A
sensação de impotência diante do avanço tecnológico, a sensação de desrespeito
humano e, no limite, a perda do controle físico e mental da situação ocasionam
verdadeira repulsa aos que tomam a primeira consciência do fato. A reação
mais comum, então, é o desprezo por esse modo de produção e, em contrapartida,
a exaltação nostálgica dos tempos em que a criação dependia dos artistas
e as obras eram resultado direto do talento e da espontaneidade...
[1]
Tatit
detecta, na entrada dos anos 90, que uma considerável fração da cena da
música popular não era alvo do interesse da crítica, que ignorava tanto
a canção de rádio e de novela quanto a canção marginal, criada em espaços
alternativos. Em meio a essa esparsa fortuna crítica sobre a canção, o ensaísta
identifica alguns perfis: articulistas que reclamam do “lixo” musical apresentado
na era do roque; ensaístas que euforicamente retomam os anos sessenta com
a bossa-nova e a tropicália e escritores que publicam biografias de personagens
importantes do rádio e da canção popular. As ponderações de Tatit ocupam
as páginas da Revista USP n.4, que publica o dossiê
“Música Brasileira”, no qual Joaquim Aguiar é quem, de forma mais
direta, concentra o foco sobre os objetos reivindicados pelo ensaísta, pois
se propõe a refletir sobre o disco de estréia da cantora Marisa Monte, que,
na ocasião, tornou-se nacionalmente conhecida através da canção “Bem que
se quis”, veiculada diariamente na trilha da novela O salvador da pátria, da Rede Globo.
Em “Nasce uma estrela”, Joaquim Aguiar se enfada ao perceber um ardil
no projeto de lançamento da cantora, desenhado, segundo ele, para dar à
recepção a impressão de estar diante de uma estrela genuína, que não teria
se rendido às facilidades impostas pelo mercado.
Não é novidade
que a mídia construa ídolos repentinos. Marisa Monte é um caso típico. Durante
o ano passado ela esteve nas páginas dos jornais e revistas mais influentes.
Artigos, comentários e citações não faltaram entre aqueles que puderam assisti-la
em espetáculos no Rio, onde nasce a estrela, e
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Marisa Monte |
A análise do LP gravado ao vivo é dura e não
poupa nenhuma faixa. Tudo, mediante o envolvimento da “mídia”, do mercado,
da indústria cultural, é posicionado no patamar do embuste, do forjado,
do projetado para agradar a um público que, não por acaso, o autor coloca
entre aspas como “mais elitizado”. Um público apresentado a uma “estrela”
tecnicamente preparada em um país cuja trajetória da música popular é marcada
pela presença de cantoras “espontaneístas”, tais como “Araci de Almeida,
Carmen Miranda, as irmãs Batista, Nora Ney, Emilinha Borba, Dalva de Oliveira
e Marlene”:
Tudo é feito
para dar certo: boa cantora, bons arranjos, músicas variadas. Enfim, uma
mercadoria de bom nível. E mais: ela aparece como se frisasse ao
público mais dileto, e pela enésima vez, que a máquina não dilui necessariamente
a criatividade, o que somente às vezes é correto. Há precedentes de ídolos
lançados com o mesmo jargão, mas que não se sustentaram.
[3]
O
maestro Júlio Medaglia também se coloca com relação ao tema “música popular”
no ensaio intitulado “Assim não dá!...”, no qual inicia seu trajeto por
um veio caro a José Ramos Tinhorão: o papel da tecnologia no cenário musical.
Porém, o enfoque de Medaglia é bem diferente. O maestro brinca que, passando,
provavelmente, por “êxtases sucessivos”, um indivíduo que tenha presenciado
o século vinte acompanhou o aparecimento do rádio, do cinema (preto-e-branco,
sonoro e em cores), da televisão, do disco, da edição em cores, do telefone,
do telégrafo sem fio, do automóvel e do computador. Para o ensaísta, no
campo da arte, os reflexos da evolução tecnológica são evidentes não apenas
na seara da criação, mas também na da recepção, já que o público teve sua
capacidade de percepção ampliada em virtude do grande volume de informações
a que foi submetido através dos meios de comunicação. Diferentemente de
José Ramos Tinhorão, Júlio Medaglia não demoniza o papel da tecnologia moderna,
porém acredita que, aparte das possíveis soluções que tenha trazido, criou
também problemas para o artista, que passa a ter sua contribuição rapidamente
digerida por um ávido mercado de consumo. Em 1966, no ensaio “Balanço da
bossa nova”, o maestro dividia a música popular em três linhagens: a primeira
delas inclui as manifestações musicais folclóricas e as a outras duas, aqui
enfocadas, incluem as manifestações de origem urbana, nas quais o maestro
já vislumbrava a ingerência da indústria fonográfica:
Os
(...) dois tipos de manifestação musical “não erudita” são de origem urbana,
sendo qualificados simplesmente como “música popular” e possuindo as seguintes
características que os identificam e diferenciam: o primeiro tem suas raízes
na própria imaginação popular e é aproveitado e divulgado pela rádio, pela
TV, pelo filme e pela gravação; o outro é a espécie de música popular que
fruto da própria indústria da telecomunicação. Exemplificando: o “chorinho”
é uma música de origem, expressão e posse popular. O chamado “iê-iê-iê”
é uma música que se tornou popular pelos meios da comunicação de massa.
O chorinho é anônimo. O iê-iê-iê existe em função de um número limitado
de elementos que o praticam e que alçaram popularidade imediata através
dos recursos modernos da telecomunicação. Nos recentes festivais de música
popular brasileira organizados
Por um tempo, o maestro vê a música popular brasileira se saindo bem na sua relação com a indústria fonográfica, com a apresentação de “soluções próprias e extremamente originais” às provocações de movimentos musicais de menor e maior penetração, como foram os casos do jazz, do blues e do rock. Para ele, à instrumentalidade jazzística, nós respondemos com os “nossos endiabrados pianeiros – Nazaré, Carolina Cardoso, Tia Amélia, Chiquinha – e demais virtuoses chorões – Pixinguinha, Benedito Lacerda, Dilermando e tantos outros”. Ao relato melancólico da realidade social em tom de Blues nós retrucamos, “em tom de blague, e sofisticada crônica de costumes – com Noel, Lamartine, Kid Morengueira e outros”. [6]
Para
Medaglia, o rock exerceu influências
transformadoras que marcaram os anos sessenta enquanto, por aqui, foi o
Tropicalismo que excitou os mais variados segmentos da nossa movimentação
cultural. O último momento de fôlego da efervescência musical brasileira
teria sido exatamente a tropicália; uma movimentação cultural da qual o
maestro participou ativamente e que, certamente, é uma das bases de sua
perspectiva de aproximação crítica ao tema “música popular”. Em relação
ao que ocorreu no estágio posterior ao Tropicalismo, o discurso de Medaglia
assume um tom adorniano e, por vezes, extremamente impaciente. Uma impaciência
exteriorizada no título do ensaio: “Assim não dá!...”. O que “não dá” para
suportar, na opinião do maestro, é um alegado estado de rarefação de qualidade
atingido pela música popular na década de oitenta. O funcionamento ininterrupto
das “máquinas” metaforiza a voracidade da indústria, que, em atendimento
à dinâmica de produção-consumo, disponibiliza produtos que primam pela mediocridade:
Como as máquinas não podem
parar, no início dos 80, com a inexistência de novos ou fortes motivos ou
lideranças, recuperou-se o rock linear – pré-Sargent Pepper’s,
pré-Woodstock. O resultado foi uma manifestação musical apenas frenética
e brega, destituída de interesse de qualquer natureza (exceto mercadológico,
evidentemente), que dura até hoje. No Brasil, esse esvaziamento da cultura
popular não foi menos melancólico.
[7]
Especificamente em relação
ao Brasil, para o maestro, essa mediocrização se inicia na década anterior,
quando muitos artistas fazem o trânsito de uma música comprometida para
um repertório musical mais voltado para o entretenimento. Já nos anos setenta,
algumas lideranças da música popular brasileira teriam abandonado a antiga
inquietação, “acomodando suas carreiras aos moldes do show-bizz
convencional, repletos de gracinhas e beijinhos freneticamente atirados
às platéias do Canecão”.
[8]
Como Joaquim Aguiar, Júlio Medaglia vê a indústria fonográfica
suprindo o mercado consumidor através da “invenção” de produtos, com os
autores suplantados pela velocidade do consumo e o público refém das modas
criadas pelas gravadoras, rádios e TVs. Ou seja, a indústria passa de veiculadora
a, também, “inventora” do “objeto cultural”, desestabilizando o espaço da
autoria no campo musical. Em relação a esse estado de coisas, tanto Joaquim
Aguiar quanto Júlio Medaglia, em alguma medida, adotam um viés adorniano
quando se insurgem contra a retomada de velhas receitas, como a volta ao
rock pré-Sargent Pepper’s e pré-Woodstock a que se refere
o maestro Medaglia e como as releituras de antigas canções realizadas no
primeiro disco de Marisa Monte ressaltadas por Joaquim Aguiar. Destaca-se
o olhar desconfiado sobre o “novo” rock dos anos oitenta e a “nova” estrela
da MPB sem programa renovador de repertório. Ambos os ensaístas se referem
a um “novo”, no qual não se reconhece real novidade, uma configuração muito
semelhante à caracterização adorniana da novidade proposta pela indústria:
“O que na indústria cultural se apresenta como progresso, o insistentemente
novo que ela oferece, permanece, em todos os seus ramos, a mudança de indumentária
de um sempre semelhante”.
[9]
Sobre a vacuidade que
vislumbra nos bens culturais envolvidos na dinâmica imposta pela indústria
da cultura, em 1953, o pensador alemão escreve o texto “Moda intemporal”,
no qual se refere à música popular, no caso em questão o jazz, como uma
manifestação musical que a despeito da perenidade, era tão efêmera nos seus
quarenta anos
como se durasse apenas
uma saison. O jazz é uma maneira de interpretação. Como nas modas, o importante
é o espetáculo, e não a coisa
Alguns anos antes, durante a década de quarenta, quando se referia à “música popular” em contraposição ao que chamava “música séria”, Adorno estava pensando no jazz em comparação com a música erudita, exemplificada no ensaio “Sobre música popular” pela obra de Beethoven. [11]
Para o filósofo, a música popular ao trazer o som do objeto maquínico para o processo de fruição musical, tinha um efeito de distração sobre os ouvintes “das exigências da realidade”, ligadas ao modo de produção e ao “racionalizado e mecanizado processo de trabalho”. Em suma, Adorno via um “culto da máquina” representado nas “inabaláveis” batidas do jazz. Para ele, os homens se tornaram apêndices das máquinas em que trabalhavam, o que fazia com que “a adaptação à música de máquina” implicasse “necessariamente uma renúncia aos seus próprios sentimentos humanos e, ao mesmo tempo, um fetichismo da máquina tal que seu caráter instrumental” se tornava obscurecido. [12]
Para
a recepção dessa música não seria necessário qualquer grau de concentração,
pois o intuito era preponderantemente distrair o público. Uma aspiração
diametralmente oposta à busca de uma experiência plenamente concentrada
e consciente de arte. Em certa medida, a preocupação do maestro Júlio Medaglia
com a opção dos artistas pela música de entretenimento, que domina a cena
nos anos 80, principalmente através do rock, alinha-se às reflexões
do pensador alemão em torno da música popular de lazer e, certamente, não
se dá de forma gratuita a utilização, por parte tanto de Joaquim Aguiar
quanto do maestro, do funcionamento ininterrupto da “máquina” para fazer
referência à situação da música nos anos oitenta.
Entretanto,
existem algumas nuances no pensamento de Júlio Medaglia que devem ser ressaltadas
para que não se nublem algumas distinções entre as suas idéias e as ponderações
de Adorno. Na descrição das ações da indústria da cultura, o maestro ressalta
que “o que se tem presenciado é o surgimento de fenômenos de base ou pretensões
meramente empresariais, com o passar do tempo, ganharem status cultural
e não o contrário”.
[13]
O crítico cita o exemplo de alguns filmes de Hollywood
que são cultivados em cinematecas por intelectuais, embora tenham sido realizados
dentro dos mais rígidos processos industriais. No caso brasileiro, Medaglia
faz referência à televisão, que para ele é responsável por “preciosos momentos
de inspirada criação artística”. Diante
disso, caberia perguntar qual a motivação da sua impaciência em relação
à “invenção” da indústria no campo musical. O que parece irritar o maestro
nesse caso é que, para ele, o papel da indústria cultural deveria ser exclusivamente
o de veiculadora das produções musicais, enquanto a criação deveria ser
responsabilidade de artistas comprometidos com a cultura. Esses limites
já ficavam claros nas duas linhagens de música popular que traçava no “Balanço
da bossa nova”, as quais se diferenciavam justamente pela ultrapassagem
da fronteira da criação pela indústria. Havia, para ele, já em meados da
década de sessenta, uma distinção marcada entre a música popular cujo relacionamento
com a indústria se localizava no campo da veiculação e a música popular
cuja urdidura era forjada pela indústria fonográfica, que, através de um
“make up”, poderia espalhá-la pelos quatro cantos do mundo. O ensaísta parece
ter uma relação de amor e ódio com a “máquina”, e por vezes dá evidências
de que o problema seria o uso que se faz dela e não a “máquina”
o
Brasil sempre teve uma cultura popular espontânea, rica e forte, diversificada,
aliás não há país com uma "biodiversidade" musical tão rica como
o Brasil. Não sabemos é industrializar bem isso. Os Estados Unidos têm o
rockinho deles, o countryzinho e um pouco da música de salão que virou jazz,
e mais nada. Eles industrializam bem, ficam donos da música do mundo porque
são donos do dinheiro, do satélite e sobretudo porque são profissionais.
[14]
As expressões de impaciência do maestro - “Assim
não dá!...” e “Chega de lixo cultural!” - resultam da inação que o ensaísta
identifica nos criadores, ou melhor, na ação em direção à música de entretenimento
que redunda na já citada “inexistência de novos ou fortes motivos ou lideranças”.
Houve para ele um abandono por parte dos artistas do espírito crítico e
uma acomodação em virtude das facilidades exigidas e oferecidas pelo mercado
do disco. No caso de seus antigos companheiros de tropicália, Gil e Caetano,
o que ocorreu foi simples na sua opinião: “sobretudo estão ganhando muito
dinheiro. Do nosso ponto de vista, como somos pessoas inquietas, achávamos
que esse potencial podia ser usado de forma muito mais rica e crítica na
música brasileira. Mas...”.
[15]
Portanto, os criadores teriam deixado aberto um espaço
que até o Tropicalismo era ocupado por eles, pois, a seu ver, nenhuma coação
“conseguia interromper ou inibir a atividade e a avalancha de participação
social, política e cultural promovida pelos artistas da época e que tinha
na música brasileira o seu carro chefe”.
[16]
Dando voz a um estilo espalhafatoso, no texto “Abaixo
o orgasmo, viva a ereção”, Medaglia amplia as elaborações sobre essa espécie
de vazio criativo a que se refere no ensaio da Revista
USP.
Depois que
os anos 60 se foram, com sua exuberante provocação musical e comportamental,
internacionalmente liderada pelo rock
e no Brasil colorida pelos finos acordes da Bossa Nova, pelo frenesi ingênuo
do iê-iê-iê e pelo sarapatel das
idéias do Tropicalismo, parece que uma letargia mental se abateu sobre nossos
tão imaginativos e corajosos músicos. Quando, na década de 70 iniciou-se
a tal “distensão” e a liberdade de expressão, em vez de nossa vida musical
explodir em novos e surpreendentes projetos, caiu, ao contrário, num bolerento
e embolorado cancioneirismo linear, comandado pelas Simones, Ro-Ros e Joanas
da vida.
[17]
O
entusiasmo do autor em relação ao Tropicalismo direciona-se a um movimento
musical no qual o mesmo teve participação bastante efetiva. Um movimento,
que, com a proposta de exercer uma intervenção crítico-musical na nossa
cultura, elaborou uma estética que
ressaltava os contrastes
da cultura brasileira, como o arcaico convivendo com o moderno, o nacional
com o estrangeiro, a cultura de elite com a cultura de massa. Foi assim
que absorveu vários gêneros musicais como o samba, bolero, frevo, música
de vanguarda erudita e o pop-rock nacional e internacional, mas também as
inovações da Jovem Guarda, como a incorporação da guitarra elétrica. E,
dentro dessa mesma linha, buscou apropriar-se poeticamente de disparidades,
que iam de Brasília à Carmen Miranda, da palhoça – a habitação rústica de nosso
Brasil interiorano – ao legado do Movimento Modernista de 1922.
[18]
Essa
estética se construiu à luz de alguns eventos que marcaram a trajetória
tropicalista: em 1967, no Terceiro Festival de Música Popular Brasileira
de São Paulo, Gilberto Gil participa com “Domingo no parque” e Caetano Veloso
com “Alegria, alegria”, causando impacto tanto pelas letras quanto pelo
uso de instrumentos elétricos. A participação mais aguda de Júlio Medaglia
se dá justamente nos lances seguintes, pois, em 1968, são lançados os discos
tropicalistas Caetano Veloso e
Gilberto Gil. Do primeiro disco,
participam como arranjadores Júlio Medaglia, Sandino Hohagen e Damiano Cozzela
e, no segundo, Rogério Duprat. Do disco de Caetano fazia parte a canção
manifesto do movimento, “Tropicália”, cujo título foi sugerido pelo produtor
de cinema Luís Carlos Barreto, em referência a uma obra de Hélio Oiticica
[19]
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Tropicália (1967) |
O
tropicalismo é abordado no dossiê “Musica Brasileira” exatamente pelo seu
ponto de contato com a literatura, que surge como uma sorte de base de referência,
um referencial de qualidade e de estabilidade. O professor Charles Perrone se debruça sobre
as afinidades entre o poema concreto e a canção tropicalista, ao realizar
um mapeamento dos principais momentos de contato entre os membros dos grupos
tropicalista e o concretista. O ensaísta discorre sobre as reverberações
estéticas do poema concreto em algumas letras de canções tropicalistas:
o primeiro exemplo, mais do que esperado, é “Batmacumba” de Caetano e Gil. Charles Perrone lembra que é com o surgimento
do movimento tropicalista em 1967 que o grupo Noigandres se aproxima do
campo da música popular. Uma aproximação iniciada, mais precisamente em
outubro de 1966, quando Augusto de Campos, em matéria jornalística, saúda
o jovem compositor baiano Caetano Veloso e a sua música “Boa Palavra” (II
Festival Nacional da Música Popular, TV Excelsior). Nessa oportunidade,
o poeta traça paralelos entre a “retomada da linha evolutiva” proposta por
Caetano em entrevista e a deglutição estética de Oswald de Andrade, um dos
artistas da palavra que inspiraram os poetas concretos”.
[23]
Em
sua incursão no campo dos estudos melopoéticos, interessados na interface
entre música e literatura, Perrone cobre o consenso, o paralelismo estético
entre a tropicália e o concretismo, pois se concentra de forma quase que
exclusiva em mostrar graficamente como as letras de algumas canções ecoam
esteticamente o poema concreto. O ensaísta focaliza o contato entre os movimentos
artísticos somente no sentido da poesia concreta para a música popular.
Esse tipo de fluxo, da literatura para a canção, é observado também no texto
de Antonio Medina Rodrigues, quando este assinala que a moderna crítica
da canção popular, dividida entre o comentário da letra e o da aparelhagem
técnica, é freqüentemente associada à esfera da literatura ou à do espetáculo
cênico. Dois pólos de opinião crítica dos quais a canção popular quer se
aproximar, pois, segundo o ensaísta,
isto
lhe dá uma certa segurança. Os compositores se esforçam cada vez mais por
serem admitidos no território das musas poéticas. Por outro lado, essa tendência
dos compositores, que roubam da linguagem literária seus melhores momentos,
também representa o reconhecimento de uma espécie de crepúsculo da oralidade
“pura”, do lado da cultura popular. O compositor moderno já faz força para
ser “lido”. Além disso, esta tendência que reforça o valor da leitura na
composição popular se apóia numa forte expectativa do público, que do compositor
espera certas “soluções”.
[24]
Mais
uma vez a literatura aparece associada a uma idéia de estabilidade, ou como
quer Medina Rodrigues, de segurança. No dossiê Música brasileira, a literatura
surge nos textos que avaliam a produção cultural contemporânea ora delineada
enquanto referencial de qualidade e segurança, como assevera Antonio Medina
Rodrigues, ora enquanto manancial para outros campos da criação artística,
como descreve Charles Perrone.
Após
a leitura dos textos do dossiê Música Brasileira, as reflexões de Luiz Tatit
em “Canção, estúdio e tensividade” potencializam seu escopo, pois o desassossego
do ensaísta se instala como um ponto de vista polêmico em relação às reflexões
que ali se realizam, as quais, em alguma medida sugerem vinculações aos
perfis por ele delineados. O texto de Tatit constitui uma sorte de prisma
que coloca à disposição do leitor um enfoque em relação ao contexto que
se constrói naquele espaço aberto à observação da canção nos anos 80. Ainda
que haja por parte dos ensaístas envolvidos no debate uma manifesta intenção
de promover um balanço dos sons produzidos naquele momento, ou seja, uma
avaliação da produção cultural quando esta acabava de sair do forno, o que
se vê de fato é uma estupefação diante de um presente ali caracterizado
como um tempo de valores desestabilizados e de hegemonia da indústria de
bens culturais. Os olhos se turvam diante de um presente movediço.
A saída é buscar âncoras, procurar pontos de apoio, seguindo pistas que
levem até paragens em que se desembaralhem os critérios. A alternativa a
esse presente de “vale tudo” está nos bens culturais que participaram de
movimentos que, aos olhos dos analistas, extrapolaram as simples ambições
de caráter mercadológico. No limite, o que se lê é um “presente” nostalgicamente
recheado de passado.
_______.
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