No ensaio “Canção, estúdio e tensividade”, Luiz Tatit dá contornos à posição adotada por alguns críticos que assumem uma postura defensiva diante do avanço tecnológico e das conseqüentes alterações que este traz para a cena musical.

 

A sensação de impotência diante do avanço tecnológico, a sensação de desrespeito humano e, no limite, a perda do controle físico e mental da situação ocasionam verdadeira repulsa aos que tomam a primeira consciência do fato. A reação mais comum, então, é o desprezo por esse modo de produção e, em contrapartida, a exaltação nostálgica dos tempos em que a criação dependia dos artistas e as obras eram resultado direto do talento e da espontaneidade... [1]

  

Tatit detecta, na entrada dos anos 90, que uma considerável fração da cena da música popular não era alvo do interesse da crítica, que ignorava tanto a canção de rádio e de novela quanto a canção marginal, criada em espaços alternativos. Em meio a essa esparsa fortuna crítica sobre a canção, o ensaísta identifica alguns perfis: articulistas que reclamam do “lixo” musical apresentado na era do roque; ensaístas que euforicamente retomam os anos sessenta com a bossa-nova e a tropicália e escritores que publicam biografias de personagens importantes do rádio e da canção popular. As ponderações de Tatit ocupam as páginas da Revista USP n.4, que publica o dossiê  “Música Brasileira”, no qual Joaquim Aguiar é quem, de forma mais direta, concentra o foco sobre os objetos reivindicados pelo ensaísta, pois se propõe a refletir sobre o disco de estréia da cantora Marisa Monte, que, na ocasião, tornou-se nacionalmente conhecida através da canção “Bem que se quis”, veiculada diariamente na trilha da novela O salvador da pátria, da Rede Globo.  Em “Nasce uma estrela”, Joaquim Aguiar se enfada ao perceber um ardil no projeto de lançamento da cantora, desenhado, segundo ele, para dar à recepção a impressão de estar diante de uma estrela genuína, que não teria se rendido às facilidades impostas pelo mercado.

  

Não é novidade que a mídia construa ídolos repentinos. Marisa Monte é um caso típico. Durante o ano passado ela esteve nas páginas dos jornais e revistas mais influentes. Artigos, comentários e citações não faltaram entre aqueles que puderam assisti-la em espetáculos no Rio, onde nasce a estrela, e em São Paulo. Há muito não se ouvia (ou lia) elogios tão rasgados a um artista iniciante. [2]

Marisa Monte

 A análise do LP gravado ao vivo é dura e não poupa nenhuma faixa. Tudo, mediante o envolvimento da “mídia”, do mercado, da indústria cultural, é posicionado no patamar do embuste, do forjado, do projetado para agradar a um público que, não por acaso, o autor coloca entre aspas como “mais elitizado”. Um público apresentado a uma “estrela” tecnicamente preparada em um país cuja trajetória da música popular é marcada pela presença de cantoras “espontaneístas”, tais como “Araci de Almeida, Carmen Miranda, as irmãs Batista, Nora Ney, Emilinha Borba, Dalva de Oliveira e Marlene”:

Tudo é feito para dar certo: boa cantora, bons arranjos, músicas variadas. Enfim, uma mercadoria de bom nível. E mais: ela aparece como se frisasse ao público mais dileto, e pela enésima vez, que a máquina não dilui necessariamente a criatividade, o que somente às vezes é correto. Há precedentes de ídolos lançados com o mesmo jargão, mas que não se sustentaram. [3]

  No trecho destacado, os elogios (“boa cantora, bons arranjos, músicas variadas”) são ironicamente antecedidos por uma frase que ressalta os graus de planejamento e previsibilidade envolvidos no lançamento de uma “novidade” como Marisa Monte, e são sucedidos por uma afirmação que, ao aderir o selo de “mercadoria” ao lançamento, desloca o eixo do campo musical para o comercial. Esse deslocamento se amplia ainda mais quando essa “mercadoria” é associada à “máquina” e contraposta à noção de “criatividade”, que aparece no texto de Joaquim Aguiar como um importante traço de autenticidade. A ênfase do autor está em diferenciar o que seria uma estrela “verdadeira”, “genuína” de uma “construída enquanto produto”, mesmo que “de bom nível”, como considera ser o caso da cantora. Enfim, sob o véu da indústria fonográfica, à qual parece atribuir toda a responsabilidade pelo sucesso inicial de Marisa Monte, desenvolve-se a discussão em torno do estatuto dos objetos da indústria da cultura e, nessa reflexão, a cantora se converte em arremedo construído à imagem e semelhança das grandes divas. Para tal situação, o autor praticamente não vê luz no fim do túnel, arrematando a sua desconfiança ou a sua desesperança com a seguinte afirmação: “A época da indústria cultural, da internacionalização do mercado de sons e imagens, parece própria para vestir a província com roupa elegante. Marisa Monte é a expressão acabada de uma década musical melancólica”. [4]

O maestro Júlio Medaglia também se coloca com relação ao tema “música popular” no ensaio intitulado “Assim não dá!...”, no qual inicia seu trajeto por um veio caro a José Ramos Tinhorão: o papel da tecnologia no cenário musical. Porém, o enfoque de Medaglia é bem diferente. O maestro brinca que, passando, provavelmente, por “êxtases sucessivos”, um indivíduo que tenha presenciado o século vinte acompanhou o aparecimento do rádio, do cinema (preto-e-branco, sonoro e em cores), da televisão, do disco, da edição em cores, do telefone, do telégrafo sem fio, do automóvel e do computador. Para o ensaísta, no campo da arte, os reflexos da evolução tecnológica são evidentes não apenas na seara da criação, mas também na da recepção, já que o público teve sua capacidade de percepção ampliada em virtude do grande volume de informações a que foi submetido através dos meios de comunicação. Diferentemente de José Ramos Tinhorão, Júlio Medaglia não demoniza o papel da tecnologia moderna, porém acredita que, aparte das possíveis soluções que tenha trazido, criou também problemas para o artista, que passa a ter sua contribuição rapidamente digerida por um ávido mercado de consumo. Em 1966, no ensaio “Balanço da bossa nova”, o maestro dividia a música popular em três linhagens: a primeira delas inclui as manifestações musicais folclóricas e as a outras duas, aqui enfocadas, incluem as manifestações de origem urbana, nas quais o maestro já vislumbrava a ingerência da indústria fonográfica:

Os (...) dois tipos de manifestação musical “não erudita” são de origem urbana, sendo qualificados simplesmente como “música popular” e possuindo as seguintes características que os identificam e diferenciam: o primeiro tem suas raízes na própria imaginação popular e é aproveitado e divulgado pela rádio, pela TV, pelo filme e pela gravação; o outro é a espécie de música popular que fruto da própria indústria da telecomunicação. Exemplificando: o “chorinho” é uma música de origem, expressão e posse popular. O chamado “iê-iê-iê” é uma música que se tornou popular pelos meios da comunicação de massa. O chorinho é anônimo. O iê-iê-iê existe em função de um número limitado de elementos que o praticam e que alçaram popularidade imediata através dos recursos modernos da telecomunicação. Nos recentes festivais de música popular brasileira organizados em São Paulo, onde foram apresentadas quase 6000 composições, havia várias centenas de chorinhos e nem sequer um único iê-iê-iê, embora  esse tipo de música seja, já há bom tempo, o campeão nas paradas de sucesso. Ainda que o primeiro tipo de música popular seja flexível, influenciável e evolua de acordo com circunstâncias várias, prende-se, como é natural, às características humanas da gente que a criou. Analisando-a, pode-se estabelecer um retrato psicológico dessa gente, conhecer suas diferentes facetas espirituais, suas diferentes formas de expressão, as entranhas, os recursos e o alcance de sua imaginação. O segundo tipo é artificial e amorfo; muda de estrutura rapidamente, pois se liga ao sucesso de determinada música, cantor ou forma de dança. Está quase sempre vinculado a monopólios internacionais que o relançam em vários países simultaneamente, fazendo, às vezes, traduções ou adaptações regionais, tornando-o popular independente e indiferentemente às práticas locais. [5]

 Por um tempo, o maestro vê a música popular brasileira se saindo bem na sua relação com a indústria fonográfica, com a apresentação de “soluções próprias e extremamente originais” às provocações de movimentos musicais de menor e maior penetração, como foram os casos do jazz, do blues e do rock. Para ele, à instrumentalidade jazzística, nós respondemos com os “nossos endiabrados pianeiros – Nazaré, Carolina Cardoso, Tia Amélia, Chiquinha – e demais virtuoses chorões – Pixinguinha, Benedito Lacerda, Dilermando e tantos outros”. Ao relato melancólico da realidade social em tom de Blues nós retrucamos, “em tom de blague, e sofisticada crônica de costumes – com Noel, Lamartine, Kid Morengueira e outros”. [6]

Para Medaglia, o rock exerceu influências transformadoras que marcaram os anos sessenta enquanto, por aqui, foi o Tropicalismo que excitou os mais variados segmentos da nossa movimentação cultural. O último momento de fôlego da efervescência musical brasileira teria sido exatamente a tropicália; uma movimentação cultural da qual o maestro participou ativamente e que, certamente, é uma das bases de sua perspectiva de aproximação crítica ao tema “música popular”. Em relação ao que ocorreu no estágio posterior ao Tropicalismo, o discurso de Medaglia assume um tom adorniano e, por vezes, extremamente impaciente. Uma impaciência exteriorizada no título do ensaio: “Assim não dá!...”. O que “não dá” para suportar, na opinião do maestro, é um alegado estado de rarefação de qualidade atingido pela música popular na década de oitenta. O funcionamento ininterrupto das “máquinas” metaforiza a voracidade da indústria, que, em atendimento à dinâmica de produção-consumo, disponibiliza produtos que primam pela mediocridade:

Como as máquinas não podem parar, no início dos 80, com a inexistência de novos ou fortes motivos ou lideranças, recuperou-se o rock linear – pré-Sargent Pepper’s, pré-Woodstock. O resultado foi uma manifestação musical apenas frenética e brega, destituída de interesse de qualquer natureza (exceto mercadológico, evidentemente), que dura até hoje. No Brasil, esse esvaziamento da cultura popular não foi menos melancólico. [7]

Especificamente em relação ao Brasil, para o maestro, essa mediocrização se inicia na década anterior, quando muitos artistas fazem o trânsito de uma música comprometida para um repertório musical mais voltado para o entretenimento. Já nos anos setenta, algumas lideranças da música popular brasileira teriam abandonado a antiga inquietação, “acomodando suas carreiras aos moldes do show-bizz convencional, repletos de gracinhas e beijinhos freneticamente atirados às platéias do Canecão”. [8] Como Joaquim Aguiar, Júlio Medaglia vê a indústria fonográfica suprindo o mercado consumidor através da “invenção” de produtos, com os autores suplantados pela velocidade do consumo e o público refém das modas criadas pelas gravadoras, rádios e TVs. Ou seja, a indústria passa de veiculadora a, também, “inventora” do “objeto cultural”, desestabilizando o espaço da autoria no campo musical. Em relação a esse estado de coisas, tanto Joaquim Aguiar quanto Júlio Medaglia, em alguma medida, adotam um viés adorniano quando se insurgem contra a retomada de velhas receitas, como a volta ao rock pré-Sargent Pepper’s e pré-Woodstock a que se refere o maestro Medaglia e como as releituras de antigas canções realizadas no primeiro disco de Marisa Monte ressaltadas por Joaquim Aguiar. Destaca-se o olhar desconfiado sobre o “novo” rock dos anos oitenta e a “nova” estrela da MPB sem programa renovador de repertório. Ambos os ensaístas se referem a um “novo”, no qual não se reconhece real novidade, uma configuração muito semelhante à caracterização adorniana da novidade proposta pela indústria: “O que na indústria cultural se apresenta como progresso, o insistentemente novo que ela oferece, permanece, em todos os seus ramos, a mudança de indumentária de um sempre semelhante”. [9]

Sobre a vacuidade que vislumbra nos bens culturais envolvidos na dinâmica imposta pela indústria da cultura, em 1953, o pensador alemão escreve o texto “Moda intemporal”, no qual se refere à música popular, no caso em questão o jazz, como uma manifestação musical que a despeito da perenidade, era tão efêmera nos seus quarenta anos

como se durasse apenas uma saison. O jazz é uma maneira de interpretação. Como nas modas, o importante é o espetáculo, e não a coisa em si. O jazz não é mais composto, apenas frisa a música “leve”, os produtos mais desoladores da indústria de hits musicais. Os fanáticos – nos Estados Unidos eles se chamam fans – percebem isso com clareza, preferindo invocar os aspectos de improvisação da execução jazzística. Mas essas improvisações são meros embustes. ... as chamadas improvisações nada mais são que paráfrases de fórmulas básicas, sob as quais o esquema, embora encoberto, aparece a todo instante. [10]

Alguns anos antes, durante a década de quarenta, quando se referia à “música popular” em contraposição ao que chamava “música séria”, Adorno estava pensando no jazz em comparação com a música erudita, exemplificada no ensaio “Sobre música popular” pela obra de Beethoven. [11]

Para o filósofo, a música popular ao trazer o som do objeto maquínico para o processo de fruição musical, tinha um efeito de distração sobre os ouvintes “das exigências da realidade”, ligadas ao modo de produção e ao “racionalizado e mecanizado processo de trabalho”. Em suma, Adorno via um “culto da máquina” representado nas “inabaláveis” batidas do jazz. Para ele, os homens se tornaram apêndices das máquinas em que trabalhavam, o que fazia com que “a adaptação à música de máquina” implicasse “necessariamente uma renúncia aos seus próprios sentimentos humanos e, ao mesmo tempo, um fetichismo da máquina tal que seu caráter instrumental” se tornava obscurecido. [12]

Para a recepção dessa música não seria necessário qualquer grau de concentração, pois o intuito era preponderantemente distrair o público. Uma aspiração diametralmente oposta à busca de uma experiência plenamente concentrada e consciente de arte. Em certa medida, a preocupação do maestro Júlio Medaglia com a opção dos artistas pela música de entretenimento, que domina a cena nos anos 80, principalmente através do rock, alinha-se às reflexões do pensador alemão em torno da música popular de lazer e, certamente, não se dá de forma gratuita a utilização, por parte tanto de Joaquim Aguiar quanto do maestro, do funcionamento ininterrupto da “máquina” para fazer referência à situação da música nos anos oitenta.

Entretanto, existem algumas nuances no pensamento de Júlio Medaglia que devem ser ressaltadas para que não se nublem algumas distinções entre as suas idéias e as ponderações de Adorno. Na descrição das ações da indústria da cultura, o maestro ressalta que “o que se tem presenciado é o surgimento de fenômenos de base ou pretensões meramente empresariais, com o passar do tempo, ganharem status cultural e não o contrário”. [13] O crítico cita o exemplo de alguns filmes de Hollywood que são cultivados em cinematecas por intelectuais, embora tenham sido realizados dentro dos mais rígidos processos industriais. No caso brasileiro, Medaglia faz referência à televisão, que para ele é responsável por “preciosos momentos de inspirada criação artística”.  Diante disso, caberia perguntar qual a motivação da sua impaciência em relação à “invenção” da indústria no campo musical. O que parece irritar o maestro nesse caso é que, para ele, o papel da indústria cultural deveria ser exclusivamente o de veiculadora das produções musicais, enquanto a criação deveria ser responsabilidade de artistas comprometidos com a cultura. Esses limites já ficavam claros nas duas linhagens de música popular que traçava no “Balanço da bossa nova”, as quais se diferenciavam justamente pela ultrapassagem da fronteira da criação pela indústria. Havia, para ele, já em meados da década de sessenta, uma distinção marcada entre a música popular cujo relacionamento com a indústria se localizava no campo da veiculação e a música popular cuja urdidura era forjada pela indústria fonográfica, que, através de um “make up”, poderia espalhá-la pelos quatro cantos do mundo. O ensaísta parece ter uma relação de amor e ódio com a “máquina”, e por vezes dá evidências de que o problema seria o uso que se faz dela e não a “máquina” em si. Em entrevista concedida à revista Caros Amigos, cuja chamada de capa foi a frase irritada “Chega de lixo cultural!”, Júlio Medaglia declarou o seguinte:

o Brasil sempre teve uma cultura popular espontânea, rica e forte, diversificada, aliás não há país com uma "biodiversidade" musical tão rica como o Brasil. Não sabemos é industrializar bem isso. Os Estados Unidos têm o rockinho deles, o countryzinho e um pouco da música de salão que virou jazz, e mais nada. Eles industrializam bem, ficam donos da música do mundo porque são donos do dinheiro, do satélite e sobretudo porque são profissionais. [14]

 As expressões de impaciência do maestro - “Assim não dá!...” e “Chega de lixo cultural!” - resultam da inação que o ensaísta identifica nos criadores, ou melhor, na ação em direção à música de entretenimento que redunda na já citada “inexistência de novos ou fortes motivos ou lideranças”. Houve para ele um abandono por parte dos artistas do espírito crítico e uma acomodação em virtude das facilidades exigidas e oferecidas pelo mercado do disco. No caso de seus antigos companheiros de tropicália, Gil e Caetano, o que ocorreu foi simples na sua opinião: “sobretudo estão ganhando muito dinheiro. Do nosso ponto de vista, como somos pessoas inquietas, achávamos que esse potencial podia ser usado de forma muito mais rica e crítica na música brasileira. Mas...”. [15] Portanto, os criadores teriam deixado aberto um espaço que até o Tropicalismo era ocupado por eles, pois, a seu ver, nenhuma coação “conseguia interromper ou inibir a atividade e a avalancha de participação social, política e cultural promovida pelos artistas da época e que tinha na música brasileira o seu carro chefe”. [16] Dando voz a um estilo espalhafatoso, no texto “Abaixo o orgasmo, viva a ereção”, Medaglia amplia as elaborações sobre essa espécie de vazio criativo a que se refere no ensaio da Revista USP.

 

Depois que os anos 60 se foram, com sua exuberante provocação musical e comportamental, internacionalmente liderada pelo rock e no Brasil colorida pelos finos acordes da Bossa Nova, pelo frenesi ingênuo do iê-iê-iê e pelo sarapatel das idéias do Tropicalismo, parece que uma letargia mental se abateu sobre nossos tão imaginativos e corajosos músicos. Quando, na década de 70 iniciou-se a tal “distensão” e a liberdade de expressão, em vez de nossa vida musical explodir em novos e surpreendentes projetos, caiu, ao contrário, num bolerento e embolorado cancioneirismo linear, comandado pelas Simones, Ro-Ros e Joanas da vida. [17]

 

O entusiasmo do autor em relação ao Tropicalismo direciona-se a um movimento musical no qual o mesmo teve participação bastante efetiva. Um movimento, que, com a proposta de exercer uma intervenção crítico-musical na nossa cultura, elaborou uma estética que

ressaltava os contrastes da cultura brasileira, como o arcaico convivendo com o moderno, o nacional com o estrangeiro, a cultura de elite com a cultura de massa. Foi assim que absorveu vários gêneros musicais como o samba, bolero, frevo, música de vanguarda erudita e o pop-rock nacional e internacional, mas também as inovações da Jovem Guarda, como a incorporação da guitarra elétrica. E, dentro dessa mesma linha, buscou apropriar-se poeticamente de disparidades, que iam de Brasília à Carmen Miranda, da palhoça – a habitação rústica de nosso Brasil interiorano – ao legado do Movimento Modernista de 1922. [18]

Essa estética se construiu à luz de alguns eventos que marcaram a trajetória tropicalista: em 1967, no Terceiro Festival de Música Popular Brasileira de São Paulo, Gilberto Gil participa com “Domingo no parque” e Caetano Veloso com “Alegria, alegria”, causando impacto tanto pelas letras quanto pelo uso de instrumentos elétricos. A participação mais aguda de Júlio Medaglia se dá justamente nos lances seguintes, pois, em 1968, são lançados os discos tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil. Do primeiro disco, participam como arranjadores Júlio Medaglia, Sandino Hohagen e Damiano Cozzela e, no segundo, Rogério Duprat. Do disco de Caetano fazia parte a canção manifesto do movimento, “Tropicália”, cujo título foi sugerido pelo produtor de cinema Luís Carlos Barreto, em referência a uma obra de Hélio Oiticica [19] e cujo arranjo ficou a cargo do maestro Medaglia, que fornece dados precisos sobre esse trabalho: “o arranjo original da música Tropicália com a interpretação de Caetano que deu origem ao movimento, eu escrevi e gravei no mês de setembro de 1967”. [20]

Tropicália (1967)

Alguns meses depois, estaria à venda o disco Panis et Circensis. O pesquisador argentino Gonzalo Aguilar lembra que no latim macarrônico que deu título ao disco estão “consumo e arte”, elementos combinados ironicamente pelos tropicalistas em uma sociedade periférica que vivia uma explosão dos meios de comunicação e um avanço da mercadoria sobre os bens culturais. Devido a sua experiência sociocultural formada nos meios, os tropicalistas estavam situados em uma posição muito vantajosa diante dessa conjuntura. Ao contrário dos setores de esquerda que a consideravam apenas pelo prisma da alienação, “o tropicalismo tinha como pressuposto a interioridade dos meios de comunicação, a necessidade de compreender seu papel preponderante e de provocar – mediante uma incursão em seu interior – o desvio”. [21] Postura semelhante à dos grupos que descendiam do modernismo de vanguarda, como os poetas concretos, para quem o aparecimento dos mass media “implicava uma modificação profunda nos mecanismos da cena pública e na criação de imagens culturais”. [22]   Os membros do grupo concretista viam os meios como um cenário no qual poderiam interferir, transformando-o a partir de dentro.

 O tropicalismo é abordado no dossiê “Musica Brasileira” exatamente pelo seu ponto de contato com a literatura, que surge como uma sorte de base de referência, um referencial de qualidade e de estabilidade.  O professor Charles Perrone se debruça sobre as afinidades entre o poema concreto e a canção tropicalista, ao realizar um mapeamento dos principais momentos de contato entre os membros dos grupos tropicalista e o concretista. O ensaísta discorre sobre as reverberações estéticas do poema concreto em algumas letras de canções tropicalistas: o primeiro exemplo, mais do que esperado, é “Batmacumba” de Caetano e Gil.  Charles Perrone lembra que é com o surgimento do movimento tropicalista em 1967 que o grupo Noigandres se aproxima do campo da música popular. Uma aproximação iniciada, mais precisamente em outubro de 1966, quando Augusto de Campos, em matéria jornalística, saúda o jovem compositor baiano Caetano Veloso e a sua música “Boa Palavra” (II Festival Nacional da Música Popular, TV Excelsior). Nessa oportunidade, o poeta traça paralelos entre a “retomada da linha evolutiva” proposta por Caetano em entrevista e a deglutição estética de Oswald de Andrade, um dos artistas da palavra que inspiraram os poetas concretos”. [23]

Em sua incursão no campo dos estudos melopoéticos, interessados na interface entre música e literatura, Perrone cobre o consenso, o paralelismo estético entre a tropicália e o concretismo, pois se concentra de forma quase que exclusiva em mostrar graficamente como as letras de algumas canções ecoam esteticamente o poema concreto. O ensaísta focaliza o contato entre os movimentos artísticos somente no sentido da poesia concreta para a música popular. Esse tipo de fluxo, da literatura para a canção, é observado também no texto de Antonio Medina Rodrigues, quando este assinala que a moderna crítica da canção popular, dividida entre o comentário da letra e o da aparelhagem técnica, é freqüentemente associada à esfera da literatura ou à do espetáculo cênico. Dois pólos de opinião crítica dos quais a canção popular quer se aproximar, pois, segundo o ensaísta,

isto lhe dá uma certa segurança. Os compositores se esforçam cada vez mais por serem admitidos no território das musas poéticas. Por outro lado, essa tendência dos compositores, que roubam da linguagem literária seus melhores momentos, também representa o reconhecimento de uma espécie de crepúsculo da oralidade “pura”, do lado da cultura popular. O compositor moderno já faz força para ser “lido”. Além disso, esta tendência que reforça o valor da leitura na composição popular se apóia numa forte expectativa do público, que do compositor espera certas “soluções”. [24]

Mais uma vez a literatura aparece associada a uma idéia de estabilidade, ou como quer Medina Rodrigues, de segurança. No dossiê Música brasileira, a literatura surge nos textos que avaliam a produção cultural contemporânea ora delineada enquanto referencial de qualidade e segurança, como assevera Antonio Medina Rodrigues, ora enquanto manancial para outros campos da criação artística, como descreve Charles Perrone.

Após a leitura dos textos do dossiê Música Brasileira, as reflexões de Luiz Tatit em “Canção, estúdio e tensividade” potencializam seu escopo, pois o desassossego do ensaísta se instala como um ponto de vista polêmico em relação às reflexões que ali se realizam, as quais, em alguma medida sugerem vinculações aos perfis por ele delineados. O texto de Tatit constitui uma sorte de prisma que coloca à disposição do leitor um enfoque em relação ao contexto que se constrói naquele espaço aberto à observação da canção nos anos 80. Ainda que haja por parte dos ensaístas envolvidos no debate uma manifesta intenção de promover um balanço dos sons produzidos naquele momento, ou seja, uma avaliação da produção cultural quando esta acabava de sair do forno, o que se vê de fato é uma estupefação diante de um presente ali caracterizado como um tempo de valores desestabilizados e de hegemonia da indústria de bens culturais.  Os olhos se turvam diante de um presente movediço. A saída é buscar âncoras, procurar pontos de apoio, seguindo pistas que levem até paragens em que se desembaralhem os critérios. A alternativa a esse presente de “vale tudo” está nos bens culturais que participaram de movimentos que, aos olhos dos analistas, extrapolaram as simples ambições de caráter mercadológico. No limite, o que se lê é um “presente” nostalgicamente recheado de passado.

 Referências bibliográficas

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TATIT, Luiz. “Canção, estúdio e tensividade”. Revista USP n.4. São Paulo: Edusp, 1989-1990.

O vazio e a literatura na crítica da canção
Lucia de Oliveira Almeida

  

Doutora em Teoria Literária formada pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Em fevereiro de 2008, defendeu a tese Das memórias às veredas: Revista USP – letras cenas e sons. Na REPOM n.2, publicou o ensaio “A música enquanto estratégia narrativa em Brás Cubas, de Júlio Bressane”)

Marisa Monte
[1] TATIT, Luiz. “Canção, estúdio e tensividade”. Revista USP n.4. São Paulo: Edusp, 1989-1990, p.42.
[2] AGUIAR, Joaquim. “Nasce uma estrela”. Revista USP n.4. São Paulo: Edusp, 1989-1990, p.65.
[3] Idem. Ibidem, p.67.
[4] Idem. Ibidem, p.68.
[5] MEDAGLIA, Júlio. “Balanço da Bossa Nova”. Balanço da bossa e outras bossas. Augusto de Campos (org.). 3a ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978, p.68.
[6] MEDAGLIA, Júlio. “Assim não dá!”. Revista USP n.4. São Paulo: Edusp, 1989-1990, p., p.71.
[7] Idem. Ibidem.
[8] Idem. Ibidem.
[9] ADORNO, Theodor W. A indústria cultural. Trad. Amélia Cohn. In: COHN, Gabriel (Org). Theodor W. Adorno. São Paulo: Editora Ática, 1986, p.94.
[10] ADORNO, Theodor W. “Moda intemporal – sobre o jazz”. In: Prismas: crítica cultural e sociedade. Trad. Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo: Editora Ática, 1998, p.119.
[11] Lembro que Adorno reflete sobre a recepção da música de vanguarda no ensaio “Por que é difícil a nova música”, também publicado no livro Theodor W. Adorno.
[12] ADORNO, Theodor W. “Sobre música popular”. Trad. Flávio Kothe. In: COHN, Gabriel (Org.). Theodor W. Adorno. São Paulo: Editora Ática, 1986, p.139-140.
[13] MEDAGLIA, Júlio. “Assim não dá!”. Revista USP n.4. São Paulo: Edusp, 1989-1990, p.71.
[14] MEDAGLIA, Júlio. “Chega de lixo cultural!”. Caros Amigos n.67. Outubro de 2002, p. 32-39. (Disponível em -
http://carosamigos.terra.com.br/
da_revista/edicoes/ed67/
entrevista_j_medaglia.asp)
[15] Idem. Ibidem.
[16] MEDAGLIA, Júlio. “Abaixo o orgasmo, viva a ereção”. In: Música impopular. 2a ed. São Paulo: Global, 2003, p.193.
[17] Idem. Ibidem, p.192.
[18] ALBIN, Ricardo Cravo. O livro de ouro da MPB. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p.290-291.
[19] Esta informação consta em O livro de ouro da MPB, de Ricardo Cravo Albin, na página 295.

[20] MEDAGLIA, Júlio. “Da Bossa Nova ao Tropicalismo”. In: Música impopular. 2a ed. São Paulo: Global, 2003, p.182.

[21] AGUILAR, Gonzalo. Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista. São Paulo: Edusp, 2005, p.120.
[22] Idem. Ibidem, p.118.

[23] PERRONE, Charles. “Poesia concreta e tropicalismo”. Revista USP n.4. São Paulo: 1989-1990, p.55.

[24] RODRIGUES, Antonio Medina. “De música popular e poesia”. Revista USP n.4. São Paulo: 1989-1990, p.28.