Teve, como única formação
musical programada, os estudos de canto gregoriano no Mosteiro de São Bento,
A consciência
da especificidade da canção, entre poetas, não é prerrogativa deste curitibano
nascido em 24 de agosto de 1944. José Miguel Wisnik, particularmente no
ensaio A Gaia Ciência: Literatura
e Música Popular no Brasil, já discorreu sobre a linhagem de poetas-cancionistas
brasileiros que ganha visibilidade e potencialidade de prestígio a partir
da adesão de Vinicius de Moraes, consagrado nos círculos literários, a uma
movimentação emblematizada em sua parceria com o sofisticado Tom Jobim –
que seria uma das marcas da Bossa Nova e afetaria estruturalmente a produção
musical das décadas seguintes. Vinicius, aliás, já havia ensaiado aproximações
com a canção na década de 1920, compondo com os irmãos Paulo e Haroldo Tapajoz,
e mesmo em 1953, quando fez música para letra de Antonio Maria: Quando
tu passas por mim. Para Wisnik, a partir desta migração “a fronteira
entre poesia escrita e poesia cantada foi devassada por gerações de compositores
e letristas leitores dos grandes poetas modernos” [2].
De fato,
se antes de Vinicius nomes como o de Catulo da Paixão Cearense despontavam
no entre-lugar da canção, viriam depois Herminio Bello de Carvalho, Cacaso,
Antonio Cícero, Waly Salomão, Alice Ruiz, Ricardo Silvestrin – além do já
citado Torquato Neto, entre tantos outros. Poetas do livro, como Adélia
Prado, Cora Coralina, Hilda Hilst, José Paulo Paes e Manoel de Barros, teriam
seus poemas musicados por outros compositores. Do outro lado, sem trincheiras,
a letra de música se sofistica e alcança um grau de equivalência ou superação
estética em relação à poesia. Os exemplos podem começar em Noel Rosa e Orestes
Barbosa e chegar a Itamar Assumpção e Chico César, tendo como chave a geração
iluminada de Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil.
Um dos diferenciais
de Paulo Leminski, nesse contexto, é que, além de ter se devotado à letra
da canção popular, também se esforçou na busca por uma expressão integralmente
autoral. Estudou violão o quanto achou suficiente – na medida das necessidades
de composição de canções simples, com melodias quase elementares. Foi durante
uma viagem ao Rio de Janeiro, em 1969, que iniciou o aprendizado. Embora
já tocasse – graças à influência exercida pelo irmão Pedro, que era músico
e se apresentava em bares de Curitiba –, teve suas primeiras aulas com o
pernambucano Paulo Diniz (que ao longo de sua carreira, aliás, musicaria
poemas de inúmeros autores, de Gregório de Matos e Carlos Drummond de Andrade).
Depois, utilizaria o método de Paulinho Nogueira para acompanhar suas canções
prediletas ou executar sozinho experiências musicais. Ainda que a dedicação
do compositor de Verdura não ultrapassasse
o domínio básico do instrumento, foi o que permitiu o arremate de músicas
de própria lavra. Isso, aliás, encaminha a um primeiro fracionamento da
obra cancional em questão: existem as canções para que fez letra e música;
obras compostas em conjunto; poemas musicados em vida; e, por fim, as parcerias
póstumas.
O volume
deste conjunto de canções – cuja lista perfaz um total de, pelo menos, 88
obras conhecidas – clama por um acercamento comprometido que prescinda de
uma análise valorativa prévia. A robustez desta produção não dá a ver um
cancionista diletante, que tem no exercício musical afazer secundário –
menos ainda um hobby, uma produção residual. Também não
deve ser coincidência o fato de que muitos músicos, ainda hoje, se dediquem
a fazer cantar os versos de Paulo Leminski.
Certamente há razões internas e externas à obra que o justifiquem.
Este trabalho,
visando se aproximar destas questões, trata primeiramente da centralidade
da canção dentro do projeto artístico de Paulo Leminski; em seguida, parte
para uma leitura exploratória de sua obra musical, sem pretensões verticalizantes.
O foco será sobre seus aspectos mais conspícuos, dados os limites deste
artigo e a escassa bibliografia sobre o tema, que se restringe a comentários
marginais sobre a faceta musical do autor, quase sempre mencionada como
algo insólito. Até onde sabemos, existem apenas três textos que lhe tocam,
sendo mais inspiradores do que efetivamente analíticos.
Marcelo Sandmann,
em 1999, escreveu e publicou o ensaio Nalgum lugar entre o experimentalismo e a canção popular, em que identifica
as menções à música popular nas cartas de Leminski a Régis Bonvicino. Em
2004, na coletânea A linha que nunca
termina, Ricardo Aleixo publica artigo breve onde descreve o conjunto
de canções do autor. No mesmo livro, o biógrafo Toninho Vaz, motivado pela
preocupação com a preservação das letras de música, publica cinco delas,
inéditas, e testemunha sobre o processo de composição do poeta:
“Muitas letras de música nasceram assim, em atos solitários ou noitadas
com os amigos – parceiros os mais díspares em se tratando de estilo. Do
rock ao bolero, passando pelo
samba-canção ou toadas caipiras, ele aceitava as diversas influências étnicas
e culturais de Curitiba como estímulo, nunca como barreira. Suas músicas
eram exercícios de linguagem, brincadeiras levadas a sério” [3]
Como demonstraremos,
as canções de Leminski eram mais que “brincadeiras levadas a sério”. São
parte de um grupo de criações que revela um artista inquieto e com plena
consciência das potencialidades de cada forma de expressão, fato que nos
convida a pensar: que tipo de conteúdo Leminski recolhe para a canção-popular?
Como ele situa, dentro de sua própria trajetória artística, a experiência
de cancionista (já que não apenas faz
música, mas fala dela)? Qual o
lugar da canção dentro de seu projeto artístico?
Entre discos e livros

Caetano Veloso, Paulo Leminski e Moraes Moreira
Se o papel
da Tropicália foi decisivo para a formação de Paulo Leminski – e de modo
geral para toda uma geração que passou a transitar entre a canção e a poesia
– é verdade também que ele devolveu, de certa forma, sua deglutição e contribuição
aos tropicalistas. Lançado em 1975, o livro Catatau
repercutiu nos círculos intelectuais brasileiros e chamou a atenção de pensadores
como Jorge Mautner e Gláuber Rocha, além de músicos como Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé e Moraes Moreira, que passaram a visitar
Paulo e Alice em Curitiba. Isso motivou uma guinada na produção cancional
de Leminski, que até então compunha irregularmente, sozinho ou com amigos,
para grupos locais. O primeiro registro dessa obra data de 1981, quando
o grupo Blindagem gravou um LP com oito canções
dele em parceria com Ivo Rodriguez.
Bem antes
disso, porém, Leminski havia concluído sua primeira canção, Flor de Cheiro, de que trataremos posteriormente.
No entretempo que vai da estréia à profissionalização, a maior parte das
canções criadas não resultava de disciplina ou de esforços dirigidos, mas
de insights surgidos a partir
de conversas, leituras, situações. Toninho, relata, por exemplo, que letra
e música de Mãos ao alto foram
feitas em um ônibus, após retornar da cobertura de um crime no subúrbio
de Curitiba. Nóis fumo, música caipira feita em parceria
com Alice Ruiz, também nasceu despretensiosamente, em uma excursão de trem
feita ao pico do Marumbi. A exceção, nesse sentido, é o projeto “Em prol
de um português elétrico”, que criou em 1972 a fim de aperfeiçoar a adequação
do idioma à sonoridade do rock’n roll – façanha que, para ele, somente Rita
Lee havia conseguido até então. O ponto de virada, efetivamente, foi uma
visita feita por Caetano Veloso e Gal Costa, em meados da década de 1970.
A partir daí Leminski e Alice passariam a freqüentar o círculo musical do
país. Mais tarde, seria estabelecida a parceria com Moraes Moreira. Em 1979,
o poeta entregaria duas fitas com 13 canções suas a Caetano, em mais uma
visita ao Sul do país – presente que resultaria na gravação de Verdura,
dois anos depois. [4]
Na Carta
55, publicada no livro Envie meu dicionário,
Leminski relata que Caetano havia anunciado que começaria a cantar Verdura
nos shows de Cinema Transcendental e a gravaria em seu
disco seguinte. Sobre isso, comentou, revitalizando o desejo de pertencimento
à geração tropicalista, com quem havia se encontrado em 1968: “E um sonho
paranóico de 10 anos come true”. A carta é encerrada de maneira ainda mais
eufórica: “minha passagem para a MPB está para se completar: operação mass-media”.
[5]. De certa forma, foi exatamente isso que ocorreu, tendo em conta os
parâmetros de difusão a que Leminski estava acostumado. A primeira forma
de divulgação de sua obra em nível nacional foi musical – a gravação de
Verdura, que realmente aconteceria
em 1981. Até então, os livros publicados por Leminski tinham sido editados
por empresas locais, sem distribuição ou expressão para além de Curitiba.
A edição de Caprichos & Relaxos
pela Editora Brasiliense, unindo os poemas publicados a textos inéditos,
só aconteceria em 1983.
Decerto não
era apenas a proximidade com os ídolos de outrora que estimulavam Leminski
a continuar compondo. Fabrício Marques, em seu livro Aço em Flor, aponta “como toda a criação (...) desse autor está imbricada:
pode-se notar poemas que surgiram de ensaios, poemas que nasceram de cartas,
prosa desentranhada de textos poéticos, e vice-versa” [6]. A canção, nesse
sentido, também interagiria com outros segmentos da obra, com quem compartilharia
“vasos comunicantes”. Um dos caminhos naturais para o descerramento desses
vasos será a atenção àqueles textos que tem a música como assunto. Antes,
porém, pensemos na potencialidade da música como forma narrativa dentro
da obra de Leminski em sua dupla articulação: motivada por uma vocação totalizante,
interna à obra, no sentido da experimentação de formatos; e como meio para
a ampliação de leitores, o que não se situaria inicialmente no plano estrutural
das canções.
No projeto
artístico de Paulo Leminski, a palavra é motor e epicentro, desde que transmutada,
por vezes impura, desacomodada ao espaço da página e lançada multidirecionamente.
Deve chegar às artes plásticas, à música, às rádios, às televisões, conformando
um “Leminski Multimídia” (nome do CD-Rom que vingou, post mortem, a gana do poeta). Não apenas
na chegada a obra de Leminski é multifaceta – materializando-se em haicais
ou em um longo romance –, como também de saída, o que autoriza excursões
de seu legado em palcos, discos, telas.
O poeta disse,
algumas vezes, ter desejado utilizar a canção como forma de restituir à
poesia escrita seu veículo originário: a voz. De fato, a preocupação com
a vocalização – ou pelo menos com a sonoridade dos versos – fica patente
em algumas de suas declarações. Como nos diz Marques [7], por diversas vezes
Leminski afirmou que após realizar na poesia o trabalho com o espaço da
página, materializado em Caprichos
& Relaxos, passou, nos livros seguintes, a se interessar pela cadência,
pelo tempo, pela música da poesia. Rebuzzi [8], comentando a eliminação
dos verbos em certos poemas, sugere que a relação das palavras em presença
com o vazio insinuam aquilo que não se diz; é o espaço do ritmo, da cadência,
da música.
A canção,
portanto, aparece como espaço de experimentação, de ousadia, de transgressão.
Para Ricardo Aleixo, “Leminski busca na música o que a poesia, como primado
da letra impressa, talvez já não possa dar a criadores de sua estirpe, entregues
à missão de desierarquizar repertórios” [9]. Já que o autor tinha consciência
da especificidade da linguagem cancional – que não emulava nem a música,
nem a literatura –, queria instalar-se nela como se poemas, haicais, biografias,
contos, crônicas, ensaios, romances e cartas fossem pouco ou como se a canção
pudesse oferecer novos substratos para o revigoramento do restante da produção.
Leminski, explorador das fronteiras da linguagem, não poderia deixar de
visitar o ponto de encontro entre a palavra e a música, oportunidade
“de se exercitar poeticamente numa forma de construção específica
como é a letra de canção em que, além da presença de um parceiro, há a necessidade
de justapor o código verbal ao musical, sem deixar que ocorram sobreposições.
Leminski tinha a clara noção de que quando compunha uma letra estava criando
uma partitura para o ouvido, enquanto que ao escrever um poema estava trabalhando
com uma mancha gráfica e, portanto, com uma partitura para os olhos” [10]
Colada à
propositura estética que rejeita e ortodoxia e a esterilidade purista está
a militância em favor de um aumento no número de consumidores de poesia,
do alcance de uma faixa de consumo mais expressiva, de permeabilidade em
um mercado acostumado à invenção no plano de poesia da canção. De certo
modo, o alto grau de elaboração literária das letras da canção brasileira
– radicalizado nos cancionistas prediletos de Leminski – o reanimava (e
a outros artistas de sua geração) no sentido de encontrar na canção uma
saída possível para sobrevida da poesia – e que a esta agregaria, ainda,
componentes de novidade, permitindo uma experimentação no plano da linguagem
forçada pela formalização do produto “canção popular-comercial”. Para ele,
que dizia que “na nossa geração o centro da poesia se deslocou do livro
pra música popular” [11], os três grandes poetas de seu tempo – Caetano
Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil – estavam lançando discos, e não publicando
livros.
Sandmann
(1999), comentando uma das cartas de Leminski, sugere que essa opção se
dê por uma percepção de esgotamento do potencial do livro:
“O trabalho com a publicidade (e a afirmação talvez se estenda também
à própria canção popular) implica na elaboração de ‘mensagens que funcionam’,
ou seja, mensagens que percorrem plenamente o circuito comunicativo. O que
se lê, ao fundo do que fica explícito, é uma crítica às limitações comunicacionais
da literatura, sobretudo do hermetismo experimental, que vem sendo posto
em causa durante toda a carta em questão. Lê-se também um confronto do livro
com outros meios e tecnologias (jornal, televisão, rádio, disco, outdoor,
etc. - “maximalização de linguagens industriais”).”
Revertendo
o paradigma da busca por prestígio, indo do livro cultuado à linguagem pop
da canção de rádio, Leminski dessacraliza a poesia, imputando-lhe imbricações
com outros universos artísticos e devolvendo-a como produto inserido num
contexto que ultrapassa o limite da palavra escrita – mas que, ao mesmo
tempo, pode oferecer a ela maior visibilidade. Ser conhecido fora do âmbito
extremamente restrito da produção intelectual poderia lançar luzes sobre
o certame mais obscuro de sua obra. Desejando transitar entre o espaço de
sagração do livro e a faixa de amplo consumo das canções, subverte o lastro
de Pestana, personagem de Machado de Assis que fazia sucesso com polcas
mas desejava ser conhecido como compositor erudito [12].
Como síntese
desses dois pólos, a canção torna-se plano privilegiado de realização do
projeto artístico de Paulo Leminski, ainda que convide à reflexão sobre
a contradição entre a poesia como anti-produto (tendo seu caráter anti-utilitário
radicalizado) e a adoção de uma forma mercadológica por excelência (a canção
popular-comercial, que é valor de mercado sobretudo quando interpretada
e gravada por um dos chamados “medalhões da MPB”). Emerge como alternativa
à publicação em livro, favorece a experimentação em um espaço desconhecido
e, assim, radicaliza tópicos presentes na poética do autor, como um todo,
tais como a diluição de fronteiras entre tradição e vanguarda, oralidade
e cultura letrada, belas artes e indústria cultural, trabalho de pensamento
e linguagem pop.
Falando em canção
à pureza com que
sonha
o compositor popular
um dia poder compor
uma canção de ninar
(CER)
O poema não
tem charadas. Trata da difícil tarefa de atingir a simplicidade na arte.
Leminski aproxima “pureza” e “canção de ninar”, melodia de acalento despojada
e singela, que por seu fim – acalmar e fazer dormir os bebês e crianças
– deve ser simples e direta, se não rudimentar, encontrando a beleza em
pequenas nuances. A receita evoca outra experiência, já vivida por Leminski,
na busca por simplicidade. É na economia, na objetividade, no desprezo da
retórica, no wabi (miséria), no kirei (limpidez), que o haicai se assenta.
O texto a
seguir, conciso e ponderado, parece seguir os mesmos princípios, mimetizando
e condensando em sua forma exatamente aquilo que quer dizer sobre a canção:
tudo
que
li
me
irrita
quando
ouço
rita
lee
(CER)
Primando
pela simplicidade, o poema fala da canção como espaço de exagero das noções
de finitude e concentração – obra de arte que deve reduzir todos os conteúdos
desejados a uma forma mínima e comunicativa, com uma chance única de eficácia.
Além de convencer o ouvinte daquilo
que está sendo dito, o cancionista deve controlar suas formas expressivas
e comunicar de imediato, explodindo seu discurso. Se o leitor costuma estar
especialmente predisposto para o hábito e para a ação da leitura, isso não
acontece com a canção, que lida com o instantâneo. Minimizando sua forma,
deve maximizar conteúdos que invadam, preencham, que se abram como feixe
de possibilidades para o ouvinte no momento da escuta. É um tipo de sagacidade
que não tem lugar no âmbito livresco tradicional. Ademais, opondo escrita
e oralidade, o texto evidencia o quanto a cultura acadêmica, erudita, repetitiva
em formas e conteúdos, passa a perder espaço para o pop, representado por
Rita Lee, muito mais certeiro.
Tais constatações
abrem espaço para a “inveja” do cancionista, focalizada em textos como o
seguinte:
dia
dai-me
a sabedoria de caetano
nunca ler jornais
a loucura de gláuber
ter sempre uma cabeça
cortada a mais
a fúria de décio
nunca fazer versinhos
normais
(CER)
Nesse caso,
é importante lembrar de uma versão preliminar do poema registrada no livro
Envie meu dicionário [13]. Como
carta, remetida a Régis Bonvicino e datada de 79, lê-se:
dia
dai-me
a sabedoria de caetano
nunca ler jornais
a loucura de walter
franco
ter sempre uma cabeça
a mais
a fúria de décio
nunca fazer versinhos
normais
nunca me sentir
insultado
com os golpes do
acaso e do destino
dai-me
ou consigo sozinho
(CER)
Talvez a
decepção com um dos discos de Walter Franco tenha levado o autor a suprimir
seu nome do poema. De todo modo, o canteiro de obras que é a carta de Paulo
Leminski descortina uma aproximação ainda maior da música, não apenas pela
menção ao compositor, como pela citação de Cabeça,
obra apresentada no VII Festival Internacional da Canção, de 1972. Da primeira
à segunda versão conhecidas, ocorre ainda o acréscimo da palavra “cortada”,
cunhando expressão e mote que aproveitaria em poema do ano seguinte, o primeiro
inspirado em Alice Ruiz, publicado em Sangra
Cio. Em 2007, Neuza Pinheiro gravaria em seu disco a versão musicada
do texto:
minha cabeça cortada
joguei na tua janela
noite de lua
janela aberta
bate na parede
perdendo dentes
cai na cama
pesada de pensamentos
talvez te assustes
talvez a contemples
contra a lua
buscando a cor de
meus olhos
talvez a uses
como despertador
sobre o criado mudo
não quero assustar-te
peço apenas um tratamento
condigno
para essa cabeça
súbita
de minha parte
(Sangra Cio)
A reincidência
do tema na obra de Leminski recolhida em Caprichos & Relaxos, somada aos dados biográficos já apresentados,
autoriza a especulação sobre um desejo e projeto de avizinhamento com a
canção popular já em curso desde 1970 – que se robusteceu ao longo da década
e chegaria ao início dos anos 80 revigorada pela expectativa da gravação
de Caetano Veloso. Nesse meio tempo, as feições formais da obra cancional
de Leminski se alterariam: ele passaria a compor com parceiros célebres,
como Moraes Moreira, concentrando-se prioritariamente nas letras. O início
de suas investidas, por sua vez, havia sido marcado por tentativas de criação
de letra e música.
Palavras para serem
cantadas
Por extensa,
a obra cancional de Paulo Leminski impossibilita investigações no sentido
do delineamento de uma “poética” – pelo menos para os limites deste trabalho.
São obras variadas, sem padrões estruturais fixos, que metamorfoseiam significados
dentro do contexto artístico dos eventuais parceiros, que perfazem gêneros
musicais que vão da toada ao rock, que possuem letras de diferentes inspirações.
Por ora nos concentraremos nas impressões gerais sobre cinco canções que
podem fornecer algumas linhas possíveis para análises futuras. A primeira
delas é Flor de cheiro, de 1970:
você tem o cheiro
de uma flor
que eu não me lembro
mais
lilás jasmim incenso
amor perfeito e sassafrás
flores de muito
tempo atrás
vi você à sombra
de uma flor
com outra flor na
mão
flor em compensação
você tem o cheiro
de uma flor
que eu não me lembro mais
Já nesta
sua primeira composição, Leminski demonstra a consciência do fazer específico
da canção popular e imprime a ela suas marcas particulares. Adota como gênero
o samba-canção abolerado, em declínio desde a eclosão da bossa nova. Soava,
de certa forma, anacrônico em um momento musical que tinha o tropicalismo
como palavra de ordem; por outro lado, era amplamente aceito como gênero
convencional e estabelecido de canção.
O autor lança mão, ainda, de uma das imagens mais tradicionais da
poesia lírica – a flor – radicalizando a redundância e a função emotiva
da poesia. Abusa das assonâncias (e; o), aliterações (s), rimas (mais /
sassafrás / atrás; mão / compensação) e repetições (flor) e, mesmo em uma
letra curta, propõe um refrão comunicativo: “você tem o cheiro de uma flor
/ que eu não me lembro mais”. A insistência com que o assunto é reiterado,
quase como um mantra, mimetiza a própria dinâmica da presença do assunto
na memória do eu-lírico. Ainda que seja passionalizada, apoiada que está
sobre a repetição das palavras, a canção presentifica a imagem da flor e
envolve o ouvinte na curiosidade sobre o aroma.
De outro
lado, mesmo que retome um símbolo muito visitado, Leminski acrescenta que
o cheiro do interlocutor a que a metáfora alude pode ser de qualquer flor
– o “eu-lírico” (ou o enunciador da canção) nem mesmo se lembra qual, ecoando
uma ironia típica da geração dos anos 70, presente, por exemplo, no Problemas de nomenclatura de Cacaso:
Rememoro com resignado
e fervoroso amor
a primeira namorada.
Mas o nome dela dançou.
Na mesma
época, entre 1970 e 1971, Leminski compõe sozinho Caixa Furada, samba tipicamente figurativizado, que concilia grande
parte dos elementos apontados por Tatit (2002) como caracterizadores daquele
tipo de canção que aproxima a voz que canta da voz que fala: a melodia se
conforma às acentuações do texto; o texto reproduz um colóquio que tanto
pode ser dirigido do cantor ao ouvinte como do personagem interlocutor ao
interlocutário; a prosódia é respeitada.
a caixa furada que
me deste
me trouxe um problema
muito triste
os homens quiseram
saber o porquê
dos furos que você
fez
eu disse eu não
tenho mais nada com isso
foi um amigo que
tomou chá de sumiço
eu tinha um cigarro
apagado
maldita caixa furada
soubesse o quanto
me custa
uma lembrança guardada
se essa caixa pudesse
fazer o povo sorrir
eu juro você torceria
pro Jair
eu só posso mentir
Não se pode
duvidar que a entoação seja, de fato, fulcro da obra em questão. Pode-se
notar, aliás, que o texto guarda poucas semelhanças com a obra escrita de
Leminski, em termos de métrica, rima e ritmo. Inúmeros índices na canção
mostram como ela se filia à tradição de um samba urbano, tanto pela forma
como pela temática: a caixa furada remete à “táubua furada” de Adoniran
Barbosa; a menção a um terceiro personagem (Jair) e a existência de um entorno
social (“os homens”, a explicação aos outros); o estribilho ainda mais próximo
da fala (“eu só posso mentir”).
Se Leminski
experimentou sozinho um gênero passionalizado e outro figurativizado, foi
com Alice Ruiz que criou letra e música da moda de viola Nóis fumo, em 1975. Toda paralelística,
com estrofes metrificadas, com grafia que emula a fala popular (“cantá”,
“treis”, “d’um”), gravada com violões e acordeom, a canção canta/conta o
percurso de cantadores (“nóis”) que percorrem diversas festas: batizado,
aniversário, casamento, velório. A narração de cada tentativa mal-sucedida
é interpolada por um solo instrumental, abrindo caminho para a contação
de um novo evento, estabelecendo um ciclo aparentemente interminável, mas
lógico (vai do batizado ao velório).
nóis fumo cantá
numa festa
na festa dum batizado
o anjo não tinha
nascido
só tinha bebida
eu não tinha jantado
então fumo cantá
noutra festa
na festa d’aniversário
o vento soprava
as velinha
e o dono da festa
já tava apagado
então fumo cantá
noutra festa
na festa d’um casamento
os noivo já tinha
treis filho
e o mais crescidinho
já era sargento
então fumo acabá
num velório
dum cara chamado
gregório
o morto não tava
bem duro
e o vivo do padre
cantava a comadre
Ao longo
da audição, o ouvinte é envolto no contexto da cena, já que, por repetida,
sua imagem se presentifica. A gravação é finalizada com os últimos versos
ralentados e sucedidos por uma típica saudação caipira.
Ao contrário
de Nóis fumo, o exemplo seguinte,
de 1978, pende à categoria de “poema musicado”. Embora, provavelmente, feito
em parceria com Mário Gallera, Fazia Poesia foi publicada três anos depois como texto em Não fosse isso e era menos. Não fosse tanto
e era quase (com supressão do dístico “e cada tábua que caía / doía
no coração” e acréscimo de “e a poesia que fazia / era outra filosofia”).
O jogo de palavras, que desdobra os sons e sentidos dos versos, preenche
o poema e é ainda mais relevado pela musicalização:
fazia poesia
e a maioria saía
tal a poesia que
fazia
fazia poesia
e a poesia que fazia
não é essa
que nos faz alma
vazia
fazia poesia
e a poesia que fazia
tinha tamanho família
fazia poesia
e cada tábua que
caía
doía no coração
fazia poesia
e fez alto
em nossa folia
fazia tanta poesia
que ainda vai ter
poesia um dia
Leminski,
que fez de muitos poemas suas supostas lápides e profissões de fé, contribui
com este texto para a criação de um mito sobre o poeta. Metalingüística,
em vez de desvelar o ofício, revela a melancolia pela saudade de um poeta
naturalmente inspirado e profícuo, que além de fazer poesia quase compulsivamente,
ainda viveu com intensidade (“e cada tábua que caía / doía no coração”),
fazendo equivaler arte e vida. Sem preâmbulos, o poeta se introduz. Faz
irromper sua poesia como se partisse de algo dado, já estabelecido, como
para ressaltar a marca das inter-relações de sua obra ou como para mostrá-la
como parte de algo maior, que a envolve e que ela compõe.
Ainda que
represente um avanço, em termos de conteúdo, em relação às outras canções,
Fazia Poesia não explora as potencialidades
comunicacionais da canção. É um dado que Leminski, talvez, percebesse mais
tarde, e que se tornaria marca de produções como Verdura. Entre muitas de suas funções,
a canção pode se apresentar como oportunidade de garantir visibilidade a
temas urgentes, condensando e comunicando experiências particulares ou uma
certa reserva de memória de seu tempo. Parece ser este o caso da canção
gravada por Caetano Veloso:
de repente me lembro
do verde
a cor verde
a mais verde que
existe
a cor mais alegre
a cor mais triste
o verde que veste
o verde que vestiste
no dia em que te
vi
no dia em que me
viste
de repente, vendi
meus filhos para uma família americana
eles têm carro
eles têm grana
eles têm casa
e a grama é bacana
só assim eles podem
voltar
e tomar um sol em Copacabana
A
canção, aparentemente, comporta duas partes desconexas. A primeira estrofe
trata da lembrança de um encontro; memória repentina explicitada logo no
primeiro verso. Ele remete, aliás, a uma das feições reincidentes na poesia
de Paulo Leminski: o acaso, a irrupção do assunto, a negação a preâmbulos.
O “de repente” introduz o ouvinte, sem maiores explicações, a um universo
essencialmente verde, que se identifica de cara com o Brasil tropical, descerrado
e apresentado em todos os seus conflitos. A segunda parte, por sua vez,
trata de uma ação no presente com conseqüências futuras; entre as duas,
não aparecem elos e nem mesmo correspondências evidentes.
A simbologia,
de todo modo, é farta. O título, Verdura, já carrega em si o “ver”, a visão, principal sentido-estímulo
da letra: os olhos que “vêem” o verde – predominante e já anunciado – da
grama, mas que também enxergam
o verde da grana (o jogo com as
palavras, aliás, não propõe ingenuamente a passagem da natureza à cultura),
denunciando o valor da imagem, da aparência, materializada no “carro”, na
“grana” (cor do dólar), na “casa” com “grama bacana”, no “bronzeado”, no
“sol em Copabacana” – bairro e ato de prestígio. Verde é a cor predominante
da bandeira brasileira, mas também a cor do Brasil agrário, da mercadoria
que cabe ao país subdesenvolvido exportar. E é a cor da esperança, talvez
de alteração de uma situação inicial.
“Dura”, por
sua vez, lembra duração – permanência abandonada (o resultado de um encontro
lembrado, no passado) em nome de outra permanência (a felicidade dos filhos
vendidos, no futuro). Nega-se o presente; pelo menos o presente do personagem
que fala. O que esconde a saída de cena do “eu” e a entrada do “eles” se
não a negação do próprio sentimento? O verde, aí, aparece em seu duplo,
como cor do viço e da esperança para o outro, e como cor da lembrança desejada
– e do presente recalcado – para o “eu”.
Pelo menos
até o quinto verso da letra predomina a memória e mesmo a nostalgia: as
lembranças que estão, sempre, no passado. Mas, em seguida, “o verde que
veste” parece sugerir uma nova ordem, presentificando o discurso. A sugestão
não é cumprida, pois os versos paralelos “o verde que veste / o verde que
vestiste” denunciam a hesitação já insinuada anteriormente: “a cor mais
alegre / a cor mais triste”. A querela só se resolve no final, quando o
futuro dos filhos vendidos aparece sendo verde.
Verde é também
o fruto que não amadureceu; aquilo que não está pronto. Algo que pode ser
o próprio país – mas que talvez represente, sintomaticamente, um movimento
que começou a se acelerar a partir do final dos anos 70, época em que a
canção foi composta: a emigração de brasileiros para os Estados Unidos.
A canção, portanto – de forma festiva, quase celebrativa –, toca um assunto
ainda frio, recalcado, e ao qual a poesia, por exemplo, não poderia dar
a merecida visibilidade.
O Brasil,
que sempre se orgulhou de receber e acolher imigrantes de tantas origens,
agora vê seus filhos indo embora. O que reaparece é outro país: deglutido,
exótico, usado como colônia de férias. É a previsão mais desagradável que
Paulo Leminski poderia fazer, utilizando como metáfora os filhos vendidos
– como produto ao país de produtos encantadores – e a indecisão do “vestir”. O “verde que vestes”,
que sugere a idéia de incorporação da brasilidade, é substituído pelo “verde
que vestiste”, que corrige e atualiza o anterior, situando o nacionalismo
e o amor à pátria no passado. O alegre é entristecido; o nacional dá lugar
a um futuro no exterior. O “ame-o ou deixe-o” é recuperado em sua duplicidade:
também deixam o país verde aqueles que querem o verde do dólar, convertidos
que estão ao modelo americano instaurado pela ditadura. Os filhos vendidos
são, agora, a segunda geração dos brasileiros que, como Iracema, voam para
a América e depois voltam americanizados, para desfrutar o país que detém
a maior parte da grande floresta do mundo.
Canção e destinação
Como já vimos,
a gravação de Verdura marca uma
guinada na produção musical de Leminski, que supera um estágio artesanal
e atinge grau de profissionalismo. No livro La
vie en close, o autor estampa em sua Sintonia
para pressa e presságio a modificação mais evidente. Situa sua experiência
de cancionista no tempo presente, não mais como expectativa futura. Evidencia
a passagem da escrita no espaço para a escrita no tempo, mencionando inúmeros
índices do universo da canção: o soar, o silêncio, o grito, a voz, a fala.
Um caminho irreversível e desejado que, entretanto, não encontra lugar de
realização. A luz não cabe na sala ou é a própria canção que não encontra
o abrigo idealizado?
Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma,
na pétala,
luz do momento.
Sôo na dúvida que
separa
o silêncio de quem
grita
do escândalo que
cala,
no tempo, distância,
praça,
que a pausa, asa,
leva
para ir do percalço
ao espasmo.
Eis a voz, eis o
deus, eis a fala,
eis que a luz se
acendeu na casa
e não cabe mais
na sala.
(LVEC)
Fato é que,
embora tenha atingido relativa repercussão nos círculos artísticos, a produção
cancional do autor não fez frente às suas expectativas – talvez porque a
música não fosse solução para problemas biográficos; talvez porque a indústria
fonográfica dos anos 80 oferecesse menos mobilidade que na década que a
precedeu; talvez porque sua poesia de canção estivesse em nível inferior
ao de sua produção escrita. Leminski deu passos importantes no sentido de
contribuir para a consolidação do trânsito entre a oralidade e a escrita,
mas de forma muito mais eficiente
do que eficaz; isto é, desarticulou incompatibilidades,
mas se não se compatibilizou com a linguagem e as feições específicas da
canção, em todos os aspectos que a envolve. Deixou para uma geração seguinte,
representada principalmente por Arnaldo Antunes, mas também por Chico César,
o encargo de atuar com sucesso tanto no espaço do mercado quanto no plano
da invenção, sem desprestigiar um ou outro. Trata-se aqui, principalmente,
da recepção: a música não se realizou, como entorno, espaço de experimentação
reconhecido por pares; nem iluminou o coração da obra de Leminski: a palavra.
O resultado,
além de seu provável desapontamento (e não há registros conhecidos disso
em cartas ou entrevistas), é o registro de outra percepção sobre a música
nos poemas posteriores ao início dos anos 80 – percepção que difere sensivelmente
daquela registrada em Caprichos &
Relaxos. Ainda que não se deva confundir autor e personagem, o poema
a seguir comenta a falta de vocação para um saber específico no âmbito da
música:
Quem dera eu fosse
um músico
que só tocasse os
clássicos,
a platéia chorando
e eu contando os
compassos.
Se eu soubesse agora,
como eu soube antes,
a dança alegórica
entre as vogais
e as consoantes!
(LVEC)
Em outro
texto, apresenta-se como grego, herdeiro da sabedoria e da civilização,
subitamente destronado pela intuição musical de um negro, como se a retomar
a dicotomia entre cultura livresca e cultura popular já apresentado no poema
que menciona Rita Lee. Neste, a associação com os ídolos que não tiveram
formação musical e tornaram-se grandes compositores – falamos principalmente
de Gilberto Gil e Itamar Assumpção, freqüentemente citados pelo autor –
é inevitável:
nu como um grego
ouço um músico negro
e me desagrego
(LVEC)
Fato é que
Leminski não atingiu, em suas canções, o mesmo grau de refinamento presente
na maior parte de suas produções. Em vez de alçar a música ao grau de invenção
da poesia, fez o contrário. Por vezes, nivelou as letras em um patamar de
invenção muito inferior ao da poesia ou da prosa experimental, talvez para
se adequar aos padrões do que circulava regularmente em sua época; em outros
casos, atuou com parceiros pouco inspirados que não encontraram a dicção
eficaz para suas criações verbais; no mais, a aura mítica de marginal contribuiu
para classificar como pitorescas suas intervenções como compositor/letrista.
Além de algumas
obras que levam somente sua assinatura, em que se nota grau maior de liberdade
– é o caso de Luzes, por exemplo,
gravada por Arnaldo Antunes e Suzana Salles –, é nos poemas musicados que
a “obra cancional” de Leminski brilha. Talvez ele próprio tivesse consciência,
a um tempo, de suas limitações e das possibilidades futuras a seus poemas
musicados. Talvez o convite à musicalização de um dos textos de Distraídos Venceremos não seja apenas coincidência
e convide a geração de seus leitores à ação. No final de [para que leda me leia], que tem como mote,
precisamente, as estratégias do interlocutor de conseguir a atração do interlocutário,
estampa-se:
“Esse poema já foi
musicado duas vezes. Uma por Moraes Moreira, outra por Itamar Assumpção.
Que tal você?”
(DV)
O que se
pode dizer, de fato, é que existia o entendimento de que as investiduras
em uma trajetória de cancionista não tinham dado certo. Se havia evidências
de resultados futuros para as musicalizações e parcerias post mortem, não se sabe. Leminski só conhecia mesmo seu presente.
Em La Vie en Close – livro com
textos amargos, lápides, epitáfios, onde a morte é assunto ainda mais recorrente
– publica o haicai seguinte:
acabo como começo
canções de fracasso
não fazem mais sucesso
(LVEC)
O tempo,
porém, reverteu o paradigma. Como ponto de chegada de uma aproximação lenta
com o mercado – que comportou as musicalizações e gravações feitas por figuras
como Arnaldo Antunes e Zeca Baleiro, em permanente trânsito entre o underground e o mainstream –, a poesia de Paulo Leminski chega à veiculação nacional
alçada pelo reggae facilitado da gravação de Zélia Duncan. Radicalização
do dolorido “se a obra é a soma das penas / pago mas quero meu troco em
poemas”, de Alice Ruiz, a parceria com Itamar – que diz ter recebido Dor Elegante como missão – passa a emoldurar
a trilha de um homem médio e fracassado da trama da novela das oito, vitimado
pela paixão não-correspondida pela personagem de Camila Pitanga. Homem que
em nada lembra a aura do “cachorro louco que deve ser morto a pau a pedra
a fogo a pique” ou do “benedito joão dos santos silva beleléu, vulgo nego
dito”, que musicou o texto:
um homem com uma
dor
é muito mais elegante
caminha assim de
lado
como se chegasse
atrasado
andasse mais adiante
carrega o peso da
dor
como se portasse
medalhas
uma coroa um milhão
de dólares
ou coisa que os
valha
ópios édens analgésicos
não me toquem nessa
dor
ela é tudo que me
sobra
sofrer vai ser a minha última obra
Decisivamente,
não há o que lamentar. É precisamente a irrelevância da forma e o esquecimento
da autoria que vingam, por fim, o poeta que queria ouvir sua poesia tocando
no rádio.
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Jornalista, pesquisador e produtor cultural. Graduado
pela PUC-SP, pós-graduado