Olha eu sou um garoto de Ipanema, criado na beira da praia.

Vi coisas lindas que a civilização destruiu...

Tom Jobim (apud SOUZA, 1995, p.27).

 

Prólogo com os pés na terra

 O presente artigo pretende apontar algumas considerações sobre o sentimento lírico da natureza presente na canção Borzeguim de Tom Jobim, considerando a fecunda relação entre as palavras poéticas e a construção da paisagem tropical.

Ao nos encharcarmos das águas doces e salgadas das canções de Tom Jobim, sempre poderemos auscultar uma harmonia orgânica capaz de devolver ao espírito humano a força imanente da paisagem natural, como nos lembra o poeta caminhante Henry Thoreau:

É inútil sonhar com uma rusticidade distante de nós. Isso não existe. O que inspira tal sonho é o charco que há em nosso cérebro e em nossas entranhas, o vigor primitivo da natureza existente em nós (apud SCHAMA, 1996, p.761).

Poderemos contemplar este “vigor primitivo da natureza” como a materialização de um sentimento que irá se desvelar na lírica das canções jobinianas, seja ao encontrarmos em suas letras elementos passíveis de serem considerados como a atualização revisitada de um locus amoenus, ou como a busca da “harmonia ativa” [1] da paisagem, através de um sentimento de comunhão com a própria natureza  fundamentalmente romântico oriundo da cisão existencial entre o homem e a natureza (desde Goethe, Wordsworth e Schiller, entre outros poetas). [2]

O fato de que uma boa parte da produção poética de Tom Jobim tenha a natureza como objeto central de seu lirismo (com seus elementos marinhos, celestes, e telúricos, principalmente, os da Mata Atlântica), ressalta a importância de pensarmos na delicada construção do olhar jobiniano, enquanto um eu-lírico profundamente sintonizado com a potência da paisagem tropical. Seja como fonte de sua inspiração, ou como o cenário de uma utopia, como ele ainda nos diz:

Essas músicas que eu fiz, Dindi, Borzeguim, Águas de março, e tantas outras, são todas inspiradas na floresta atlântica. O visual é bonito, inspira pra fazer música. (...) Na Mata Atlântica a vida é em profusão. Aqui é o Pindorama, a terra das palmeiras. É aquele livro do Sérgio Buarque de Hollanda, pai do nosso Chico, chamado Visão do Paraíso. Mas é bonita a mata, muito bonita! Por mais que a gente ande por aí, está sempre abismado com a exuberância de virtude, com a riqueza. Como diz Drummond, ‘é uma doação ilimitada a uma eterna ingratidão’ (JOBIM, 1995, p.21-23).

Como vemos, Tom Jobim foi tocado por uma “exuberância de virtude” da paisagem tropical capaz de dar-lhe a harmonia e o compasso de sua produção poético-musical. E, ao beber dessa fonte natural, pôde dar força e sentido às suas palavras materializadas em canção. Na medida que ele carrega um princípio solidário e utópico, que emana de uma sabedoria corpóreo-sensorial da paisagem tropical materializado nas sublimes harmonias de suas canções, podemos pensar em uma espécie de ethos jobiniano. Todavia, importa constatarmos que estamos diante de um compositor que aparenta ter uma consciência profunda de sua paidéia poética, como ele mesmo nos diz:

Eu teria sido provavelmente um literato, se não tivesse perdido meu pai. Eu o teria seguido. (...) Esse negócio de poesia acho que nasce um pouco com a gente. A gente é poeta ou não. É um pouco uma herança, uma maneira de ver o mundo. Descobre-se Cassiano Ricardo, Alceu Wamosy, Manuel Bandeira, Gonçalves Dias, Bilac, Augusto dos Anjos (apud SOUZA, 1995, p. 25).

Eis que aparece um borzeguim

Ao evocar “Borzeguim, deixa as fraldas ao vento / E vem dançar”, o poeta nos convida ao incomensurável da Mata Atlântica, cujo vocativo “borzeguim” deve ser entendido como uma metonímia para designar o próprio “caçador” que está sendo avisado para sair de seu próprio caminho, e para “vir dançar” o ritual instaurado pela canção.

A palavra “borzeguim” significa, conforme o Dicionário Aurélio, “botina cujo cano é fechado com cordões” (palavra derivada do neerlandês broseken) [3] , e essas “fraldas” aqui deixadas “ao vento”, devem ser entendidas como as margens da encosta de uma montanha (como, por exemplo, a expressão “fraldas do mar”, usada para representar a imagem da praia). Ou seja, estamos aqui imersos no universo da fruição concreta da natureza, cujo fenômeno natural (o “vento”) deve continuar soprando as margens da mata para sempre. Ao pedir para que este suposto caçador saia da encosta da mata, o poeta transgride a fronteira entre o já conhecido e o desconhecido, e inicia um ritual pagão (literalmente, “aquele que mora no pago, no campo”), através de uma iniciação capaz de se transformar em um manifesto a favor da natureza. Ao usar a expressão “E vem dançar”, é interessante notarmos que o poeta convida o caçador para esta festa corpóreo-sensorial a partir do ponto de vista de quem já estava dentro da mata.

Na estrofe seguinte, o primeiro verso “Hoje é sexta-feira de manhã, hoje é sexta-feira” revela-nos a instauração de uma atmosfera civilizada (datada pelos dias da semana), pois ainda não penetramos no verdadeiro território do reino animal ao qual a canção pretende nos conduzir. Todavia, esse é um aviso importante, pois segundo a crença popular cristã, “não se deve caçar nas sextas-feiras” por ser o dia da morte de Cristo, cujo interdito também comporta o consumo de carne-vermelha pelos homens.

Os três versos seguintes têm a força de reiterar o pedido de consideração à natureza: “Deixa o mato crescer em paz / Deixa o mato crescer / Deixa o mato”. Entretanto, ao irem se apagando concretamente as últimas palavras de cada um desses versos (como um eco “nonada” da imensidão da paisagem), vamos entrando para o terreno de uma materialidade incomensurável; ou seria esse eco no vazio da paisagem um primeiro sintoma da impotência do sujeito lírico frente à ameaça do bicho-homem?

Este recurso formal será repetido por várias vezes, como um modelo estético da construção da canção, como uma voz em cânone que, simultaneamente, ecoa e persegue, ad libitum, as palavras proferidas, deixando os finais de todas as estrofes com uma expressiva tensão dramática bem concretista, através da busca de uma “identificação isomórfica” entre fundo e forma [4] .

Em seguida, a canção anuncia “Não quero fogo, quero água”, denunciando a ação humana do “fogo” (o marco de fundação de nossa cultura, aquilo que roubamos mitologicamente dos deuses e dos animais), como a ameaça eminentemente destrutiva da natureza, e instaurando um antagonismo elemental: “fogo” versus “água”. Um viés antropológico que podemos intuir a partir desta estrofe, é a tensão que começa a se construir na canção entre o “domínio do cru”, da natureza selvagem, versus o “domínio do cozido”, do mundo civilizado (conforme nos ensina o olhar científico de Lévi-Strauss, em O cru e o cozido) [5] , como veremos mais adiante, na estrofe 11, “Em nome de Deus, é fruta do mato”. Afinal, o sujeito lírico pretende olhar nu e cruamente para a paisagem tropical.

Ao proferir o verso “Hoje é sexta-feira da paixão”, o poeta explicita a importância desta data cristã, no verso seguinte, “Sexta-feira santa”, em referência ao celebrado dia da celebração “do sangue e do corpo” de Cristo cuja “paixão” representa todo o sofrimento de seu calvário, e cujos versos podem ser entendidos como a proposta de um sentimento também de piedade e de respeito aos seres vivos da paisagem da canção. Por isso, o sujeito lírico vai mais além, dizendo que “Todo dia é de perdão / Todo dia é dia santo / Todo santo dia”. Ou seja, não é somente na Sexta-feira Santa que não se deve matar os animais (nos outros dias também não), pois há algo na natureza selvagem que é da esfera do sagrado, conforme a inversão semântica de “dia santo” para “santo dia” ajuda a ampliar esta sagração a todos os seres, inclusive aos homens.

“Ah, vem João e vem Maria / Todo dia é dia de folia” é o primeiro sinal da dessacralização do universo católico para o reino da fantasia (lembremos a história infantil de “João e Maria”), assim como, “João” e “Maria” são nomes bem populares e familiares (e não por acaso, são também os nomes dos filhos mais novos de Tom Jobim). A “folia” aqui denota no “dia”: o território dionisíaco que começa a querer se instaurar na canção.

A sexta estrofe “O chão no chão / O pé na pedra / O pé no céu” mostra-nos que o antagonismo inicial do “fogo” versus “água”, deve se desdobrar em outros elementos naturais: a terra (do “chão no chão”), a “pedra’’, e o “céu”. O verso “O chão no chão” é de uma materialidade imanente que evoca em linha reta os versos da canção jobiniana “Águas de março” (como, por exemplo, em seus versos iniciais: “É pau, é pedra”; assim como, em “É o vento ventando”, ou em, “É a chuva chovendo”). Com um “pé na pedra”, e outro “no céu”, entre a imanência e a transcendência, o sentimento do eu-lírico ganha a força de um “gigante-sem-botas”, pois sua mão parece agora poder tocar desde um mínimo “tatu-bola” até as asas de um “gavião-ão”.

A estrofe seguinte, “Deixa a capivara atravessar / Deixa a anta cruzar o ribeirão / Deixa o índio vivo no sertão”, já começa enumerando as ações que devem ser permitidas aos seres da mata para que continuem a viver em paz, revelando o onipresente desejo do sujeito lírico em harmonizar o mundo. O verso “Deixa o índio vivo no sertão” instaura a presença de um outro ser chamado para a paisagem da canção, além do caçador de borzeguim: o “índio” enquanto a alegoria da comunhão plena entre homem e a natureza, é literalmente o “bom selvagem” para Jobim, pois não devemos esquecer que o poeta é pautado por um lirismo essencialmente romântico. Uma outra leitura deste verso seria pensarmos no índio que deve permanecer “vivo no sertão” que há dentro nós, ou seja, a metáfora da sabedoria ancestral ameríndia que ainda pode pulsar em nossos corpos.

Em “Escuta o mato crescendo em paz / Escuta o mato crescendo / Escuta o mato / Escuta”, a estrofe dota-se de uma sensorialidade demesurada, pois o poeta abre nossos ouvidos para a escuta do “mato crescendo”, convidando-nos para uma redobrada atenção (e concentração) ao universo do reino vegetal. Ao diminuírem de tamanho, os versos também vão se concentrando, como se fossem abdicando da capacidade de nomear aquilo que já não pertence ao mundo das palavras – ao mundo humano – para projetarem nossos ouvidos ao minimalismo musical das plantas. Deste modo, ele nos revela uma sabedoria deliciosamente corpórea, pois sua apreensão lírica tem agora uma atenção capaz de usufruir da natureza em seus mínimos detalhes. Afinal, seu ouvido musical é que conduz seu olhar poético. Ou não seria sua escuta lírica a responsável pela amplitude de seu olhar sonoro?

Na nona estrofe, os versos “Escuta o vento cantando no arvoredo / Passarim passarão no passaredo” seguem o mesmo diapasão das estrofes 8 e 7, respectivamente. Sendo que, neste último verso, a gradação da materialidade dos pássaros (de “passarim”, que é uma corruptela de ‘passarinho” no diminutivo, até “passaredo”, que é o substantivo coletivo de “pássaro”), faz um trocadilho entre o sintagma aumentativo “passarão”, e o verbo “passar” no Futuro do Indicativo, denotando o sentimento de esperança do eu-lírico na continuidade da vida selvagem.

Talvez seja pertinente observarmos que, entre os anos de 1973 e 1975, Tom Jobim gravou, respectivamente, os álbuns Matita Perê (Philips) e Urubu (Warner), cujos títulos dotados de nomes de pássaros brasileiros podem expressar a intenção do poeta em exaltar a sabedoria ancestral do reino das aves. No primeiro caso, o “matita-perê” (popularmente chamado de “sem-fim”) é o pássaro cujo canto é considerado popularmente de mau agouro, e emite o intervalo musical de uma segunda maior, usado por Jobim para aludi-lo musicalmente, assim como, e principalmente por isso, é a personificação do “saci-pererê” (o nosso mitológico protetor da natureza). O canto do  Tapera naevia, o “sem-fim”, pode ser considerado uma fértil obsessão ornitológica do olhar-ouvido de Tom Jobim. [6]

Matita Perê (1973, Philips)
Urubu (1975, Warner)

O segundo título, Urubu, foi escolhido para aludir à ave que tem um olhar sábio da natureza a nos ensinar, como o poeta mesmo escreveu, na contracapa desse álbum: “Esse um [o urubu-jereba], é um que chega primeiro no olho da rês. Sem privilégios. Provador de venenos, sua prioridade é o risco. O que ele não toca é intocável.” (JOBIM, 1975, contracapa do LP Urubu).

Em seguida, um olhar híbrido de carinho e repulsa nos projeta aos versos “Deixa a índia criar seu curumim / Vá embora daqui coisa ruim / Some logo / Vá embora”, que pela primeira vez na canção ordena ao suposto caçador para sair desse território selvagem, uma terra incógnita da qual nunca realmente fez parte.

Ao anunciar “Em nome de Deus, é fruta do mato”, está instaurado o exorcismo de todo o mal que a presença deste bicho-homem emana na paisagem, pois ao exaltar o “nome de Deus”, ouvimos o resquício de uma natureza ainda divinizada. Uma presença ambígua da natureza transcendente pairando sobre a concretude imanente do verso, “é fruta no mato”, ecoando a materialidade dos primeiros versos de “Águas de março” (“É pau, é pedra...”). A simbologia alegórica do verso “É fruta do mato”, conforme já comentada, pode ser observada como a exaltação do “domínio do cru” sobre o mundo do bicho-homem, além disso, como uma alusão à fruta adâmica do paraíso bíblico, cujo ponto de vista do eu-lírico parece estar debaixo de uma outra árvore da sabedoria.

Então, o poeta entoa a estrofe inicial mais uma vez, como se voltássemos ao entre-lugar da fronteira delimitada pelas “fraldas” da mata, cuja próxima estrofe (13) traz uma nova gradação através das imagens dos pássaros: “jacu”, “iurassu” e “gavião grande”, semelhante ao segundo verso da estrofe 9 (o “jacu” é uma ave galiforme de médio porte, e “iurassu” é uma palavra tupi que significa: pássaro, “iura”, grande, “assu”). Notável olharmos para o fato deste “jacu” já estar “velho na fruteira” e de que há um “lagarto teiú na soleira”, o que denota um âmbito doméstico (através das palavras “fruteira” e “soleira”), como forma de remissão ao mundo dos homens acontecendo na consciência do poeta: uma espécie de memória da natureza civilizada, dialogando com a natureza selvagem. Enquanto isso, dois pássaros imensos estão resistindo a todas as possíveis fronteiras impostas por este mundo do bicho-homem: “Uirassu foi rever a cordilheira / Gavião grande é bicho sem fronteira”.

A estrofe seguinte, “Cutucurim / Gavião-zão / Gavião-ão” irá nos remeter ao universo sonoro de Guimarães Rosa, sendo que agora, ao citar a ave “cutucurim” (que é o nome do grande “gavião de penacho”, em tupi), o poeta logo nos dá a tradução do termo brasílico, nos versos: Gavião-zão / Gavião-ão”. Aparece então, na canção, um ser “guardião”, por excelência, do “domínio do cru” na mata: “Caapora do mato é capitão / Ele é dono da mata e do sertão / Caapora do mato é guardião / É vigia da mata e do sertão/ Yauaretê, Jaguaretê”. Em franca oposição ao bicho-homem de “borzeguim”, este é um menino-índio com o “pé no chão” e “dono da mata” [7] .

Outra vez, entramos no universo mitológico quando o eu-lírico nomeia a onça verdadeira, o “Yauaretê” (em tupi), que também é o nome de um conto de Guimarães Rosa: “Meu tio o Iauaretê”. Neste conto, o narrador-protagonista é um ser meio homem, meio onça, que narra sua própria história: o delírio de uma consciência ininterruptamente dilacerada entre querer ser um bicho feroz (a “onça verdadeira”), e não poder se livrar de sua condição humana [8] . O mesmo lugar de onde o poeta entoa sua canção: o lugar entre os domínios da mata selvagem e os da civilização, ou entre a “água” e o “fogo”.

A estrofe 17 inicia-se com os versos “Deixa a onça viva na floresta / Deixa o peixe n'água que é uma festa”, que compactuam com o sentimento de “harmonia orgânica” da natureza, conforme outros poetas também o pressentiram [9] . Assim como, servem para prenunciar a reiteração paralelística dos versos “Deixa o índio vivo / Deixa o índio / Deixa, deixa”, que vão finalizando a estrofe enfaticamente conforme a formalização de uma proposta estética da canção: dar maior expressividade e tensão dramática ao seu próprio lirismo.

Os versos finais, “Dizem que o sertão vai virar mar / Diz que o mar vai virar sertão”, são também reiterados para enfatizar a mensagem final, “Deixa o índio / Deixa, deixa”, fazendo assim ecoar em nossa imaginação o adágio popular nordestino atribuído a Antônio Conselheiro (“O sertão vai virar mar...”). Sendo essa uma profecia sertaneja que paira eternamente na paisagem dos sertões profundos do nosso país, através das vozes de cantadores, repentistas e poetas.

Este adágio tem uma total correspondência com o sentido da própria canção. É uma “promessa de vida” em nossos olhos, ouvidos e corações, reverberando o sentimento indignado de uma “canção de protesto” não-convencional. O alerta de uma sabedoria sensorial à assustadora capacidade destrutiva e predatória daquela “eterna ingratidão”, como já nos disse Drummond sobre o bicho-homem. [10]

Afinal, o poeta-pássaro aparenta pertencer mais ao reino dos animais do que ao mundo dos homens. Como disse uma vez, com uma certa dose de humor, Chico Buarque, sobre a natureza humana de seu amigo e parceiro musical:

Acho que esta ligação dele com os bichos já existia desde o começo. Já estava em Praias desertas. A natureza é muito presente na música do Tom. Esse Tom do mato, eu não conheci. Só de ouvir falar. Eu nunca viajei com o Tom. Nosso contato era carioca. Ele passou uns dias comigo em Roma e eu sentia o Tom um peixe fora da água ali. Ele estranhava a cerveja, estranhava tudo, queria voltar ao Leblon. Era seguramente um animal carioca (apud SOUZA, 1995. p. 62). 

Acorde final diminuto

Se nos debruçarmos na sonoridade instaurada pela relação entre a melodia e a harmonia de Borzeguim, iremos notar que há uma tensão harmônica instaurada desde o início da canção, cuja estrofe introdutória “Borzeguim, deixa as fraldas vento / E vem dançar, e vem dançar”, funciona como um prelúdio bem expressivo para a chegada do ritmo acelerado (um baião que norteia a travessia da mata), e para o recorte sincopado de uma melodia descendente que vai se repetindo e se encurtando, em paralelismo aos versos da canção que também vão se reduzindo e se concentrando sobre acordes dissonantes (diminutos e menores com sétimas e nonas).

Este recurso introdutório, de uma primeira estrofe lenta seguida de um ritmo que se instaura na canção, é recorrente em diversas composições de Tom Jobim, como, por exemplo, em “Matita Perê” (de 1972, em parceria com Paulo César Pinheiro) e em “Gabriela” (de 1986); uma estratégia de mudança de andamento que serve para potencializar os efeitos de tematização dos versos nas canções, pois conforme Tatit:

Os recursos de aceleração tendem a concentrar os elementos musicais, caracterizando-os como unidades motívicas que mais involuem do que evoluem. A velocidade acentuada reduz a importância dos movimentos de passagem, como se a melodia não precisasse ir a nenhum lugar, ao mesmo tempo que define claramente a identidade dos temas criados para uma audição em bloco.  A reiteração, sempre presente nas melodias aceleradas, figura na verdade como um dispositivo de contenção de velocidade, pois sublinha que, embora os temas se sucedam, apressados, há uma forma essencial que permanece assegurando o elo entre eles (TATIT, 2004, p. 59).

E esta “forma essencial” acaba configurando a reiteração de um mesmo fraseado descendente, que dará aos versos da canção toda um sentido enfático e que irá determinar “uma certa gramática” para a condução de sua melodia [11] .

Sobre uma harmonia em tonalidade menor (Sol menor com sétima, e  com sexta no baixo), ao proferir “borzeguim”, a melodia passeia de maneira descendente pela tríade maior de Si bemol, para depois projetar uma tensão harmônica sobre acordes invertidos e diminutos: “E vem dançar, e vem dançar”, embora esta tensão se resolva com a chegada do acorde sub-dominante (Dó menor com sétima), na passagem da primeira para a segunda estrofe.

A modulação harmônica que acontece a partir da oitava estrofe, de meio tom abaixo da tônica inicial, seguida de outra modulação de meio tom descendente (na nona e na décima estrofe), provocam um efeito de agravamento na atmosfera da canção. Ao mudar a tonalidade para um semitom abaixo, com os versos “Escuta o mato crescendo em paz / Escuta o mato / Escuta”, a composição ganha um clima mais introspectivo do que na segunda estrofe, que irá ser ainda mais dimensionado pela segunda modulação cromática para a tonalidade de Fá menor (nas estrofes 9 e 10).

Podemos, então, ouvir a décima primeira estrofe como uma senha de passagem para se atingir o clímax da tensão onipresente entre a melodia e a harmonia (pois a nota final de si bemol entra em conflito com o acorde de Si menor), e para se completar o ciclo vital da canção (a partir desta estrofe, temos uma volta ao convite iniciático da primeira estrofe). E a canção novamente vai nos levando por uma travessia entre luzes e sombras na imensidão da mata, terminando com a reiteração de um lamento no ar: “Deixa o índio, Deixa, Deixa...”; enquanto o acorde dissonante de Dó diminuto instaura a dúvida e o caos, onipresentes na paisagem ameaçada pelos borzeguins que não sabem mais dançar.

A canção Borzeguim é um solo fértil para entendermos a complexa construção da paisagem nas canções de Tom Jobim. Se no início da canção há o convite para a celebração do desfrute imanente da mata, como se estivéssemos aparentemente no locus amoenus da Arcádia primitiva, logo em seguida estaremos imersos no território de uma natureza divinizada (conforme o verso: Hoje é sexta feira da paixão); para depois vivenciarmos o panteísmo cósmico deste terreno movediço, em nome de uma terceira margem da natureza: a Mata Atlântica em sua concretude imensurável e absoluta.

Como se o olhar do poeta, ao completar um ciclo vital, se desumanizasse, perdendo o compasso de sua lógica sentimental, para se aproximar com os pés descalços do reino animal, e nos convidar para um devir: um “vir a ser” lírico em plena comunhão com a paisagem natural. 

Anexo

BORZEGUIM (letra e música de Tom Jobim / 1981)

 

Borzeguim, deixa as fraldas ao vento                           estrofe (1)
E vem dançar, e vem dançar

Hoje é sexta-feira de manhã, hoje é sexta-feira             estrofe (2)
Deixa o mato crescer em paz
Deixa
o mato crescer
Deixa o mato

Não quero fogo, quero água                                                estrofe (3)
(deixa o mato crescer em paz)
Não quero fogo, quero água
(deixa o mato crescer)

Hoje é sexta-feira da paixão, sexta-feira santa              estrofe (4)
Todo dia é dia de perdão
Todo dia é dia santo
Todo santo dia


Ah, e vem João e vem Maria                                                estrofe (5)
Todo dia é dia de folia
Ah, e vem João e vem Maria

Todo dia é dia


O chão no chão                                                          estrofe (6)
O pé na pedra
O pé no céu

Deixa o tatu-bola no lugar                                          estrofe (7)
Deixa a capivara atravessar
Deixa a anta cruzar o ribeirão
Deixa o índio vivo no sertão

Deixa o índio vivo nu
Deixa o índio vivo
Deixa o índio

Deixa, deixa

Escuta o mato crescendo em paz                                 estrofe (8)
Escuta o mato crescendo
Escuta o mato
Escuta

Escuta o vento cantando no arvoredo                            estrofe (9)
Passarim passarão no passaredo


Deixa a índia criar seu curumim                                   estrofe (10)
Vá embora daqui coisa ruim

Some logo                                        
Vá embora

Em nome de Deus, é fruta do mato                              estrofe (11)


Borzeguim deixa as fraldas ao vento                            estrofe (12)
E vem dançar, e vem dançar
 

O jacú velho na fruteira                                      estrofe (13)
O lagarto teiú na soleira
Uirassu foi rever a cordilheira
Gavião grande é bicho sem fronteira


Cutucurim                                                                 estrofe (14)
Gavião-zão
Gavião-ão


Caapora do mato é capitão                                         estrofe (16)
Ele é dono da mata e do sertão
Caapora do mato é guardião
É vigia da mata e do sertão

Yauaretê, Jaguaretê


Deixa a onça viva na floresta                                       estrofe (17)
Deixa o peixe n'água que é uma festa
Deixa o índio vivo
Deixa o índio
Deixa, deixa

Dizem que o sertão vai virar mar                                  estrofe (18)
Diz que o mar vai virar sertão
Deixa o índio
Dizem que o mar vai virar sertão
Diz que o sertão vai virar mar
Deixa o índio
Deixa, deixa

Bibliografia:

CAMPOS, Augusto (org.). Balanço da bossa e outras bossas. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1986.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 6ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1988.

JOBIM, Antonio Carlos. Visão do paraíso: a Mata Atlântica. (em parceria com Ana Jobim). Rio de Janeiro: Index, 1995.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

LOBO, Luiza. Teorias poéticas do romantismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.

RICARDO, Cassiano. Martim Cererê, o Brasil dos meninos, dos poetas e dos heróis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.

ROSA, Guimarães. Estas estórias. 2ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.

SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.

SOUZA, Tárik de. CEZIMBRA, Márcia. CALLADO, Tessy. Tons sobre Tom. Rio de Janeiro: Revan, 1995.

TATIT, Luiz. Gabrielizar a vida. In: NESTROVSKI, Arthur. Três canções de Tom Jobim. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. Tradução de Paulo Henriques Brito. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.

WORDSWORTH, William. Prefácio às Baladas líricas. In: LOBO, Luiza. Teorias poéticas do romantismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.

A escuta da mata em “Borzeguim”: uma trilha pela lírica jobiniana da natureza
André Rocha L. Haudenschild
Bacharel e Licenciado em Letras pela UFSC, mestrando em Teoria Literária pela mesma instituição.
[ 1 ] WILLIAMS, Raymond. In: O campo e a cidade, p.178.
[ 2 ] LOBO, Luiza. In: Teorias poéticas do romantismo.
[ 3 ] No poema épico “Martim Cererê”, de Cassiano Ricardo, os bandeirantes são representados como os “gigantes-de-botas”. RICARDO, Cassiano. In: Martim Cererê, p. 45.
[ 4 ] Augusto de Campos. CAMPOS, Augusto de. In: O balanço da bossa e outras bossas, p. 38-39.
[ 5 ] LÉVI-STRAUSS, Claude. In: O cru e o cozido.
[ 6 ] Pode-se escutar o som deste pássaro representado pelas notas agudas do piano nos primeiros compassos da célebre gravação de “Águas de março”, no LP Matita Perê (as notas Dó sustenido e Ré sustenido).
[ 7 ] Caapora é uma palavra tupi que significa “morador da mata” (caá, mato; porá, habitante). In: CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore, p.177-178.
[ 8 ] Guimarães Rosa. “Meu tio o Iauaretê”. In: ROSA, Guimarães. Estas estórias.
[ 9 ]William Wordsworth. “Prefácio às Baladas líricas”. In: LOBO, Luiza. Teorias poéticas do romantismo. p. 179-180.
[10] Apud Jobim. JOBIM, Antonio Carlos. In: Visão do paraíso, p. 23.
[11] Luiz Tatit. “Gabrielizar a vida”. In: NESTROVSKI, Arthur. Três canções de Tom Jobim, p. 61.