Se você tem uma idéia incrível,

é melhor fazer uma canção;

está provado que é possível

filosofar em alemão.

Caetano Veloso

          Ao cantar a língua portuguesa em Língua, Caetano conclui acerca das possibilidades expressivas do português, que “é melhor fazer uma canção”. O português, portanto, só poderia corporificar “idéias incríveis” na forma “simples” da canção. Concordando ironicamente com a afirmação heideggeriana da superioridade da língua alemã frente às línguas latinas, Caetano provoca não somente com a insinuação da menor complexidade da música popular e, portanto, da sua superficialidade, mas também no que diz respeito à incapacidade do português expressar conteúdos mais profundos, como o pensamento filosófico, por exemplo.

        Mas a idéia da incapacidade expressiva do português já vinha derrubada desde o início da mesma canção, quando Caetano gaba-se de poder ser e estar, diferenciação raríssima nas línguas modernas (inexistente no alemão, inclusive) e da vivacidade da língua camaleônica:

 Gosto de sentir a minha língua roçar/A língua de Luís de Camões/ Gosto de ser e de estar/ E quero me dedicar/ A criar confusões de prosódias/ E uma profusão de paródias/ Que encurtem dores E furtem cores como camaleões [1]  

       

        Porém, a melhor resposta à Heidegger está em outra canção de Caetano: A terceira margem do rio [2] . Mais do que uma releitura explícita do conto homônimo de Guimarães Rosa, a letra poética é uma interpretação deste. Na leitura feita por Caetano se percebem outras leituras possíveis deste conto, dando à sua canção mais do que o status de dependência de uma releitura – ela ultrapassa estes limites, tornando-se única, e, com isso, serve aqui como ponto de partida hermenêutico.

        A proposta deste artigo é, portanto, traçar uma linha que evidencie as relações entre a literatura, a música e a filosofia através da leitura desta canção. A análise deste ensaio passou, então, a buscar um agrupamento dos elementos interpretativos numa seqüência em que se percebesse a correspondência não da letra poética de Caetano Veloso com o conto de João Guimarães Rosa, mas também deste e, portanto, daquela, com a hermenêutica heideggeriana, mais especificamente com relação à discussão sobre a linguagem. É interessante observar que esta correspondência forma uma cadeia de interpretações: o conto de Rosa traz a possibilidade de várias leituras; dentre elas está a da intertextualidade com o ensaio de Heidegger A palavra. A letra poética de Caetano Veloso abarca, condensadamente, estas possíveis leituras ou – caetanamente – não.

        Em uma primeira comparação entre os mencionados conto e letra poética, já se pode observar as referências claras ao escritor mineiro nos versos: Água da palavra/ Água calada, pura/ Água da palavra/ Água de rosa dura/ Proa da palavra; e um pouco depois: Entre as escuras duas/ Margens da palavra/ Clareira, luz madura/ Rosa da palavra. Além de citações explícitas ao autor, estes trechos dizem sobre ele e seu processo de escritura: a “água da palavra”, a palavra em seu aspecto volúvel e volátil, ampliada, desta forma, em sua significação, é também a água da “rosa dura”, do que é singelo, por ser rosa, mas também sólido, impermeável, dificultoso, nas várias acepções de duro [3] . A “rosa da palavra”, tomada sob a metáfora conhecida do conhecimento, a luz, se caracteriza pela sabedoria madura, da experiência vivida e da experiência da escrita, pois se encontra entre as duas margens da palavra – entre o significante e o significado, ponto da significação. Estes termos, portanto, oferecem um aspecto substantivo – e substancial –, fomentam uma concreção à palavra, lhe soam como plasticidade, ou seja, status fenomênico dos atributivos rosianos adentrando a canção poética.  

        Há também grande correspondência vocabular/lexical entre a letra e o conto, o que enfatiza ainda mais a referência a Rosa: Caetano Veloso traz para a sua A terceira margem do rio vocábulos comuns à poética rosiana (e não apenas no tocante a este conto), como por exemplo, as palavras vau (o liso do rio, onde se pode atravessar), o próprio rio, elemento enigmático na obra de Rosa, proa, clareira, canoa entre outras, conseguindo assim um mesmo efeito literário.

        Observando o terceiro verso da canção, nota-se que a partir do prefixo tris, usado em Rosa como advérbio significando o número três, Caetano Veloso constrói a palavra: triztriz. Esta palavra pode significar: repetição enfática do número três, muito importante e constante tanto no conto aqui analisado, quanto na obra de Guimarães Rosa como um todo; “quase nada, pequena diferença, átimo” [4] , o que nos remete à outro texto de Rosa, Tutaméia (mesmo que tuta-e-meia) ou ainda pode ter o sentido do adjetivo triste [5] ; este último nos conduzirá a uma observação acerca do conto de Rosa.

        Um dos contos mais enigmáticos de Guimarães Rosa, A terceira margem do rio possui um jogo de palavras e uma estruturação que velam e revelam leituras diferentes do mesmo conto. Este jogo textual e estas diferentes leituras são percebidos por Caetano Veloso e re(des)velados em sua canção. O músico capta estes elementos e os condensa em texto poético.

        Optamos aqui por destacar três leituras, consideradas três camadas do texto, uma reiteração do número três, anunciado desde o título do texto. Esta divisão em camadas pode ser desenvolvida a partir da noção de palimpsesto; tomado em seu sentido geral (texto sob textos), bem como a partir da técnica da intertextualidade discutida por Genette e Kristeva. A apresentação do texto de Caetano Veloso revela esta estrutura e funciona também como um palimpsesto do conto rosiano, na medida em que se pode tomar o conto enquanto estória três vezes contada e três vezes interpretada.

         Yves Reuter distingue três níveis de análise das narrativas: 1) nível da diegese, em que se analisam os elementos constitutivos da narrativa; 2) nível da narração, as escolhas técnicas que organizam a produção da diegese; 3) nível da produção do texto, as escolhas lexicais, sintáticas, retóricas, estilísticas. A análise aqui proposta se aproxima bastante dessa divisão; se seguirmos esta linha de exame do texto teremos três diferentes leituras, ao menos.

        Na camada mais superficial do palimpsesto, ou seja, no nível da diegese, lê-se a história de um pai, “silencioso e sério”, que mandafazer para si uma canoa” e, sem nenhum motivo aparente, resolve partir para o rio. Esta camada gera uma interpretação em que a partida misteriosa tenha relação com a sanidade mental do pai. Este teria enlouquecido e, portanto, se retirado da sociedade, se colocando no meio do rio: nem de um lado, nem do outro. Ainda que estranhe esta ação, realmente sem sentido, o leitor confia na história contada pelo narrador. São comuns leituras com uma vertente misteriosa, de algo místico ou relacionado a assuntos etéreos.  

        Quando se examinam as condições de construção desta estória, e se pensa quem é este personagem narrador que conta a história do pai, ou ainda, depois de raspada a primeira camada do palimpsesto, percebe-se que o leitor é guiado pelo narrador do texto, que nos apresenta o seu ponto de vista da história. Em um primeiro momento, podemos até nos deixar levar pelo seu discurso, mas depois de analisar este personagem percebe-se que nos deixamos guiar até demais. Como se trata de um narrador homodiegético, somos enganados por sua focalização interna.

        Uma frase bem conhecida de Guimarães Rosa, “As pessoas não morrem, ficam encantadas”, pode desviar nosso olhar do foco imposto pelo narrador. Muito atordoado e impressionado com a morte do pai, o jovem narrador enlouquece, metaforizando a morte do pai com a partida para o rio. A experiência traumática da morte levou-o a mudar a “realidade” e, insanamente, conta o pai que constrói uma canoa e vai para o rio. Esta canoa, que o pai encomendou, “de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador”, é nada mais que uma metonímia para o caixão do paiobjeto de madeira, feito para durar muitos anos, nas medidas exatas de quem o usará.

        Intercalando os dois textos, observa-se o seguinte trecho da canção de Caetano Veloso: “Oco de pau que diz: /Eu sou madeira, beira /Boa, dá vau, triztriz /Risca certeira”. O próprio oco de pau, a canoa, diz e não diz – desvela e velaque é madeira boa – o pau de vinhático é conhecido, inclusive por Rosa, por suas propriedades: faz parte do conjunto de madeiras de boa qualidade e que não afundam na águanos remetendo à ambigüidade das palavras do narrador: pode-se realmente crer na partida para o rio, dada a escolha minuciosa da madeira; Veloso explicita na continuação do verso: esta madeira é triste (tristriz), como caixão, e ao mesmo tempo “dá vau”, o liso do rio, nos proporciona a travessia da terceira margem. Ainda, triztriz pode remeter-se à expressãopor um triz’, como se a canoa estivesse tangente ao riosímbolo da vida e do tempoportanto, o pai estaria em um ponto suspenso: o ‘tangente tangível’.

        No jogo de analogias e assonânciasmadeira, beira” temos a representação da margem. Caetano Veloso nos conscientiza da ambigüidade do discurso do narrador: a “risca certeira”, que se refere ao tamanho exato do caixão ou da canoa, de acordo com o narrador, ou a palavra exata, que vela e desvela os sentidos do texto. Ou ainda a vida, a figura que se faz da canoa no rio.

        No conto podemos perceber constantemente elementos que evidenciam esta segunda leitura. Tais elementos, na primeira camada, passam despercebidos, dado o conjunto do texto – as frases se revelam e se escondem ao mesmo tempo. No parágrafo quarto, o narrador nos diz claramenteele não tinha ido a nenhuma parte”; porém, esta frase “esconde-se” nas outras do parágrafo, fazendo com que o leitor a leia, mas não a confira a devida importância.

        A própria reação da mãe e dos parentes não parece suspeita em um primeiro momento – “Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido”. Pode-se até pensar que a palavra fosse proibida por conta do pai; mas a real loucura era dele, por isso a proibição. Ainda no quarto parágrafo, o antepenúltimo, tem-se a construção fiz, que fui ”. Lida da forma como aparece aqui, esta frase diz que o personagem tanto pensou, tanto fez que acabou indo . No entanto, numa leitura oral em que se omita a vírgula – “ fiz que fui ”, lê-se que o narrador apenas fingiu (“fez”) que foi , evidenciando o seu ponto de vista metafórico.

        Na seqüência, o próprio narrador se assusta ao ver o pai, que lhe pareceu “vir de além”. O motivo pode ser a emoção de depois de tantos anos receber, pela primeira vez, um sinal do pai ou pelo súbito momento de lucidez, em que reconhece a sua morte. Enfim, as evidências são tantas que se poderia ler todo o conto sob este ponto de vista.

        Partindo para uma camada ainda mais profunda de leitura, temos o conto de Rosa como uma leitura da ontologia de Heidegger, sendo a canção de Caetano Veloso uma leitura das leituras da leitura. Heidegger ensaia, Rosa proseia e Caetano Veloso canta a problemática do signo, o mistério da PALAVRA. O conto de Rosa recria e reinventa o mistério da palavra, problematizado por Heidegger. Terceira camada, esta leitura é a própria indagação da linguagem e, portanto, do fazer-escrever literatura.

        No ensaio “A palavra” [6] , Heidegger analisa um poema de Stefan George e faz dele ponto de partida para a sua reflexão sobre a palavra, a literatura e o poeta. Lembrando-se do significado da palavra para os gregos, o verso final de George o incomoda: “Nenhuma coisa que seja onde a palavra faltar”. O poeta estaria buscando o estado grego da palavra: ela presentificava o dito, e não, como hoje, quando apenas representa. O enigma do poeta, então, é o que faz essa palavra presentificar.

        Presentificar a coisa dita significa dar ser a ela; a palavra tem o poder de dar vida às coisas. Daí a angústia do poeta, que não mais quer dizer a palavra que representa, porém a palavra que é, ou melhor, que proporciona o ser. No entanto, não se pode mais chegar a esta palavra: não se sabe seu enigma. O poeta, então, está num constante dizer do indizível – a busca incessante pelo mistério da palavra.

        Esta tentativa de decifrar o enigma da palavra não se basta apenas como algo frustrado: o próprio ato de recusa da palavra representação, do simples dizer, e o ato de caminhar ao encontro deste mistério é um dizer. Heidegger diz: “Fazer uma travessia, atravessar na experiência, significa aprender” [7] .

        Guimarães Rosa se deixa prender pelo enigma da palavra e em seu conto, na terceira camada da leitura, relê a ontologia da palavra de Heidegger em forma de Literatura: metalinguagem, terceira leitura. Caetano Veloso percebe o meta-conto de Guimarães e constrói a sua letra poética.

        A palavra não mais dita e hoje calada, que Heidegger menciona e discute em seu ensaio, aparece no conto de Guimarães Rosa como a figura do rio, “por se estendendo grande, fundo, calado que sempre”. Isto nos remete a palavra verdade em grego: alétheia. A negação de lethes, o rio do esquecimentoverdade, para os gregos, significava desocultamento, desesquecimento, desvelamento.

        No trecho do conto “sou o que não foi, o que vai ficar calado”, temos a idéia heideggeriana – retomando de Parmênides de Eléia: “aquilo que é calado é o não-ser” – de existência ligada à palavra. Na ambigüidade criada pela forma verbal foi, que pode ser tanto o passado do verbo ir, que seria a forma lida na primeira camada da leitura (o filho não foi ao encontro do pai), quanto do verbo ser, onde se poderia ler que ele não existiu, visto que não disse – a palavra queser à coisa.

        Três camadas de leiturastrês margens do riotrês margens da palavra. A linguagem é a casa do ser e o ser se transforma em rio-linguagem – “e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio”. A travessia para a terceira margem é a busca do poeta pela palavra exata, certa, a PALAVRA.

        A “risca certeira” de Rosa é captada por Caetano Veloso, que mescla as leituras de seu conto e a ontologia de Heidegger em sua letra poética. “Meio a meio o rio ri”, em sua terceira parte (a do meio) quase imperceptível ao leitor desatento. O rio que volta ciclicamente, onde tudo é mutável e está em movimento (Heráclito) em “o rio ri”, traduzindo a essência do próprio rio ou “o rio riu, ri” que dialoga com o “o rio-rio-rio, o rio” rosiano.

        O pai, que permanece sempre na terceira margem do rio-linguagem, se torna o próprio rioambos com a mesma característicasilencioso e sério. Este pai quenão diz, diz” é o próprio poeta, que ao renunciar a palavra, ao se negar dizer, diz. O silêncio é uma forma de dizer.

        A terceira margem é a busca, a palavra exata. De acordo com Heidegger, “o poeta deve em suas travessias chegar ao lugar em que sua reivindicação encontra a satisfação procurada. Isto acontece à margem de sua terra.” No entanto, isto corresponde ao poeta cuja preocupação não reside na palavra, mas apenas no dizer algo, visto que, ainda citando Heidegger “a margem margeia, isto é, contém, limita e delimita a morada segura do poeta”. O poeta que renega o dizer e vive sempre na tentativa de solucionar o enigma da palavra – e é isto o que importa, mais do que a própria soluçãonão se prende às estas margens que o podam. A terceira margem destrói esta noção delimitante das margens, visto que se encontra no meionunca se pode fechar ou delimitar este ponto do rio – da linguagem.

        No anagrama de Caetano Veloso – terceira / certeira – tem-se a risca terceira, a terceira margem, o indizível, que é, portanto certeiranão se pode deixar escapar nada, cada palavra como fundamental. O texto se constrói enquanto função poética, nãopreocupação externa – o código volta-se sobre si mesmo.

        A seqüênciaproa da palavra / duro silêncio, nosso pai / margem da palavra / entre as escuras duas / margens da palavra / clareira, luz madura” demonstra o caminho das três leituras percorridas pelo leitor: a proa da palavra, parte inicial, primeira leitura, a margem da palavra, segunda camada do palimpsesto e entre estas duas escuras leituras percebem-se as margens da palavra, a terceira leitura, que contém todas elas – é clareira, conhecimento que se adquire na travessia, o Ereignis.

        Nesta “casa da palavra”, em referência a Heidegger – “a casa do ser é a linguagem” –, mora o silêncio, que nada mais é do que uma forma de dizer – o silêncio diz. O ser é em silêncio e em palavraambos o dizem e o dão ser.

        A verdade do texto nunca se dá de fato, pois tudo o que é desvelado no texto vela uma outra verdade. A asa da palavra é a que esconde e mostra ao mesmo tempo o corpo do pássaro, do texto, assim como o leque, em Mallarmé: a letra S é margeada pelos dois As – num anagrama que representa o rio e cita Pedro Kilkerry. Esta asa da palavra, agora parada, nos permite a visão de um dos lados – desocultamento, desesquecimento, desvelamento: “O que ninguém jamais olvida, ouvi, ouvi, ouvi”.

        A brasa da palavra, o magma, se tem na hora clara, na máxima lucidez, na sabedoria. A hora da palavra é “quando não se diz nada” – o que um dizer, como vimos – fora da palavra – esta palavra a PALAVRA, a queser as coisas. “Quando mais dentro” do texto, quando mais fundo em suas camadas da leitura, mais “afloram” suas possibilidades.

        Em cada verso, percebe-se a leitura de Caetano Veloso e sua releitura. As palavras se imbricam formando um texto que se põe em diálogo com outros: se constrói a partir do des-esquecimento do texto e do encantamento da narração melodiada, ou seja, o conto re-funda plasticamente o ser-de-palavra e a canção torna-se rito da presença da literatura como sistema sígnico das possibilidades de representação do ser heideggeriano (Dasein).

        Os textos, portanto, mantêm uma relação direta de interpretação em que o palimpsesto possa se fazer presença. A idéia de Caetano Veloso seria uma remontagem – à la Pierre Menard – do conto rosiano, que por sua vez não precisa da linguagem fenomênica de Heidegger para dizer, mais alto, a PALAVRA. Contrariando a famosa frase de Heidegger, que é possível filosofar em alemão”, temos um conto que não é uma releitura de sua filosofia, mas outras várias possibilidades – não se prende na simples releitura – e temos também uma canção resposta a tal frase impositiva – não filosofamos, cantamos e desocultamos o mistério da palavra.

  

Bibliografia

HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2003.

MARTINS, Nilce Sant’Anna. O léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: Edusp, 2001.

REUTER, Yves. A análise da Narrativa: o texto, a ficção e a narração. Trad. Mario Pontes.Rio de Janeiro: Difel, 2002.

ROSA, João Guimarães Rosa. Primeiras Estórias.

Anexos

 A Terceira Margem do Rio

Oco de pau que diz:
Eu sou madeira, beira
Boa, dá vau, triztriz
Risca certeira
Meio a meio o rio ri
Silencioso, sério

Nosso pai não diz, diz:
Risca terceira
Água da palavra
Água calada, pura
Água da palavra
Água de rosa dura
Proa da palavra
Duro silêncio, nosso pai,
Margem da palavra
Entre as escuras duas
Margens da palavra
Clareira, luz madura
Rosa da palavra
Puro silêncio, nosso pai

Meio a meio o rio ri
Por entre as árvores da vida
O rio riu, ri
Por sob a risca da canoa
O rio riu, ri
O que ninguém jamais olvida
Ouvi, ouvi, ouvi
A voz das águas
Asa da palavra
Asa parada agora
Casa da palavra
Onde o silêncio mora
Brasa da palavra
A hora clara, nosso pai
Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando mais dentro aflora
Tora da palavra
Rio, pau enorme, nosso pai



Caetano interpreta Rosa
Fabricia Walace Rodrigues

Licenciada em Letras-português e mestre em Teoria Literária pela UNB. Professora no Instituto Superior Paulo Martins (ISPAM) onde coordena o Programa de Iniciação Científica.
[1] Canção do álbum Velô, de 1989.
[2] Ver anexo.
[3] Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, 2001.
[4] Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, 2001.
[5] Tanto a primeira, quanto esta última definição pode ser encontrada em MARTINS, Nilce Sant’Anna. O léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: Edusp, 2001.
[6] HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2003, pp. 173-189.
[7] Nota-se claramente a correspondência entre esta frase de Heidegger e as constantes formas que aparecem em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa: “O sertão é travessia”; “O que existe é homem humano. Travessia”.