeito lírico vai mais além, dizendo
que “Todo dia é de perdão / Todo dia é dia santo / Todo santo dia”. Ou seja,
não é somente na Sexta-feira Santa que não se deve matar os animais (nos
outros dias também não), pois há algo na natureza selvagem que é da esfera
do sagrado, conforme a inversão semântica de “dia santo” para “santo dia”
ajuda a ampliar esta sagração a todos os seres, inclusive aos homens.
“Ah, vem João e vem Maria / Todo dia é dia de folia” é o primeiro sinal
da dessacralização do universo católico para o reino da fantasia (lembremos
a história infantil de “João e Maria”),
assim como, “João” e “Maria” são nomes bem populares e familiares (e não
por acaso, são também os nomes dos filhos mais novos de Tom Jobim). A “folia”
aqui denota no “dia”: o território dionisíaco que começa a querer se instaurar
na canção.
A sexta estrofe “O chão no chão / O pé na pedra / O pé no céu” mostra-nos
que o antagonismo inicial do “fogo” versus “água”, deve se desdobrar em outros elementos naturais: a terra
(do “chão no chão”), a “pedra’’, e o “céu”. O verso “O chão no chão”
é de uma materialidade imanente que evoca em linha reta os versos da
canção jobiniana “Águas de março”
(como, por exemplo, em seus versos iniciais: “É pau, é pedra”;
assim como, em “É o vento
ventando”, ou em, “É a chuva chovendo”).
Com um “pé na pedra”, e outro “no céu”, entre a imanência e a transcendência,
o sentimento do eu-lírico ganha a força de um
“gigante-sem-botas”, pois sua mão parece agora poder tocar
desde um mínimo “tatu-bola” até as asas de um “gavião-ão”.
A estrofe seguinte, “Deixa a capivara atravessar / Deixa a anta cruzar o
ribeirão / Deixa o índio vivo no sertão”, já começa enumerando as ações
que devem ser permitidas aos seres da mata para que continuem a viver em
paz, revelando o onipresente desejo do sujeito lírico em harmonizar o mundo.
O verso “Deixa o índio vivo no sertão” instaura a presença de um outro ser chamado
para a paisagem da canção, além do caçador de borzeguim: o “índio” enquanto
a alegoria da comunhão plena entre homem e a natureza, é literalmente o
“bom selvagem” para Jobim, pois não devemos esquecer que o poeta é pautado
por um lirismo essencialmente romântico. Uma outra leitura deste verso seria
pensarmos no índio que deve permanecer “vivo no sertão” que há dentro nós,
ou seja, a metáfora da sabedoria ancestral ameríndia que ainda pode pulsar
em nossos corpos.
Em “Escuta o mato crescendo em
paz / Escuta o mato crescendo / Escuta o mato / Escuta”, a estrofe dota-se de uma sensorialidade demesurada, pois
o poeta abre nossos ouvidos para a escuta do “mato crescendo”, convidando-nos
para uma redobrada atenção (e concentração) ao universo do reino vegetal.
Ao diminuírem de tamanho, os versos também vão se concentrando, como se
fossem abdicando da capacidade de nomear aquilo que já não pertence ao mundo
das palavras – ao mundo humano – para projetarem nossos ouvidos ao minimalismo
musical das plantas. Deste modo, ele nos revela uma sabedoria deliciosamente
corpórea, pois sua apreensão lírica tem agora uma atenção capaz de usufruir
da natureza em seus mínimos detalhes. Afinal, seu ouvido musical é que conduz
seu olhar poético. Ou não seria sua escuta lírica a responsável pela amplitude
de seu olhar sonoro?
Na nona estrofe, os versos “Escuta o vento cantando no arvoredo / Passarim
passarão no passaredo” seguem o mesmo diapasão das estrofes 8 e 7, respectivamente.
Sendo que, neste último verso, a gradação da materialidade dos pássaros
(de “passarim”, que é uma corruptela de ‘passarinho”
no diminutivo, até “passaredo”, que é o substantivo coletivo de “pássaro”),
faz um trocadilho entre o sintagma aumentativo “passarão”, e o verbo “passar”
no Futuro do Indicativo, denotando o sentimento de esperança do eu-lírico na continuidade da vida selvagem.
Talvez seja pertinente observarmos que, entre os anos de 1973 e 1975, Tom
Jobim gravou, respectivamente, os álbuns Matita Perê (Philips) e Urubu (Warner), cujos títulos
dotados de nomes de pássaros brasileiros podem expressar a intenção do poeta
em exaltar a sabedoria ancestral do reino das aves. No primeiro caso, o
“matita-perê” (popularmente chamado de “sem-fim”) é o pássaro
cujo canto é considerado popularmente de mau agouro, e emite o intervalo
musical de uma segunda maior, usado por Jobim para aludi-lo musicalmente,
assim como, e principalmente por isso, é a personificação do “saci-pererê” (o nosso mitológico protetor da natureza). O
canto do Tapera naevia,
o “sem-fim”, pode ser considerado uma fértil obsessão ornitológica do olhar-ouvido
de Tom Jobim.
[6]
|
Urubu (1975, Warner) |
Em seguida, um olhar híbrido de carinho e repulsa nos projeta aos versos
“Deixa a índia criar seu curumim / Vá embora daqui coisa ruim / Some logo
/ Vá embora”, que pela primeira vez na canção ordena ao suposto caçador
para sair desse território selvagem, uma terra incógnita da qual nunca realmente
fez parte.
Ao anunciar “Em nome de Deus, é fruta do mato”, está instaurado o exorcismo
de todo o mal que a presença deste bicho-homem emana na paisagem, pois ao
exaltar o “nome de Deus”, ouvimos o resquício de uma natureza ainda divinizada.
Uma presença ambígua da natureza transcendente pairando sobre a concretude
imanente do verso, “é fruta no mato”, ecoando a materialidade dos primeiros
versos de “Águas de março” (“É pau, é pedra...”). A simbologia alegórica
do verso “É fruta do mato”, conforme já comentada, pode ser observada como
a exaltação do “domínio do cru” sobre o mundo do bicho-homem, além disso,
como uma alusão à fruta adâmica do paraíso bíblico, cujo ponto de vista
do eu-lírico parece estar debaixo de uma outra árvore da sabedoria.
Então, o poeta entoa a estrofe inicial mais uma vez, como se voltássemos
ao entre-lugar da fronteira delimitada pelas “fraldas”
da mata, cuja próxima estrofe (13) traz uma nova gradação através das imagens
dos pássaros: “jacu”, “iurassu” e “gavião grande”,
semelhante ao segundo verso da estrofe 9 (o “jacu” é uma ave galiforme de
médio porte, e “iurassu” é uma palavra tupi que
significa: pássaro, “iura”, grande, “assu”). Notável olharmos para o fato deste “jacu” já estar
“velho na fruteira” e de que há um “lagarto teiú na soleira”, o que denota
um âmbito doméstico (através das palavras “fruteira” e “soleira”), como
forma de remissão ao mundo dos homens acontecendo na consciência do poeta:
uma espécie de memória da natureza civilizada, dialogando com a natureza
selvagem. Enquanto isso, dois pássaros imensos estão resistindo a todas
as possíveis fronteiras impostas por este mundo do bicho-homem: “Uirassu
foi rever a cordilheira / Gavião grande é bicho sem fronteira”.
A estrofe seguinte, “Cutucurim / Gavião-zão /
Gavião-ão” irá nos remeter ao universo sonoro
de Guimarães Rosa, sendo que agora, ao citar a ave “cutucurim” (que é o
nome do grande “gavião de penacho”, em tupi), o poeta logo nos dá a tradução
do termo brasílico, nos versos: “Gavião-zão / Gavião-ão”. Aparece então, na canção, um ser “guardião”,
por excelência, do “domínio do cru” na mata: “Caapora do mato é capitão
/ Ele é dono da mata e do sertão / Caapora do mato é guardião / É vigia
da mata e do sertão/ Yauaretê, Jaguaretê”. Em franca oposição ao bicho-homem de “borzeguim”,
este é um menino-índio com o “pé no chão” e “dono da mata”
[7]
.
Outra vez, entramos no universo mitológico quando o eu-lírico nomeia a onça verdadeira, o “Yauaretê”
(em tupi), que também é o nome de um conto de Guimarães Rosa: “Meu tio o
Iauaretê”. Neste conto, o narrador-protagonista é um ser meio
homem, meio onça, que narra sua própria história: o delírio de uma consciência
ininterruptamente dilacerada entre querer ser um bicho feroz (a “onça verdadeira”),
e não poder se livrar de sua condição humana
[8]
. O mesmo lugar de onde o poeta entoa sua canção: o lugar
entre os domínios da mata selvagem e os da civilização, ou entre a “água”
e o “fogo”.
A estrofe 17 inicia-se com os versos “Deixa a onça viva na floresta / Deixa
o peixe n'água que é uma festa”, que compactuam com o sentimento de “harmonia orgânica” da natureza,
conforme outros poetas também o pressentiram
[9]
. Assim como, servem para prenunciar a reiteração paralelística
dos versos “Deixa o índio vivo / Deixa o índio / Deixa, deixa”, que vão finalizando
a estrofe enfaticamente conforme a formalização de uma proposta estética
da canção: dar maior expressividade e tensão dramática ao seu próprio lirismo.
Os versos finais, “Dizem que o sertão vai virar mar / Diz que o mar vai
virar sertão”, são também reiterados
para enfatizar a mensagem final, “Deixa o índio / Deixa, deixa”, fazendo assim ecoar em nossa imaginação
o adágio popular nordestino atribuído a Antônio Conselheiro (“O sertão vai
virar mar...”). Sendo essa uma profecia sertaneja que paira eternamente
na paisagem dos sertões profundos do nosso país, através das vozes de cantadores,
repentistas e poetas.

Este adágio tem uma total correspondência com o sentido da própria canção.
É uma “promessa de vida” em nossos olhos, ouvidos e corações, reverberando
o sentimento indignado de uma “canção de protesto” não-convencional. O alerta
de uma sabedoria sensorial à assustadora capacidade destrutiva e predatória
daquela “eterna ingratidão”, como já nos disse Drummond sobre o bicho-homem.
[10]
Afinal, o poeta-pássaro aparenta pertencer mais ao reino dos animais do
que ao mundo dos homens. Como disse uma vez, com uma certa dose de humor,
Chico Buarque, sobre a natureza humana de seu amigo e parceiro musical:
Acho que esta
ligação dele com os bichos já existia desde o começo. Já estava em Praias desertas. A natureza é muito presente na música do Tom. Esse
Tom do mato, eu não conheci. Só de ouvir falar. Eu nunca viajei com o Tom.
Nosso contato era carioca. Ele passou uns dias comigo em Roma e eu sentia
o Tom um peixe fora da água ali. Ele estranhava a cerveja, estranhava tudo,
queria voltar ao Leblon. Era seguramente um animal carioca (apud SOUZA, 1995. p. 62).
Acorde final diminuto
Se nos debruçarmos na sonoridade instaurada pela relação entre a melodia
e a harmonia de Borzeguim, iremos
notar que há uma tensão harmônica instaurada desde o início da canção, cuja
estrofe introdutória “Borzeguim, deixa as fraldas vento / E vem dançar,
e vem dançar”, funciona como um prelúdio bem expressivo para a chegada do
ritmo acelerado (um baião que norteia a travessia da mata), e para o recorte
sincopado de uma melodia descendente que vai se repetindo e se encurtando,
em paralelismo aos versos da canção que também vão se reduzindo e se concentrando
sobre acordes dissonantes (diminutos e menores com sétimas e nonas).
Este recurso introdutório, de uma primeira estrofe lenta seguida de um ritmo
que se instaura na canção, é recorrente em diversas composições de Tom Jobim,
como, por exemplo, em “Matita Perê”
(de 1972, em parceria com Paulo César Pinheiro) e em “Gabriela” (de 1986);
uma estratégia de mudança de andamento que serve para potencializar os efeitos
de tematização dos versos nas canções, pois conforme Tatit:
Os recursos
de aceleração tendem a concentrar os elementos musicais, caracterizando-os
como unidades motívicas que mais involuem do que
evoluem. A velocidade acentuada reduz a importância dos movimentos de passagem,
como se a melodia não precisasse ir a nenhum lugar, ao mesmo tempo que define
claramente a identidade dos temas criados para uma audição em bloco.
A reiteração, sempre presente nas melodias aceleradas, figura na
verdade como um dispositivo de contenção de velocidade, pois sublinha que,
embora os temas se sucedam, apressados, há uma forma essencial que permanece
assegurando o elo entre eles (TATIT, 2004, p. 59).
E esta “forma essencial” acaba configurando a reiteração de um mesmo fraseado
descendente, que dará aos versos da canção toda um sentido enfático e que
irá determinar “uma certa gramática” para a condução de sua melodia
[11]
.
Sobre uma harmonia em tonalidade menor (Sol menor com sétima, e com sexta no baixo), ao proferir “borzeguim”,
a melodia passeia de maneira descendente pela tríade maior de Si bemol,
para depois projetar uma tensão harmônica sobre acordes invertidos e diminutos:
“E vem dançar, e vem dançar”, embora
esta tensão se resolva com a chegada do acorde sub-dominante (Dó menor com
sétima), na passagem da primeira para a segunda estrofe.
A modulação harmônica que acontece a partir da oitava estrofe, de meio tom
abaixo da tônica inicial, seguida de outra modulação de meio tom descendente
(na nona e na décima estrofe), provocam um efeito de agravamento na atmosfera
da canção. Ao mudar a tonalidade para um semitom abaixo, com os versos “Escuta
o mato crescendo em paz / Escuta o mato / Escuta”, a composição ganha um
clima mais introspectivo do que na segunda estrofe, que irá ser ainda mais
dimensionado pela segunda modulação cromática para a tonalidade de Fá menor
(nas estrofes 9 e 10).
Podemos, então, ouvir a décima primeira estrofe como uma senha de passagem
para se atingir o clímax da tensão onipresente entre a melodia e a harmonia
(pois a nota final de si bemol entra em conflito com o acorde de Si menor),
e para se completar o ciclo vital da canção (a partir desta estrofe, temos
uma volta ao convite iniciático da primeira estrofe).
E a canção novamente vai nos levando por uma travessia entre luzes e sombras
na imensidão da mata, terminando com a reiteração de um lamento no ar: “Deixa
o índio, Deixa, Deixa...”; enquanto o acorde dissonante de Dó diminuto
instaura a dúvida e o caos, onipresentes na paisagem ameaçada pelos borzeguins
que não sabem mais dançar.
A canção Borzeguim é um solo
fértil para entendermos a complexa construção da paisagem nas canções de
Tom Jobim. Se no início da canção há o convite para a celebração do desfrute
imanente da mata, como se estivéssemos aparentemente no locus amoenus da Arcádia primitiva, logo
em seguida estaremos imersos no território de uma natureza divinizada (conforme
o verso: Hoje é sexta feira da paixão);
para depois vivenciarmos o panteísmo cósmico deste terreno movediço, em
nome de uma terceira margem da natureza: a Mata Atlântica em sua concretude
imensurável e absoluta.
Como se o olhar do poeta, ao completar um ciclo vital, se desumanizasse,
perdendo o compasso de sua lógica sentimental, para se aproximar com os
pés descalços do reino animal, e nos convidar para um devir: um “vir a ser”
lírico em plena comunhão com a paisagem natural.
Anexo
BORZEGUIM (letra e música de Tom Jobim / 1981)
Borzeguim, deixa as fraldas ao vento estrofe
(1)
E vem dançar, e vem dançar
Hoje é sexta-feira de manhã, hoje é sexta-feira estrofe (2)
Deixa o mato crescer
Deixa
Deixa o mato
Não quero fogo, quero água
estrofe (3)
(deixa o mato crescer em paz)
Não quero fogo, quero água
(deixa o mato crescer)
Hoje é sexta-feira da paixão, sexta-feira santa estrofe (4)
Todo dia é dia de perdão
Todo dia é dia santo
Todo santo dia
Ah, e vem João e vem Maria
estrofe (5)
Todo dia é dia de folia
Ah, e vem João e vem Maria
Todo dia é dia
O chão no chão
estrofe (6)
O pé na pedra
O pé no céu
Deixa o tatu-bola no lugar
estrofe (7)
Deixa a capivara atravessar
Deixa a anta cruzar o ribeirão
Deixa o índio vivo no sertão
Deixa o índio vivo nu
Deixa o índio vivo
Deixa o índio
Deixa, deixa
Escuta o mato crescendo em paz
estrofe (8)
Escuta o mato crescendo
Escuta o mato
Escuta
Escuta o vento cantando no arvoredo estrofe
(9)
Passarim passarão no passaredo
Deixa a índia criar seu curumim
estrofe (10)
Vá embora daqui coisa ruim
Some logo
Vá embora
Em nome de Deus, é fruta do mato
estrofe (11)
Borzeguim deixa as fraldas ao vento
estrofe (12)
E vem dançar, e vem dançar
O jacú já tá
velho na fruteira
estrofe (13)
O lagarto teiú tá na soleira
Uirassu foi rever a cordilheira
Gavião grande é bicho sem fronteira
Cutucurim
estrofe (14)
Gavião-zão
Gavião-ão
Caapora do mato é capitão
estrofe (16)
Ele é dono da mata e do sertão
Caapora do mato é guardião
É vigia da mata e do sertão
Yauaretê, Jaguaretê
Deixa a onça viva na floresta
estrofe (17)
Deixa o peixe n'água que é uma festa
Deixa o índio vivo
Deixa o índio
Deixa, deixa
Dizem que o sertão vai virar mar
estrofe (18)
Diz que o mar vai virar sertão
Deixa o índio
Dizem que o mar vai virar sertão
Diz que o sertão vai virar mar
Deixa o índio
Deixa, deixa
Bibliografia: