ISSN: 1806-9401
enunciação cantada: o sujeito feito nas vibrações corporais

ENUNCIAÇÃO CANTADA: O SUJEITO FEITO NAS VIBRAÇÕES CORPORAIS*
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PEDRO DE SOUZA é Doutor em Lingüística pela UNICAMP e professor de Lingüística na Universidade Federal de Santa Catarina

 

 



* Trabalho apresentado no Floripa em composição, realizado em 2004 na UFSC.


O que pretendo tematizar aqui é não só o sentido advindo da articulação letra/melodia, mas o jogo da repetição e da diferença que se produz em cada ato de enunciação das mesmas palavras imbricadas em sons de natureza lingüística e musical. Para isso, tomo como objeto de análise duas das interpretações de Billie Holiday para a canção My Man, de Jacques Charles e Maurice Yvain. Quero me ater no modo com que o elemento da duração é um componente que trabalha o encontro simultâneo entre duas séries de sonoridade na palavra que se enuncia cantando.

Tais séries de sonoridade, eu as defino aqui a partir de um ponto de vista lingüístico em que a emissão das palavras obedece a um principio de articulação. Trata-se da maneira de vocalizar sons que resultam imediatamente em unidades lingüísticas de nível morfológico e prosódico. Particularmente, a prosódia diz respeito a um mecanismo de articulação de que participam sons que se superpõem à cadeia sonora constituindo o grupo dos chamados traços supra-segmentais, ou seja, o som lingüístico considerado do ponto de vista de seu modo de pronunciar. De modo que o ritmo, a intensidade, o alongamento, a pausa, a hesitação são elementos que compõem a dimensão prosódica de uma enunciação lingüística.

É certo que, para os fins de uma abordagem morfo-fonológica de tradição estruturalista, as línguas em geral operam segundo um mesmo sistema de articulação, ou seja, um determinado conjunto de regras que regulam o modo como as unidades sonoras devem ser segmentadas para formar sílabas, palavras, frases.

O que para a fonologia contemporânea vai mudar, no interior desse modelo articulatório, é o critério sob o qual os sons aí se articulam. Nas línguas latinas, por exemplo, o sistema de atamento dos elementos de uma palavra ou frase segue a perspectiva da forma lógica, em que cada segmento na cadeia linear da fala deve corresponder a um sentido previamente calculável. Já no inglês, por exemplo, a língua materna de Billie Holiday, não é a correspondência lógica de sentido que importa para a emissão das palavras, mas sim a força com que seus componentes sonoros são proferidos. Tem-se nesta língua a regência do mesmo modelo de articulação que se encontra em outras, porém realizado sob os auspícios de outro modo de realização sonora. Refiro-me aqui aos acidentes e particularidades do modo de vocalizar que modificam a rigidez com que o som emitido pode ser classificado como uma unidade morfológica ou prosódica.

Falo então dos componentes materiais, não da articulação que recorta o som em sílabas, lacunas, acentuações na voz do individuo que canta, mas no ato mesmo de articular que propicia a enunciação e a efetivação do sujeito no discurso. Trata-se enfim do movimento vocal que é impulsionado pelo corpo inteiro e acontece indiferente à unidade prosódica, morfológica ou sintática da língua. Eis o traço especifico do pretendo apontar da singularidade no ato de falar cantando: o corpo que põe seus órgãos a serviço da articulação de uma gama sonora de natureza híbrida - fonema, acento, ritmo, harmonia, etc - que busca realizar a palavra cantada.

Esse ponto de vista é para mim o referencial de escuta para as várias interpretações que Billie Holiday realizou, por exemplo, para My man. Nesta, que teria uma das mais repetidas por ela, Billie brinca não só com a voz e a interpretação, mas com os efeitos que tira disso, construindo a si mesma como sujeito das experiências amorosas que faz acontecer no momento em que interpreta uma melodia. A verdade de suas histórias de paixão resulta de uma impostura de voz no instante da enunciação cantada.

Com base em uma descrição mais detalhada dos componentes sonoros - musicais e prosódicos - da palavra cantada, é possível definir a repetição combinada com a diferença que se acha no centro da técnica vocal de Billie Holiday. Daí que arte interpretativa e composicional se confundem na medida em que Billie torna possível algo impensado pelo compositor ao compor a canção entregue á arte vocal da cantora.

Quando se compara as diferentes interpretações de Billie Holiday para uma mesma canção, é de se perguntar se se trata de uma mesma partitura. De qualquer modo, de diferentes partituras interpretativa, o quês e repete é a melodia. Por certo a repetição é uma força que faz a voz reproduzir a mesma melodia, tal como composta; mas de tanto se repetir a música resvala, fica suscetível de tornar-se diferente, não do que é, na sua forma original de composição, mas do que poderia ser no momento em que os primeiros acordes tornaram possível sua criação.

Exemplo disso é o tom irônico com que ela emite frases melódicas cantando My man na apresentação de 6 de julho de 1957, no Freebodypark, em Newport. Acompanhada por três músicos, após uma breve introdução do piano, Billie entra vagarosamente com sua voz, abrindo tempo para o dizer que produz a forma cool, resignada do sujeito amoroso. A elasticidade temporal que marca sua interpretação pode ser decomposta nas pausas e alongamentos vocálicos na emissão da primeira frase melódica: a voz de Billie é impulsionada de modo a distribuir pausas, intensidade e lacunas entre segmentos fônicos e rítmicos.

[It]-- [cost]- (piano) me a lot (pausa),
But there's one thing (pausa)
that I've got (pausa),
it's my [man]-. it's my [man]-

O travessão, o colchete e o parêntesis são empregados aqui para indicar, na cadeia da fala cantada, pontos de descontinuidades tais como pausas longas e breves, intensidades e duração, e também a interferência de sons outros que, no canto, atuam ao lado da voz: acordes instrumentais que se solidarizam com o ritmo imposto pela vocalização.

Mas se, no caso das três palavras tomadas em sua seqüência na frase melódica, a pausa indica um ato de segmentação sonora que sucede à emissão de cada uma delas, o mesmo não se observa se tomamos isoladamente lot e got , que perfazem o ápice silábico onde se cria uma rima. Aludo aqui à intensidade, ou seja, a força expiratória que a voz de Billie emprega para realizar o som de cada um desses itens lexicais. Por certo, uma medição acústica mais precisa, nos faria ver que em got. a voz de Billie vibra em uma intensidade maior, que em lot. Vejamos como se pode representar esse diferencial de intensidade na partitura que corresponderia à traços da interpretação de Billie Holiday na frase melódica em questão:

 

 

 

 

 

Conforme se vê na transcrição da partitura executada por Billie, as pausas são escandidas em pontos diferentes da frase melódica: ora aparecem no intervalo entre um segmento fônico e outro, ora aparecem exatamente sobre um determinado segmento fõnico. Em todas estas ocorrências, as pausas são
arbitrariamente expandidas, o que na linguagem musical designa um fermata -
notado pelo símbolo ao lado[1], ou seja, o fermata é o indicador de uma pausa maior não prevista na partitura criada pelo compositor. Musicalmente, trata-se de uma suspensão arbitrária da duração da nota, ato em que o intérprete reinventa o modo de enunciar a palavra proferida sob o suporte musical. notado arbitrária, se comparamos com o modo com que ela emite lot.

Em verdade, a partitura mostra a diferença de freqüência na fonação dos segmentos: "got" é emitido na nota sol e "lot", na nota mi . De modo que, em termos de interpretação, a comparação mais pertinente diz respeito à duração resultando no efeito de tempos mais breves ou mais longos, conforme a intensidade impressa.. Destaque-se aí como a cantora distribui diferentemente a intensidade de emissão vocal, ou seja, como combina intensidade e brevidade em relação respectivamente á força de expiração e à duração da nota. É o que apontamos no modo como Billie canta "lot" e "got" imprimindo nesta uma força mais intensa que naquela.

É o caso de ressaltar aqui a funcionalidade da força acentual em termos enunciativos. Dizer mais intensamente significa em termos da constituição do indivíduo que canta em sujeito. De modo que, além de emitir mais intensamente a palavra "got" comparado com o modo com que emitiu "lot", a voz de Billie abre o tempo entre os segmentos "got" e "it's" fazendo da pausa expandida uma lacuna que resulta em efeito de subjetivação.

Este modo de enunciar cantando produz a posição do sujeito constituído frente a seu drama amoroso. É como se a cada parada, o sujeito marcasse a desconexão entre o lugar do qual fala e os possíveis discursos que significam esse mesmo lugar de subjetivação na experiência amorosa Essa diferença de acento expiratório resulta respectivamente em vibrações mais baixas e mais altas, colocando em relevo não só o acento recaído sobre a unidade silábica da frase melódica, mas sobretudo o sentido a ser interpretado na palavra cantada nesta posição.

No ponto da cadeia da fala em que se localiza as duas palavras, é o caso de ligar as intensidades mais baixas e altas da força com que a frase melódica é emitida ao sentido que se efetiva na enunciação da canção, por sua letra e melodia. Dito de outro modo, na combinação entre intensidades, nesta interpretação que Billie dá a My man, há um efeito de subjetivação imputado ao modo com que o corpo é solicitado para fazer vibrar o som. É como se movimentos corporais específicos determinassem uma velocidade temporal de expiração e inspiração que, antecedendo a um resultado sonoro, fosse proporcional à intensidade com que o som é efetuado neste ato.

Verifica-se assim, através desta interpretação de Billie, uma variação na mesma melodia percebida por curvas entoativas. Tais curvas produzem espaços vazios, pontos de suspensão da voz indicados por pausas ou pela junção de um acompanhamento instrumental que se acrescenta ao efeito de sentido que a intérprete está em vias de enunciar. Acentua-se, na entoação da mesma frase melódica, um contraste rítmico propiciado pela interferência de componentes sonoros de natureza supra-enunciativo - pausas e acordes instrumentais que escandem a sucessão dos conteúdos das palavras cantadas, projetando sobre estas palavras um sentido que não vem delas, mas da força imposta ao ato de dizê-las.

Desse modo é que a fluência prosódica é quebrada na medida em que são indiferentes a rígidas estruturas gramaticais. Ou seja, não importa se "lot" e "got" correspondem a um nome, advérbio ou verbo. O que importa é que sobre a posição em que são ditas incidem marcadores de descontinuidade - alongamentos, pausas e variações da altura melódica - que modificam o modo semântico com que devem ser escutadas. Daí resulta a compreensão de que o cansaço define a forma do sujeito que fala no canto de Billie. A descontinuidade durativa entre uma pausa e outra e entre uma intensidade e outra descreve um eu, que amando se faz pela mistura indissociável entre cansaço e insistência.

Vê-se como se pode descrever as diferentes performances vocais de Billie, modos de enunciação que não remetem ao sentido concretamente rubricado nas palavras articuladas na pauta musical da canção, mas à possibilidade de significar. Assim de si para si, Billie pode enunciar toda a disposição à entrega amorosa, porém, em um processo de subjetivação que incessantemente se recria: trata-se da potência de ser em ladys sings the blue. Há, nas variações interpretativas que sua voz propicia à interpretação de My man, a produção conseqüente de uma subjetividade no instante do canto.

O que pode marcar a diferença entre a palavra cantada e a palavra falada é que aquela, conspirando com suprasegmentos do nível prosódico da linguagem, pode produzir sentido além do seu limite morfológico e sintático. Os descompassos entre um segmento fônico e um traço rítmico marca uma não-coincidência entre o sentido da palavra e a unidade sonora que lhe dá suporte. Uma pausa, um alongamento ou uma intensidade maior na emissão de um elemento sonoro pode reter a duração enunciativa mostrando o trajeto do dizer se marcando na zona da disjunção entre a palavra e seu sentido. Deter o fluxo enunciativo é suspendê-la, evidenciando as relações descontinuas entre seus componentes e uma suposta significação.

Isso faz pensar o jogo enunciativo com o tempo no quadro da palavra cantada. Graças à particularidade do som na música, a fala cantada abre possibilidades de sentido para as palavras ditas sob o suporte de uma linha melódica, que, na repetição, é sempre suscetível de ser outra. A cada vez que a palavra é enunciada em uma melodia, esse ato de enunciar torna possível uma significação virtualmente inusitada, diferente.

Deste modo, a duração vocal realizada por Billie Holiday em determinados segmentos melódicos, por exemplo na canção My man, expõe um modo de subjetivação produzido no intervalo que se abre entre um segmento melódico e prosódico e um sentido a vir nas palavras que aí se articulam. Não se trata de uma duração medida cronologicamente, mas de uma percepção do tempo de enunciação, no instante do proferimento da palavra cantada, como possibilidade que atua a própria musicalidade, expondo seu potencial subjetivante, ou seja, o de constituir o eu do individuo que se diz cantando.

A propriedade de o canto cortar nas palavras suas unidades silábicas é marca da vocalização de Billie Holiday. Billie sempre gostou de cantar dezenas de vezes a mesma canção, mas a cada ato interpretativo acontecia sempre uma repetição que era a retomada de uma diferença; ou a retomada de uma possibilidade de um novo jeito de dizer cantando idênticas palavras. Assim se pode descrever a dimensão performática de uma cantora que sempre lutou para cantar o que queria da forma como queria.

Em sua autobiografia, ela mesma conta: "as pessoas dizem que ninguém canta palavras como "hunger" ou "love" como eu". Ao impor-se a diferença como o fundamento de suas interpretações, Billie Holiday torna possível a abertura de um espaço em que não somente repete a partitura de uma canção, mas participa de um ato criador, confundindo o ato de interpretar com o de compor, já que no final das contas o si mesmo da lady Billie era o resultado final da criação quando cantava.



[1]
símbolo da pausa (fermata):



 

 

 

 

 

 

 

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