ENUNCIAÇÃO
CANTADA: O SUJEITO FEITO NAS VIBRAÇÕES CORPORAIS*
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PEDRO DE SOUZA é Doutor
em Lingüística pela UNICAMP e professor de Lingüística
na Universidade Federal de Santa Catarina
* Trabalho apresentado no Floripa em composição, realizado em 2004 na UFSC.
[It]-- [cost]- (piano) me a lot (pausa),
But there's one thing (pausa)
that I've got (pausa),
it's my [man]-. it's my [man]-
O travessão,
o colchete e o parêntesis são empregados aqui para indicar, na
cadeia da fala cantada, pontos de descontinuidades tais como pausas longas
e breves, intensidades e duração, e também a interferência
de sons outros que, no canto, atuam ao lado da voz: acordes instrumentais
que se solidarizam com o ritmo imposto pela vocalização.
Mas se, no caso das três palavras tomadas em sua seqüência
na frase melódica, a pausa indica um ato de segmentação
sonora que sucede à emissão de cada uma delas, o mesmo não
se observa se tomamos isoladamente lot e got , que perfazem
o ápice silábico onde se cria uma rima. Aludo aqui à
intensidade, ou seja, a força expiratória que a voz de Billie
emprega para realizar o som de cada um desses itens lexicais. Por certo, uma
medição acústica mais precisa, nos faria ver que em got.
a voz de Billie vibra em uma intensidade maior, que em lot. Vejamos
como se pode representar esse diferencial de intensidade na partitura que
corresponderia à traços da interpretação de Billie
Holiday na frase melódica em questão:
Conforme se vê
na transcrição da partitura executada por Billie, as pausas
são escandidas em pontos diferentes da frase melódica: ora aparecem
no intervalo entre um segmento fônico e outro, ora aparecem exatamente
sobre um determinado segmento fõnico. Em todas estas ocorrências,
as pausas são
arbitrariamente expandidas, o que na linguagem musical designa um fermata
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notado pelo símbolo ao lado[1], ou seja, o fermata é o indicador
de uma pausa maior não prevista na partitura criada pelo compositor.
Musicalmente, trata-se de uma suspensão arbitrária da duração
da nota, ato em que o intérprete reinventa o modo de enunciar a palavra
proferida sob o suporte musical. notado arbitrária, se comparamos com
o modo com que ela emite lot.
Em verdade, a partitura mostra a diferença de freqüência
na fonação dos segmentos: "got" é emitido na
nota sol e "lot", na nota mi . De modo que, em termos
de interpretação, a comparação mais pertinente
diz respeito à duração resultando no efeito de tempos
mais breves ou mais longos, conforme a intensidade impressa.. Destaque-se
aí como a cantora distribui diferentemente a intensidade de emissão
vocal, ou seja, como combina intensidade e brevidade em relação
respectivamente á força de expiração e à
duração da nota. É o que apontamos no modo como Billie
canta "lot" e "got" imprimindo nesta uma
força mais intensa que naquela.
É o caso de ressaltar aqui a funcionalidade da força acentual
em termos enunciativos. Dizer mais intensamente significa em termos da constituição
do indivíduo que canta em sujeito. De modo que, além de emitir
mais intensamente a palavra "got" comparado com o modo com
que emitiu "lot", a voz de Billie abre o tempo entre os segmentos
"got" e "it's" fazendo da pausa expandida
uma lacuna que resulta em efeito de subjetivação.
Este modo de enunciar cantando produz a posição do sujeito constituído
frente a seu drama amoroso. É como se a cada parada, o sujeito marcasse
a desconexão entre o lugar do qual fala e os possíveis discursos
que significam esse mesmo lugar de subjetivação na experiência
amorosa Essa diferença de acento expiratório resulta respectivamente
em vibrações mais baixas e mais altas, colocando em relevo não
só o acento recaído sobre a unidade silábica da frase
melódica, mas sobretudo o sentido a ser interpretado na palavra cantada
nesta posição.
No ponto da cadeia da fala em que se localiza as duas palavras, é o
caso de ligar as intensidades mais baixas e altas da força com que
a frase melódica é emitida ao sentido que se efetiva na enunciação
da canção, por sua letra e melodia. Dito de outro modo, na combinação
entre intensidades, nesta interpretação que Billie dá
a My man, há um efeito de subjetivação imputado
ao modo com que o corpo é solicitado para fazer vibrar o som. É
como se movimentos corporais específicos determinassem uma velocidade
temporal de expiração e inspiração que, antecedendo
a um resultado sonoro, fosse proporcional à intensidade com que o som
é efetuado neste ato.
Verifica-se assim, através desta interpretação de Billie,
uma variação na mesma melodia percebida por curvas entoativas.
Tais curvas produzem espaços vazios, pontos de suspensão da
voz indicados por pausas ou pela junção de um acompanhamento
instrumental que se acrescenta ao efeito de sentido que a intérprete
está em vias de enunciar. Acentua-se, na entoação da
mesma frase melódica, um contraste rítmico propiciado pela interferência
de componentes sonoros de natureza supra-enunciativo - pausas e acordes instrumentais
que escandem a sucessão dos conteúdos das palavras cantadas,
projetando sobre estas palavras um sentido que não vem delas, mas da
força imposta ao ato de dizê-las.
Desse modo é que a fluência prosódica é quebrada
na medida em que são indiferentes a rígidas estruturas gramaticais.
Ou seja, não importa se "lot" e "got"
correspondem a um nome, advérbio ou verbo. O que importa é que
sobre a posição em que são ditas incidem marcadores de
descontinuidade - alongamentos, pausas e variações da altura
melódica - que modificam o modo semântico com que devem ser escutadas.
Daí resulta a compreensão de que o cansaço define a forma
do sujeito que fala no canto de Billie. A descontinuidade durativa entre uma
pausa e outra e entre uma intensidade e outra descreve um eu, que amando se
faz pela mistura indissociável entre cansaço e insistência.
Vê-se como se pode descrever as diferentes performances vocais de Billie,
modos de enunciação que não remetem ao sentido concretamente
rubricado nas palavras articuladas na pauta musical da canção,
mas à possibilidade de significar. Assim de si para si, Billie pode
enunciar toda a disposição à entrega amorosa, porém,
em um processo de subjetivação que incessantemente se recria:
trata-se da potência de ser em ladys sings the blue. Há,
nas variações interpretativas que sua voz propicia à
interpretação de My man, a produção conseqüente
de uma subjetividade no instante do canto.
O que pode marcar a diferença entre a palavra cantada e a palavra falada
é que aquela, conspirando com suprasegmentos do nível prosódico
da linguagem, pode produzir sentido além do seu limite morfológico
e sintático. Os descompassos entre um segmento fônico e um traço
rítmico marca uma não-coincidência entre o sentido da
palavra e a unidade sonora que lhe dá suporte. Uma pausa, um alongamento
ou uma intensidade maior na emissão de um elemento sonoro pode reter
a duração enunciativa mostrando o trajeto do dizer se marcando
na zona da disjunção entre a palavra e seu sentido. Deter o
fluxo enunciativo é suspendê-la, evidenciando as relações
descontinuas entre seus componentes e uma suposta significação.
Isso faz pensar o jogo enunciativo com o tempo no quadro da palavra cantada.
Graças à particularidade do som na música, a fala cantada
abre possibilidades de sentido para as palavras ditas sob o suporte de uma
linha melódica, que, na repetição, é sempre suscetível
de ser outra. A cada vez que a palavra é enunciada em uma melodia,
esse ato de enunciar torna possível uma significação
virtualmente inusitada, diferente.
Deste modo, a duração vocal realizada por Billie Holiday em
determinados segmentos melódicos, por exemplo na canção
My man, expõe um modo de subjetivação produzido
no intervalo que se abre entre um segmento melódico e prosódico
e um sentido a vir nas palavras que aí se articulam. Não se
trata de uma duração medida cronologicamente, mas de uma percepção
do tempo de enunciação, no instante do proferimento da palavra
cantada, como possibilidade que atua a própria musicalidade, expondo
seu potencial subjetivante, ou seja, o de constituir o eu do individuo que
se diz cantando.
A propriedade de o canto cortar nas palavras suas unidades silábicas
é marca da vocalização de Billie Holiday. Billie sempre
gostou de cantar dezenas de vezes a mesma canção, mas a cada
ato interpretativo acontecia sempre uma repetição que era a
retomada de uma diferença; ou a retomada de uma possibilidade de um
novo jeito de dizer cantando idênticas palavras. Assim se pode descrever
a dimensão performática de uma cantora que sempre lutou para
cantar o que queria da forma como queria.
Em sua autobiografia, ela mesma conta: "as pessoas dizem que ninguém
canta palavras como "hunger" ou "love" como eu".
Ao impor-se a diferença como o fundamento de suas interpretações,
Billie Holiday torna possível a abertura de um espaço em que
não somente repete a partitura de uma canção, mas participa
de um ato criador, confundindo o ato de interpretar com o de compor, já
que no final das contas o si mesmo da lady Billie era o resultado final
da criação quando cantava.
[1]
símbolo da pausa (fermata):