“Se os peixes não vierem, pouco importa. Não busco os peixes que chegam alarmados à terra dos homens. Busco uma luz desmedida que me aquiete”

(Paulo Mendes Campos)

Em 1977 Tom fez um show com Vinicius no Canecão. Vinicius entrou no palco, contou umas historinhas, e quando chamou Tom, o público o aplaudiu por vários minutos. Segundo Helena Jobim, Tom sentou no banquinho, e fez-se um silêncio absoluto no palco. Começaria o show por que todos esperaram tanto, e Tom entrou na música com o acorde errado. A orquestra parou, ele também. Tom inclinou a cabeça e disse:

— Perdão.

E depois de um breve momento de surpresa, aquele público o aplaudiu vibrantemente. Quando lia o livro, nesse momento parei. O erro de Tom foi motivo de muitas palmas, de muita admiração. Ou foi o “perdão”? É curiosa a forma como essa superioridade foi reservada para Tom: até seu erro é admirável, ele se tornou mito.

A música de Tom Jobim, diante dos professores eruditos que teve e de tantas músicas populares que ouviu, tornou-se um grande coquetel. Indefinível, inclassificável como a própria música. Músicas francesas, americanas, brasileiras, sejam elas eruditas ou populares. Levando em consideração que Tom compôs mais de quinhentas peças, fica difícil falar de maneira geral, ou sequer conceituar as composições como um todo. Durante as quase quatro décadas em que permaneceu compondo, Tom Jobim fez um grande número de modificações harmônicas e melódicas, mesmo porque normalmente não estava sozinho, sempre tinha algum parceiro que o ajudava a derivar.

Helena Jobim fez uma pesquisa, juntamente com sua equipe, para resgatar canções de Tom que por ventura tivessem ficado pelo caminho – algumas ficaram sem data ou outros dados específicos. Aparecem diversas maneiras de cantar, cantarolar, embalar e rebolar. Em algumas sente-se o 1, 2, 3 da valsa, em outras o molejo mesmo da Bossa Nova, o quaternário que alterou com sutileza o binário do samba. Mas há também em Tom o samba-canção que balança bem os ombros, há o choro, há aquele samba mais paradão, bem dramático, além de bolero, jazz, e música orquestral reconhecida por aí simplesmente como “clássica”.

Também não é possível classificar Tom como clássico ou popular. Na Wikipédia há uma descrição aportuguesada para o jazz, termo que nunca compreendi na semântica. Jazz pode ser definido como “música clássica popular”, ou seja, o jazz já traz em si a ambivalência. Sendo clássica e popular, boa parte da música de Tom Jobim, mesmo o samba, torna-se jazz – torna-se música, num sentido amplo, paradoxal, inexplicável.

Ouvintes de várias nacionalidades admiravam, se identificavam a um certo jazz indefinido que na verdade era jazz e muitas outras coisas. Tom Jobim sempre manifestou opiniões contraditórias sobre sua própria música, que era de fato ambivalente. Às vezes dizia que a grande influência foi a música francesa, depois o jazz, uma lente grande angular que absorvia tudo, inclusive a bossa nova. E depois, é claro, tinha a música brasileira.

Se há algo na música de Tom que dispensa maiores discussões é sua complexidade. O que Tom talvez não tivesse era frieza para analisar isso de maneira calculista. A trajetória de Tom foi rica, no sentido de absorver muitas possibilidades. Mesmo entre os maiores sucessos percebe-se uma grande diferença musical, de harmonias e melodias. A consagrada “Garota de Ipanema” tem o ritmo bem articulado da Bossa Nova, enquanto “Retrato em branco e preto” apresenta acordes gravíssimos, notas pesadas do tom menor, escalas ascendentes, grandes intervalos entre as notas da melodia, violinadas intensas, e tudo é muito triste, num lento melodrama. “Dindi” também tem um piano intenso e triste, aquela harmonia dissonante de “ah, Dindi, se soubesses o bem que te quero” que a torna tão intensa. “Passarim” é samba, a bateria é só chimbal, bem sutil. A melodia em que o coral canta “e a cinza se espalhou, e a chuva carregou, cadê meu amor que o vento levou?” tem escalas ascendentes intensas, com notas dissonantes que novamente trazem a idéia de tristeza. “Águas de março”, por sua vez, tem a melodia alegre, mas a letra em tom de desabafo, o que causa um grande contraste, como quando, por exemplo, ele diz “é o fundo do poço, é o fim do caminho, no rosto o desgosto, é um pouco sozinho”, com acordes de pouco ataque, o que torna a música uma brincadeira gostosa com o destino, o azar, a lamentação.

A discussão sobre se Tom é jazz ou samba nunca vai acabar, porque é a discussão sobre o mito, que nunca acaba, e nunca se resolve porque não há como resolver – trata-se de ambivalência. Tom é jazz, é samba, é música clássica francesa, é valsa, é choro, é bolero, é samba-canção, é bossa nova, mas nem sempre. Assim, é impossível também ligar sua música a uma essência brasileira, por mais que o próprio Tom tentasse fazê-lo. Se por vezes ele se mostra nacionalista, defendendo seu país, ostentando patriotismo, ao mesmo tempo se mostrava tão radicalmente aberto a outras músicas que qualquer caráter nacional da sua fica diluído de antemão. Quando ele diz, então, que faz música brasileira, isso indica uma aceitação, uma tautologia: é brasileira porque ele é do Brasil.

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“Que me aquiete”, repetia Tom Jobim para si mesmo, indicando, talvez, uma vaga preferência musical. O ressentimento do poeta e a sensibilidade do músico traziam àquela personalidade em construção, um profundo sofrimento, uma angústia incurável, nas águas de março. Quando penso no compositor Tom Jobim, penso na música, na melodia e na harmonia, na dissonância e na sutileza que me aquietam. Estranho como o talento de um músico pode passar tranqüilidade quando a música é feita em agonia, ou como me faz bem uma música que foi a exteriorização de uma dor. O compartilhamento da agonia e da dor, talvez.

Feita de dor, todos sabem, é também a música de Chopin, herança que Tom sempre assumiu sem reservas. De fato, ouvindo o “Prelúdio nº 4” percebe-se um começo levemente dolorido e choroso. A imaginação das teclas do piano corresponde a uma dor que vem vindo vagarosamente. Depois de um minuto de sofreguidão sinto que as notas graves se tornam desabafos, e os acordes vão se unindo até formar um verdadeiro derrame de lágrimas, que após chegar ao descontrole vai se escondendo, discretamente. Como num verdadeiro momento de descontrole emocional em que a dor vem aos poucos, quando percebemos ela toma conta de pensamentos e atitudes. Então, envergonhados, nos acalmamos, e sofremos, ainda que em silêncio.

Chopin não precisava falar. Está claro aos ouvidos que é um prelúdio de sofrimento, um prelúdio de dor. Um corpo que dança essa música se moveria lentamente, com movimentos completos e de muito esforço. Não se trata de drama ou sensacionalismo. Trata-se de um coração apertado, sufocado. Um passarinho voando ao som do “Prelúdio nº 4” é um passarinho que não pode voltar. Que segue em frente, apesar das adversidades e do mau tempo, e depois de toda a chuva e todo o vento, quem sabe, pode encontrar um lugar melhor. Chopin compunha para esses amargurados.

A melancolia do “Prelúdio nº 4” está principalmente no meio tom presente nos compassos iniciais. A dor trazida pela simplicidade desse intervalo é profunda, incurável. Chopin explora o meio tom, e o repete. A repetição do meio tom, com um intervalo de três tempos entre as notas (uma mínima pontuada e uma semínima para um compasso quaternário) e a mão esquerda incessante nos lembra constantemente que o tempo passa e que o sofrimento não acaba, que ele fere vagarosamente.

Os oito primeiros compassos trazem de fato a dor e o sofrimento. Nos compassos 9, 10, 11 e 12 a melodia é bela, de certa forma alegre e vibrante. Quando você acha que vai poder dançar, o compasso 13 entra novamente com o meio tom e a lentidão. O sofrimento volta, o coração apertado quase pára de bater, e no auge da dor vêm, no compasso 16, a exaltação, a exteriorização, o desespero. Uma mudança brusca. Notas tocadas com força, notas graves, tristes, que chegam a incomodar de tão intensas. São perceptíveis os compassos que falam mais alto, gritam ao mundo, que o que dói dói muito e que em alguns momentos parece insuportável. Por fim, no compasso 19, a intensidade cai novamente. Para finalizar, no compasso 24, um acorde de mi menor inteiro, belo, robusto. A mesma dor profunda do início.

A intensidade obsessiva da mão esquerda de Chopin trouxe, relacionada à calma da mão direita, um choque do tempo que passa e do tempo de cada um. Chopin disse para mim, particularmente, que por mais que o tempo do mundo ou do relógio seja o mesmo, é diferente do tempo de cada um. Que por mais que os dias passem – fugindo totalmente ao nosso controle – os problemas e os dilemas não se resolvem, mas aquelas colcheias não param de martelar, e dizem “o tempo não pára, faça alguma coisa”. E você assiste ao tempo passando, como uma linha a sua frente, mas não consegue fazer nada.

A canção “Insensatez”, de Tom Jobim, foi assumidamente baseada neste prelúdio. A harmonia tem as mesmas características iniciais, e se cantarmos “Insensatez” em cima do prelúdio, algumas partes se encaixam dentro da harmonia de Chopin. É claro que há diferenças, mas a semelhança é imensa. O meio-tom aparece nos primeiros compassos de Tom da mesma maneira em que apareceu no prelúdio. A diferença está no compasso. “Insensatez” é mais ritmada, é Bossa Nova. Sua harmonia é triste, mas não tão depressiva quanto a do colega polonês com quem dialoga. Ao corpo que dança ao ritmo de “Insensatez” são possíveis movimentos leves, menos desgastantes, mais cadenciados. E é uma dança de despedida. O mesmo passarinho vai embora, mas o peso nos ombros é menor, ou o destino é esperançoso.

As duas são belíssimas e tocantes. O prelúdio é mais down e mais chocante. “Insensatez” é aveludada, macia. Mas são duas maneiras de construir o sofrimento. Para quem escuta, são duas formas de melancolia. E o meio-tom, em ambas, é que caracteriza a dor. A simplicidade dessa escolha faz com que a música diga que por mais simples que ela possa ser, ela é música.

Essa coisa indefinível a que chamamos de música, para mim, é um lugar para se aconchegar. Legitima dores e angústias. Compartilha conosco a dureza da vida e de suas indefinições, de seus sentidos conflitantes que deságuam em sua falta de sentido. Tom Jobim me dá essa sensação gostosa, de uma dor afável. É aquela coisa incompreensível da poesia pau-brasil (nem Brasil, nem não-Brasil): é uma tormenta tranqüila. Meio-Tom.

Indeterminável Tom Jobim
Pollyana Niehues

Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Associação Educacional Luterana Bom Jesus/Ielusc.