ISSN: 1806-9401
entre as dobras do ritmo e da palavra, o corpo fala.

ENTRE AS DOBRAS DO RITMO E DA PALAVRA, O CORPO FALA
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PAULO CÉSAR GARCÍA e Doutorando em Teoria Literária na Universidade Federal de Santa Catarina e Professor Assistente de Literatura na Universidade Estadual da Bahia


Primeiro a praia, depois uma estréia,
depois o Baixo, e finalmente a festa
de madrugada, numa cobertura:
e eis que as nuvens a cobrir a lua
e o corcovado já se dispersavam,
auspiciando uma manhã de praia
para um rapaz que àquela altura era
derradeiro barco para Citera.

Antonio Cícero

 

Ao som em si e por si da música corresponde o som articulado da linguagem verbal. Há de um lado, um discurso que é também som, isto é, entoação e ritmo. Do outro, um material sonoro que se superpõe e se organiza em grupos animados pelo ritmo, mas percebidos de forma diversa, por meio da harmonia vertical do contraponto horizontal.

Solange Ribeiro


A correspondência entre os textos citados, em epígrafe, me permite considerar questões que envolvem poesia e música ou, se desejar, a articulação entre o verbal e o sonoro. A propósito, Solange Ribeiro de Oliveira reforça a tese da metáfora musical como importante apreciação da literatura contemporânea, principalmente, "quando alude às formas musicais marcadas, como o mundo em que se inserem, pela questão do hibridismo"[1].

Minha análise visa buscar, mediante o verbal e o não verbal, o ritmo pelo qual se constrói uma forma de falar o sujeito. Não somente por esse fundamento e sim pelo modo como este se serve da musicalidade, o objeto em si, ou seja, do que se fala nessa textualidade quando a própria música presentifica uma forma de expressar temas e relações de gênero.

A poesia de Antonio Cícero[2] traz elementos de inflexão. Sua obra se reveste de um tom que se desdobra, reterritorializando locais de fala, não propriamente demarcado nas linhas limítrofes, porém, deixando-o sobrepor no ponto da diferença. Forma e percepção se redobrando na materialidade do significante e como nesta produz-se o dito.

Em Antigo verão, da coletânea A cidade e os livros, por exemplo, o labirinto urbano é revestido por uma linguagem barroca no qual a poesia converge para um enviesamento de tons múltiplos e sugestivos. Entre o alto e o "Baixo", entre a flexão e a reflexão, a palavra invoca uma harmonia, paradoxalmente, contrapondo a unidade do sentido, sendo esta, por sua vez, suprimida pelo gesto do olhar.

A poesia de Cícero guarda e retira, ao mesmo tempo, o ato de ecoar sons, tons, palavras. Wisnik revela que sua obra é vista "como o refluxo da onda irradiante da descoberta primeira e eletrizante de se pertencer, anônimos entre anônimos, à cidade labirinto, se encolhendo em atuais cidades claustrofóbicas, não fossem (ainda) 'os livros infinitos que contém'"[3] .

Pela afirmação do poeta e compositor Antonio Cícero - ao "andar sem medo no centro da cidade proibida, em meio à multidão que nem notava que eu não lhe pertencia, pois todas as cidades encolheram, são previsíveis, dão claustrofobia e até dariam tédio, se não fossem os livros infinitos que contêm"[4] -, o desafio frente a infinitude dos livros é mesmo atravessar as fronteiras. E, das pegadas do dândi, ao tentar rastrear os fantasmas do significado do criar, evoca a imagem da poesia constantemente se travestindo, como também a música sendo remetida a ponto de reflexão, vigorando e revigorando um agora incomum: "Um rei assim não ouve muito bem e adora luz; sem ver ninguém prefere olhar o horizonte, o céu: longe daqui é tudo seu. Devo dizer que não sofri demais. Devo dizer que acordei. Mesmo sem ser tudo que imaginei devo dizer que o amei"[5].

Em ambas, o inusitado acontece pela captação de si, estando em interação com o imaginário cujo substantivo, conjunção, gerúndio constrói um mundo; produz uma imagem interagindo com um sistema em funcionamento. Quer dizer, o gozo da leitura/do ouvir vem do corpo, que ressoa na escrita/na música e nas quais a voz se distende, se dissemina, se serve de algo formalizado no texto.

A descoberta primeira de pertencer anônimo entre anônimos na cidade equivale a manter-se como um dândi, vivo, fazendo-se circular, sem intenções, sem provisões. Trazendo em si o frescor imagético incomum, suas afirmações são nutridas pelo ponto de partida de exercitar um modo de ser, ou seja, os livros respiram entre si, entrelaçados, desembocando na cidade-livro a via do inventário ou do reinventário da realidade.

Se a cidade é movida por ruídos, gritos, fluições sonoras, os poemas constituem em si a fluidez dessas vozes que transitam na cidade-livro, absorvendo suas camadas sonoras. Da Grécia antiga, à confusão de línguas, o poeta se arma dos reflexos das máquinas da urbe contemporânea para sobrepor ao lirismo o tom musical em seus textos, reestruturando a experiência do corpóreo como exercício mesmo de se fazer ver e escutar.

O ato de ver e do escutar é também a condição do criar, do fazer poesia e música, palavra e som aliados: "No fundo de mim sou sem fundo". Silviano Santiago, ao analisar o livro Guardar, afirma que "não há o que buscar na dita do poema, ou seja, entre os guardados do poeta. Há sempre o que colher, a voz do poeta que ecoa é perversamente a voz de quem a escuta"[6].

Em que pesa a poesia quando fala de si mesma? "Por onde começar?" Essas questões formuladas no interior dos versos de Cícero são uma tentativa de refletir o ato de guardar e recolher o verbal, sobrepondo tons, expressões, gestos sonoros como experimentais para o fruto do prazer. A poesia se desdobra na música e a música se desdobra na poesia sob ondas filosóficas cuja mutação da palavra e da sonoridade é um devir. Quer dizer, elas sempre designam no interior de si mesmas tendo a repetição a incessante maneira de empreender a percepção do olhar e do escutar e pondo, em mira, o vertiginoso corpo e sua relação com a criação. Em Cajuína transcendental, Wisnik, partindo dos pressupostos teóricos em Heidegger, acredita que o "interroga[mento] [d]o sentido da existência é um lugar comum destinado à eterna repetição, lugar comum que ganha no entanto, a cada 'outra vez em quando' (para usarmos a expressão de Guimarães Rosa), a sua singularidade irredutível"[7].

Acredito que a busca do homoerótico nos textos de Cícero - "Por onde começar?" -, é feita desses atos anônimos, nos labirintos urbanos, "auspiciando uma manhã de praia para um rapaz que àquela altura era derradeiro barco para Citera", onde a palavra está mesmo se esgotando nos versos, demandando pela pergunta sempre movente e não preenchida, chegando a momentos de escárnio:

Por onde começar? Pelo começo absoluto, pelo rio Oceano,
já que ele é, segundo o poeta cego
em cujo canto a terra e o céu escampo
e o que é e será e não é mais
e longe e perto se abrem para mim,...

Prólogo (CL, p. 11).

Quem divisa o olhar desse moreno?
Namora os tênis atrás da vitrine?
e ele recai na imagem de si mesmo,
igualmente visível e intangível?
Vitrine (CL, p.55)

As letras brancas de alguns versos me espreitam,
em pé, do fundo azul de uma tela atrás
da qual luz natural adentra a janela
por onde ao levantar quase nada o olhar
vejo o sol aberto amarelar as folhas
da acácia em alvoroço: Marcelo está
para chegar.
Alguns versos (CL, p. 17).

A noite inteira sozinho
do lado de lá do rio
lutava comigo um homem
e ninguém prevalecia.
Deixa-me ir que já rompe o dia,
de manhãzinha ele me disse mas eu
Perguntei: "Como te chamas?"
A luta (CL, p.53)


Noto que o ritmo no qual o verso é tomado e retomado propõe o movimento, materializado pelas sensações do olhar, clamando-se e expressando-se, como uma passagem para algo novo que ainda não sabemos nomear. A impossibilidade mesma do exprimir, desestabiliza o gesto de significar. Como processo lacunar, o extremo dos versos está ligado à liberdade de viver. É nessa pessoalidade inscrita que surge um eu à procura do outro: "Marcelo está para chegar". Enquanto não chega, o jeito é pintar sua escrita de cores, de sons, e assumindo um certo barroquismo no jeito de transpor, em palavras, o trânsito multiforme entre "o que é e será e não é mais".

Isso atende a um desmembramento de um centro porque se compreende na expressão infinita de refletir o verso do poeta como distendido de uma estrutura coesa. A textura é ritmo, é forma. Por se tratar de uma obra labiríntica, a multiplicidade das dobras dos versos ocorre na maneira como desdobra as relações diferenciais, entre outras percepções. Se "o ritmo é a organização expressiva do movimento", conforme pensamento de Mário de Andrade, significa que a alternância de uma linha melódica sobrepõe-se a outra, diferenciando-as pelo tom e pelo fator tempo pelos quais estes fazem emergir certas durações de sinais sonoros ou melódicos menos intensos ou mais intensos de acordo com os motivos expressivos.

Desperta-me atenção ao argumento de Deleuze quando se reporta à experimentação individual e sua dissonância no mundo. "Mas por que dar o nome de Adão a todos esses indivíduos divergentes em mundos impossíveis? É que uma singularidade pode sempre ser isolada, excisada [amputada], ter podado seus prolongamentos: então, já não importa que o jardim em que Adão peca não seja o mesmo jardim em que Adão pode não pecar; a singularidade torna-se indefinida, sendo tão somente um jardim, e o predicado primitivo já não é apreendido neste ou naquele mundo"[8].

Isto remete ao princípio através do qual o espaço atribui sua singularidade, isto é, cabe preenchê-lo numa ordem de tempo, "cada mundo pertence um espaço-tempo (como ordem das distâncias indivisíveis de uma singularidade a outra, de um indivíduo a outro), e pertence, inclusive, um extenso (como prolongamento contínuo, segundo as distâncias). O espaço, o tempo e o extenso é que estão no mundo a cada vez, e não o inverso. O jogo interioriza não só os jogadores que servem de peça, mas a mesa sobre a qual se joga e o material da mesa"[9].

É de pensar assim que a música cria seu espaço, seus índices de acaso, pois em cada nota musical, em cada ritmo restitui algo não completamente formalizado. Todos os princípios são lançados ao Acaso, como na poética de Mallarmé. Falo de uma forma do pensamento que não se prende às forças racionais, visto que o pensar aparece, "no domínio a partir do qual as coisas aparecem e no qual elas em geral desaparecem. O aparecimento é a máscara atrás da qual ninguém se encontra, atrás da qual nada há, justamente, além do nada, o Nada, mais do que qualquer coisa"[10].

Vejo essa concepção como correspondente ao uso reflexivo dos segredos da vida sobre os quais algo se tira, não propriamente do dado transparente. O oculto ou a máscara ganha uma luminosidade maior quando se responde a tal objeto explícito. E assim, certamente, é possível buscar a melodia de uma composição musical e poética, partindo dessas teorias, principalmente, quando determinadas marcas sonoras se encontram na memória. Diante disso, Solange Ribeiro considera "a estrutura temporal, decisiva para a música e para a literatura, só pode[ndo] ser percebida em retrospecto, quando os desenhos rítmicos se combinam na memória, criando padrões estruturais abrangentes"[11].

Trata-se, portanto, de um jogo de reflexão em que a inexistência da referencialidade externa passa a tensionar com a visibilidade das relações internas. A crise da referência e a suas associações ao corpo, a alma, inferno, céu dissemina a tensão e direciona para questionar como as apropriações em torno das posições do sujeito estão sendo recolocadas.

Ao caracterizar os paradigmas da condição pós-moderna, Gumbrecht descreve a destemporalização como categoria de emissões presentes que cada vez mais invade o cenário contemporâneo. Segundo o crítico, "a situação evoca um futuro bloqueado, em lugar da percepção moderna de um futuro cujas opções permanecem em aberto, passamos a temer esse futuro: não mais o vemos como um resultado do presente, antes o presente parece tornar-se onipresente"[12].

Em destotalização, o crítico a descreve como na impossibilidade de afirmações filosóficas ou conceitos de viés universal. Baseado em Jean-François Lyotard, que polemiza les grands récits, esse conceito está firmado na crítica a "razão humana" ou "de natureza humana"; "descreve (e se inscreve) um esteticismo incipiente no que diz respeito às grandes abstrações".

Em desreferencialização, trata-se da experiência de trabalho humano, "trabalho cada vez mais definido como apropriação da natureza realizada através do corpo humano. Em nossa práxis cotidiana, perdemos progressivamente um contato direto, a fricção do corpo com a matéria". Esta perda é conseqüência da ruptura com o mundo externo, não exatamente se referindo ao que se constitui este mundo, mas a sensação ou a impressão de que transitamos num espaço pleno de representações, que já "não conotam com a referência segura de um mundo externo".

Gumbrecht ainda sustenta, diante dessas três características, a tese de que o sentimento do mundo não está mais fundado na figura central do sujeito. A verdade não é buscada dentro dos parâmetros de resgates de significados; é fomentada dentro dos questionamentos, de circunstâncias das estruturas que permeiam esses resgates.

A noções de destemporalização, de destotalização e de desreferencialização estabelecem as premissas que Gumbrecht fala sobre o campo não-hermenêutico, tendo como ponto de vista o hermenêutico, segundo o qual demanda o par expressão/interpretação, centrado na questão chave: "o que é a existência humana?" Por essa ótica, a pergunta formulada por Cícero: "Por onde começar?" não incidiria na operação de um processo de destemporalização e de desreferncialização do ser no mundo?

Sobre isso, Heidegger[13] mostra-se atento ao fato de querer afirmar a existência captando em sua totalidade filosófica a necessidade obsessiva de partir para a apresentação da totalidade do fenômeno. "A existência humana autêntica sempre está localizada entre a antecipação da morte como futuro que não se pode evitar e a faticidade resultante de um passado também inevitável". Revela assim o compromisso com a temporalidade e, segundo Gumbrecht, é inapropriada com a situação atual.

A posição de Heidegger sobre a qual funda a premissa estar-no-mundo, termo grafado entre hífen, prende-se na inseparável fusão sujeito/objeto, pois "o sujeito nunca pode ser pensado como estando separado do objeto. Ao contrário, sempre está em contato direto com o "seu" mundo". A existência humana, segundo o filósofo, sempre se encontra em contato com objetos. Totalidade, referencialidade e temporalidade são termos elementares e básicos para a obra Ser e tempo. "O estar-na-verdade deriva da condição humana de estar-no-mundo. Estar-na-verdade significa que a existência humana é necessária e, ontologicamente, capaz de captar a verdade dos fenômenos"[14].

Gumbrecht pensa a condição central da existência humana, o estar-no-mundo implicada para todos aqueles capazes de relaxamentos, a possibilidade de estar-na-verdade. Portanto, o estar-na-verdade quer dizer o deixar sair a verdade das coisas, equivalente ao modo natural à condição humana.

Minha preocupação com esse trabalho, ao partir para essas teorias, é perceber como a música fala diretamente ao corpo e, como experiência de linguagem, expressa valores, sentimentos, cultura e, como comunicação, expressa o sujeito consigo próprio e com o meio, que o circunda. A impressão é que a música se estrutura como um jogo do imaginário, porque os sons sempre trazem algo a mais, expressam sempre mais o que dizem, trazendo as lacunas para serem preenchidas pelo imaginário do receptor na escuta.

Eis essa condição de estar-na-verdade, conforme a teoria exposta por Gumbrecht. Levando em conta sua desferencialização e destemporalização, como o erótico na música se eleva ao exercício de escuta?

Na poesia e na composição de Antonio Cícero, a estratégia é de tocar não somente o tema amoroso homossexual, mas do instrumento da linguagem que lhe serve de voz. Essa operação alimenta as sensações emitidas num dado tempo, o tempo no qual as descrições tangenciam e articulam as linhas do verso o teor do acontecimento, que é apreendido na outra margem, a de escutas. Equivale não repetir, em cada seção sonora, o decifrar do corpo, e sim o ato de desvelar outros tons emitidos.


O amante,
Cabeça tronco membro
Eretos para o amado,
Não o decifra um só instante.
Eu mesmo ainda me lembro:

O amante é devorado.
Já o amado,
Por mais ignorante e indiferente,
Decifra o seu amante
De trás pra frente.

De trás pra frente (G, p 65).

A possibilidade mesma de experienciar o prazer de trás pra frente, de frente para trás se desdobra como no jogo onde o suporte técnico encontra-se na relação aberta a novos posicionamentos. Em muitas imagens refletidas do eu lírico, recoloca-se a questão fundamental: como as relações entre si mesmo e com o outro são construídas. O desafio aos próprios limites parece vir à tona. Nessa perspectiva, a aspiração ao sujeito do desejo se desloca na escrita, exercitando um estilo e um modo de vida. Sendo assim, a presença do homoerótico masculino na poesia de Cícero é lançada sob esse olhar. Traz a tona a vida nostálgica e menos compulsiva, e move a subjetividade numa dimensão na qual o sujeito exerce sobre si mesmo os efeitos de relações vividas e sobre as quais se constitui.

Então, cabe formular a mesma pergunta de Maria de Lourdes Sekeff[15] em seu livro, Da música: seus usos e recursos: "O que se ouve na escuta? O que se experiencia na escuta? Segundo a autora, assim como Proust considera o princípio da arte pessoal, original e individual, na aparente assignificação da música, marcada por repetições e diferenças que aí se inscrevem, ouve-se um discurso de sentido, no qual o receptor toma a palavra, traindo sempre alguma coisa do inconsciente que sua escuta revela e oculta".

Por essa concepção, a maioria dos poemas de Cícero é apropriada para a canção, letra e música se acoplando ao ritmo e, por sua vez, tanto garante a articulação do corpo como movimento, quanto à qualidade físico-sensual da voz humana, que erotiza. É interessante notar como as vozes se estruturam, restaurando experiências sob o ponto de vista do corpóreo, quer dizer, o corpo ressoa na escrita, como exercício mesmo da persona.

O gozo da leitura não é o que está dizendo tão somente e sim a forma pela qual se produz o jogo da operação, bem como a técnica de como vem a ser formulado o dito ou a maneira como irá ser percebido. Como a expressão de si é buscada no corpo condicionada em torno do ato de fala.

Nas canções do compositor-poeta, sua escrita opera o modo de se materializar a linguagem em estado manifesto, em ato de dizer "bruto". Ou seja, a escrita traz em si novas subjetividades marcadas pelo tom que são dadas e formuladas. Nessas textualidades, portanto, o corpo gesticula, encena e acena, articulando o vínculo com um lirismo erótico.

Aprendi desde criança
Que é melhor me calar
E dançar conforme a dança
Do que jamais ousar

Mas às vezes pressinto
Que não me enquadro na lei:
Minto sobre o que sinto
E esqueço tudo o que sei.

Só comigo ouso lutar,
Sem me poder vencer:
Tento afogar no mar
O fogo em que quero arder.

De dia caio minh'alma
Só a noite caio em mim
por isso me falta calma
e vivo inquieto assim.

Canção da alma caiada (G, p. 61).

No diálogo entre erotismo e escrita, poesia e música, o exercício da linguagem é explorado de modo que sobressai uma postura mais rica e mais fluente quando se tomam as sínteses pessoais. Segundo Ítalo Moriconi[16], "o pluralismo de vozes e tendências incentiva o ecletismo como solução individual; a poesia de Antonio Cícero herda o caráter dionisíaco no qual assim desemboca a política do corpo".

Por essa demanda, nas dobras do falar e do escrever, dissemina-se um excessivo meio de poder ecoar os prazeres. Na fruição sonoro-lingüística, a vitalidade da prática de si se fazendo presente no poema-musical Canção da alma caiada (musicada por Marina Lima com o nome Alma caiada) afeta uma ética na qual acusam-se sentidos antídotos em sua aversão ao cotidiano. Em busca de uma outra recepção do mundo, a palavra dispersa e inquieta a fala do mesmo, deixando aparecer outras existências.

O ápice da enunciação em Cícero gira em torno da revelação. O ato de anunciar o eu-lírico, com a multiplicidade de modos de dizer, é motivado pela visualização de perfis de identidades vividas nos instantes em que a linguagem capta sensações, tons e burburinhos fincados em sua textualidade:

O meu amor me deixou
Levou minha identidade
Não sei mais bem onde estou
Nem onde a realidade

Ou se partisse colava
Com cola de maresia
Eu amava e desamava
Sem peso e com poesia

Ah, se eu fosse marinheiro
Era eu quem tinha partido
Mas meu coração ligeiro
Não se teria partido

Ah, se eu fosse marinheiro
Seria doce meu lar
Não só o Rio de Janeiro
A imensidão e o mar

Maresia (G, p. 73).

O ritmo em movimento da canção Maresia (melodia interpretada por Adriana Calcanhoto) se pauta como em uma imagem. O olhar do eu-lírico deriva de cortes e recortes, alias isso é freqüente em toda poética de Antonio Cícero. Nesse vai e vem, indo além dos toques verbais, a imagem de si é cultivada, é fundida sob o infinito no qual se cristalizam as dobras e redobras da palavra.

A identidade é conhecida pelos fantasmas que rondam o sujeito e a ausência de um lugar não situado é destinada entre o colar e o descolar o peso dos fragmentos do sujeito ou dos cortes dos seus sentimentos, que atravessam toda a composição da melodia. A consideração do poema-canção passa por uma travessia de signos pela qual a trilha dos inúmeros ruídos se sobrepõem. Pelas imagens musicais, percebe-se a idéia de um amor partido e a subordinação abstrai um acúmulo de notações, que uma a uma, cada ponto sensorial e melódico implica o corte e a retomada, o corte e o retorno, sem a previsibilidade de emergir verdades. Eis a condição de a enunciação suscitar a questão da pós-modernidade: a (des) subjetivação de si.

Se a canção mostra a necessidade de ir além - justamente pela recorrência dos instantes, em que materialização do espaço-tempo consagra essa busca distendida dos signos, que recobre cada verso -, então, ela se potencializa pela repetição, pela retomada de dados, pela disseminação inacabada do sentido. Quero dizer, o artifício da fala, do canto e da voz tomando forma, e tomado por um exercício que se opera na ascensão e desascensão de um tom, posto que a música e nem a poesia se desejam linear. Consagrar esse exercício demanda um modo de escuta, ou seja, como saber ler, como saber ouvir.

Trata-se, contudo, de uma linguagem que irrompe em novos domínios da sensibilidade. Foucault reconhece que a música contemporânea, tendendo a fazer de cada um dos seus elementos um acontecimento singular, torna difícil qualquer apreensão ou reconhecimento por parte do ouvinte. "Ela só oferece à escuta a face externa de sua escrita. Daí decorre alguma coisa difícil, imperiosa, na escuta dessa música. Daí o fato de que cada audição se mostre como um acontecimento a que o ouvinte assiste, e que deve aceitar. Ele a ouve se produzir"[17].

A apropriação de uma linguagem como interventora, no sentido de criadora, no gesto de singularizar uma forma de falar, assegura estratégias para configurar novas escritas. Na literatura, como na música, postula-se a leitura do phatos, da sensibilidade, do valor, da manifestação do retorno na vontade de depurar forças que tecem e problematizam o sentido do presente.

Como processo de desreferencialização, as composições têm antenado para os sinais que norteiam novas formas de configuração de um mundo cada vez mais complexo e fragmentado. Os signos se desvencilham de si mesmos e tentam se armar sob montagens pelas quais o critério de escolha é fruto de passagem. Escutar é colher, escolher, evocar. Não mais o rigor se oferece pelo divino, mas pela tarefa de decisão e o momento pelo qual essa tarefa incide o poder da seleção, partindo da idéia de que não temos tudo. Assim, a estética é uma ética que consiste na melancolia, pois o valor de uma obra se quer passiva, ou seja, na técnica da montagem, está todo o aparato de cortes e recortes.

Na operância dos movimentos de ondas sonoras, suas diferenças atraem e retraem, alternando e sobrepondo a potencialização da freqüência do som. Segundo Wisnik, "os sons entram em diálogo e exprimem semelhanças e diferenças na medida em que põe em jogo a complexidade da onda sonora. É o diálogo dessas complexidades que engendra as músicas"[18].

Penso assim o ato da música firmado no discernir, selecionando e captando a virtualidade sensorial, afetiva e emotiva, emergindo uma dada escrita corpórea. Ao explorar tais noções torna-se perceptível o ritmo sonoro depurado na estreita relação da sua essência. Por esse percurso, é concebível uma experiência de repertórios cuja relação com a cultura é revista. Isso porque a música trai, revela, traz e oculta em sua codificação meios de escuta. "Se por um lado e se de alguma forma a música induz, seja pelo jogo de seus elementos constitutivos, seja por sua analogia com nossos sentimentos, por outro lado, ela também liberta, porque dada a sua característica aconceitual, e agindo como mecanismo gerativo de transformação, ela possibilita a expressão de nossa singularidade"[19].

O raciocínio de Sekeff amplia a reflexão de Gumbrecht segundo a qual cada sistema produz uma descrição de si mesma, estabelecendo assim uma referência interna. A funcionalidade do sistema é peremptória porque a distensão do signo estrutura campos minados onde o imaginário é fomentado, a serviço da autonomia do jogo perceptivo. Em primeira instância, a excessiva passagem do ritmo não sofre interferências, pois é no corpo que a expressão se manifesta, apropriado pelo tom, pelo afeto de determinados acordes que ele apreende.

E se o corpo expressa, o corpo fala no instante em que os locais fluem e refluem ruídos e ondas magnetizadas de sons, então, o ritmo se empreende com o corpo. O sentido se constitui por essa espacialização sonora. E, para além de uma transcendência, existe a necessidade de captar a marca e o vestígio que são deixados no tempo da escuta.

Será que o erótico se figura e se rompe na atividade de exercer a si mesmo no limite, no movimento de um ritmo próprio, no qual as sensações emergem e as suas relações pessoais são construídas? Pelos desdobramentos (as)simétricos, instaurados no eixo do significante, a descrição dos desejos pode estar sob a cobertura das palavras.

A aproximação do lirismo amoroso como dado rítmico-acústico reescreve as forças antagônicas pelas quais enuncia o erotismo? Segundo George Bataille, "o sentido do erotismo é a fusão, a supressão dos limites, à união dos corpos corresponde à violação das identidades. Nesse processo, as formas individuais se fundem e se confundem até o ponto de se tornarem indistintas uma das outras, dissolvendo-se na caótica imensidão do cosmos"[20].

Assim, insisto no fato de que a poesia, como a música, se recompõe no acúmulo de notações, na medida em que a dissimulação vive de acumulação. Quero dizer, os murmúrios bem como os inúmeros planos superpostos nos dão o direito de reescrever o outro. O ideal, portanto, é negar todas as possibilidades que, na música, por exemplo, se proliferam.

Com isso, penso que a subjetividade homoerótica rechaça a voz do mesmo. Ao fazer agir a sua palavra, esta subjetividade se constitui sob o domínio de força, afetando a si mesmo, resistindo a si mesmo e, certamente, arriscando a ultrapassagem de forças. Por isso, a linguagem musical vem tocando essa percepção, e conecta a nossa realidade ao aqui e agora que vivemos. Em sua potência de fala, imanente na sonoridade, escutam-se estilos de vida e formas outras de existências presentes. Foucault nos faz pensar essa possibilidade em que o discurso não é visto como "conjunto de signos (de elementos significantes remetendo a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que eles falam"[21].

Assim a música registra a intensidade de ritmo e, ao mesmo tempo, cria, em seus instantes, aquilo que marca o tom e sobre o qual formaliza o dizível. O a mais que vem a ser inscrito potencializa o ruído inquietante, que se faz anunciar. Ao escutarmos uma música, seu ritmo revela algo contra ou não o que se resguarda ou o que nos endereça, fazendo-nos participar e vivenciar a forma como ela diz as coisas. Acredito que a linguagem musical é produzida não propriamente na organização de signos, de notas sonoras, de pausas, apenas, e sim, como os discursos criados, em sua textualidade, nos projeta, nos faz falar. Retomo Foucault, por ele alcançar essa concepção. Para o filósofo, mais do que utilizar esses signos para designar coisas, "é esse mais que os torna irredutíveis à língua e à fala. É esse 'mais' que é preciso aparecer e descrever".

Interessa no suporte técnico do significante, na estrutura da enunciação, como os espaços vazios devem ser preenchidos por diferentes indivíduos, diferentes sujeitos que podem vir tomar posição. O mais a que se refere Foucault pode ser remetido ao corpo como se revelando, disseminando um ritmo de atuação cuja voz é determinante e relevante, enquanto meio de construção e modos de expressão, como pensa Paul Zumthor. Isto é, na assimilação da voz, torna-se materializante um dado sonoro a mais que vem a ser expressivo para falar de.

Dada a exploração virtual, o poema-musical de Antonio Cícero serve a novas extensões metafóricas, viabilizando o jogo erótico. A força da metáfora é infinita e dela deriva a aparição, a partir da qual os fantasmas rondam em cada momento. Os termos gerados nas composições De trás pra frente, Canção de alma caiada e Maresia suspendem a ordem do pensamento diante dos atos verbais decifrar (De trás pra frente), calar (canção de alma caiada), deixar (Maresia) para restituir outros disseminados na cadeia significante. Essa mesma força está no ritmo da palavra na qual alguma coisa nasce, se diz, e reduplica incessantemente, "conforme o murmúrio que se retoma, uma multiplicação e um espessamento fantástico em que se aloja e se esconde nossa linguagem de hoje"[22].

Sem limite e sem centro, o erotismo é pensado nessa perspectiva na cadeia discursiva da obra de Cícero. A experiência é corpórea e passa pela via da linguagem adquirida pelo corpo. Por isso, a aparição e não simplesmente aparência. Nela, prevalece o gesto do improviso, proliferando o excesso do non-sense, do retardamento, do sentido tomado e retomado na esfera do significante.

Nesse contexto, penso o contato estabelecido entre o eu-lírico e o outro instaurado pelo corpo, inscrito no corpo e que se ressemantiza, dando-lhe um caráter de sedução cujo diálogo estreita e distancia as relações amorosas. A partir das operações de leitura/escuta, diante do campo não-hermenêutico, o perceptível nos envolve. É como se a música intercambiasse numa rede de conversações, sujeito e objeto, ato e escutas se interagindo, se tocando, se entrelaçando. Sons, silêncios, ruídos, ritmo, tensão e relaxamento provocando uma determinada atenção como em uma cena em movimento onde o elemento de descrição atingisse traços distintos e dispostos por esses mecanismos de enunciação.

O jogo da aparição é marcado por criações híbridas, de efeitos visuais e sonoros - passagem do contínuo para o descontínuo. Por isso, que o sujeito é pensado no suporte transsubjetivo, ou seja, para além de si mesmo, porque parte da linguagem para construir e se constituir. Por isso, a passagem do retard é o que decanta o sentido a partir do seu atraso entre som e sentido, porque a toda hora ele se supõe, superpõe, justapõe e sobrepõe o ritmo da diferença.

A aparência se justifica no semblante, da referência no contorno da imagem dentro do contexto fenomenológico. Creio que, na trilha sonora, nessa posição de regard, o perfil se assemelha ao provável e ao declarável. Contraposta a essa idéia, a aparição se vincula ao brilho, na imagem, e ao ritmo, no som. Em ambas, algo imaterial se constrói, permitindo a arte desvinculá-los do aspecto funcionalista, ou da institucionalização do sentido.

Por isso que o traço do homoerotismo na poética de Antonio Cícero não se subjetiva pela aparência, pelo desmascaramento, pelo simples regard. Acontece na passagem do regard para o retard, quer dizer, da visualização para o retardamento da circunstância em que é enunciada a subjetivação. É um fluxo infinito de trás pra frente, desdobrando a percepção, desordenando o sistema e a instituição unívoca do discurso.

Paradoxalmente, o mostrar-se ocorre no deferimento, ocultando-se na aparência do mesmo. Assim, a escritura poético-musical se constitui na partitura na qual sua trilha sonora compõe e recompõe a "incômoda" forma de diferir, delongando a autoaplicação da sua tonalidade. Trata-se de situar o eu-lírico evocando acontecimentos na reminiscência cujo fomento desta se oferece pela desmontagem, pela aparição desencadeada para além dos limites. Isso pode vir à tona nos trechos: "As letras brancas de alguns versos me espreitam; Não o decifra um só instante. Eu mesmo ainda me lembro; Só comigo ouso lutar, Sem me poder vencer; Eu amava e desamava Sem peso e com poesia".

Ao provocar a sensação do existir, o toque sobrepõe, o erótico se reconstitui no gesto da aparição, suspendendo o sentido lógico, binário e metafísico. Passa a prefaciar um conjunto de textos em ex-cesso. O elemento sonoro assim se complementa nesse conjunto onde o cenário sucessivo de vozes implica um dispêndio, destotalizando, desreferencializando e instigando o consensual e o temporal.

Em Eco, o ritmo da linguagem está implicado nessa aparição do sujeito, e como processo de escuta, sua marca não se esgota. Eis o porquê a constituição de uma (des)subjetivação. A forma sobre a qual ela (aparição) não pára de se conter, violando o limite do espaço significante. A constituição do erotismo na poesia se permite no próprio nível do discurso, como experiência de uma linguagem que extravia e explora a fundo um campo de combinações livres, lugares eróticos conjugando-se com posturas reflexivas de si, e as posturas reflexivas de si conjugadas, encenadas, em cenas aguçadas pelo prazer e pelo eco narcisista de si.

A pele salgada daquele surfistista
parece doce de leite condensado.
Como seu olhar, o mar é narcisista
e, na vista de um, o outro é espelhado.

E embora, quando ele dança sobre as cristas,
goste de atrair olhares extraviados
de banhistas distraídos ou artistas,
é claro que o mar é seu único amado.


Ei-lo molhado em pé na areia: folgado,
ao pôr-do-sol tem de um lado a prancha em riste
e do outro usa uma gata e um brinco e assiste

serenamente o horizonte inflamado
e a brisa o alisa e ele enfim não resiste
à beleza e diz "sinistro!" e ouve eco ao lado.

Eco (G, p. 97).

O soneto Eco, a rigor, potencializa o ritmo na identificação sonora e visual. O que não se fala, é dado a sussurros, e a composição do poeta eleva o eu-lírico à condição do inefável. A transição entre a aparência e aparição reflete o outro pela condensação metafórica, fazendo transgredir a sexualidade erótica numa contra-divisão dos objetos, das acepções, dos sentidos dos espaços permeados: "A pele salgada parece doce; na vista de um, o outro é espelhado; goste de atrair olhares extraviados; Ei-lo molhado em pé na areia: folgado; de um lado a prancha em riste; serenamente o horizonte inflamado; ele enfim não resiste; "sinistro!" e ouve eco ao lado".

Entre o eixo metonímico e metafórico, o poeta se firma nesse jogo da aparição do sujeito surfista, associando aos objetos enucleá-lo e sobrepondo-lhe às contigüidades por outra forma de sentir o corpo: atuar no horizonte de revelação. O contágio vem pela qualidade dos atos advindos de um reflexo infinitamente sonoro: Surfista, narcisista, condensado, espelhado, folgado, inflamado, extraviados, amado, cristas, artistas, riste, resiste, assiste, lado. A analogia que tais palavras identificam alternadamente nos versos do soneto materializa a expressão do fluxo corpóreo, configurando alguma coisa no imaginário, produzindo um diálogo e desencadeando uma harmonia e uma desarmonia.

A sedução, portanto, se encaminha nesse refluxo de tomar e retomar o poder das coisas em si e essa vivência amorosa reitera os motivos, tematizando, sob essas rimas, o processo de criação de ecos que desestabilizam o sujeito. Assim, tanto a composição musical, em sua identidade sonora, quanto a poesia, em sua ressemantização da palavra inscrita, incorpora códigos questionando a performantização da fala no presente. Isso porque a escritura do eu está marcada pela idéia de dúvida, de diferença, emergindo em si mesma na dispersão: "já que ele é, segundo o poeta cego; e o que é e será e não é mais e longe e perto se abrem para mim As letras brancas de alguns versos me espreitam, em pé, do fundo azul de uma tela atrás".

Dessa maneira, o eu não é marcado pela fidelidade consigo mesmo, ele se difere, é rito de passagem, altera-se em busca daquilo e daquele, de algo urgentemente. O elemento de insatisfação integra a via de transbordamento de veículos de palavras e de sons, de ecos distendidos numa tensão para bloquear a totalização do saber.

Como sair do lugar? Essa questão se abre para a perspectiva de enunciações incessantes, progressivas e estimulantes que ilustram o eu-lírico na instância do erótico. Ele é refletido narcisamente nas canções e poemas de Antonio Cícero. De acordo com o epitáfio de Marcel Duchamp, existe uma possibilidade de resposta: "São os outros que morrem". No espaço musical, aquele que fala, "em vez de se exprimir, se expõe, vai ao encontro de sua própria finitude e sob cada palavra se vê remetido à sua própria morte"[23].

Em vista de uma pluralidade de tons melódicos, cada um exerce sua peculiaridade de prática, de constructos, de valores sonoros e, sem o isolamento cultural e de sistemas cerceadores, liberta-se dos guetos de estilos e de escutas fonocêntricas.

Vejo então o não-hermenêutico trabalhando nesses limites, delimitando escutas diferenciais e suas apreensões de dimensões singulares, dispensando as pontuações concernentes à compreensão textual. A suspensão do sentido ou sua destotalização estende-se à distensão do jogo de palavras, pois é na virtual quebra de regras que o dizível e o visível são atualizados. Nos entremeios dos signos sonoros e rítmicos, a linguagem desdobra, opera por si mesma e tende a ocasionar novos ritmos e fluências melopoéticas.

Talvez, a efervescência lingüística se afasta do campo hermenêutico pela qual evoca-se um intervalo determinante na música do letrista e poeta Antonio Cícero, como uma pausa de leitura. Assim, novas inserções pessoais podem ser gerenciadas e demarcadas, problematizando a recepção a que essas nos remetem, bem como sentidos por suas afirmações e negações sobre noções identitárias.

Trata-se de letras de vislumbres, de atos perceptivos e cuja embriaguez dos desejos converge na fricção do ritmo e do próprio sujeito em sua obstinada forma de aparição de si. Para se conhecer, sua necessidade de se pôr nos entre-lugares, reconfigura-se e manifesta-se, emergindo de sua descrição tensa nas redes de memória.

Os acordes musicais se intensificam e interessam no limiar de uma temática erótica, visto a predominância de entrecruzamentos de performer do masculino sob o devir híbrido, fundido e cindido frente a um olhar atento das aparições do homoerótico nas cenas dos versos. Também, trata-se não somente daquele que fala, mas daquele que se toma por ele, produzindo e disseminando gestos que se desdobram a fim de refletirem a si mesmos.

 

Bibliografia:


BATAILLE, George. O erotismo. Tradução: João Bènard da Costa. Lisboa: Ed. Antígona, 1988.

CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002.

_______ Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1997.

DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. 2° ed. Tradução Luis B. L. Orlandi. Campinas-SP: Papirus, 1991.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Tradução Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

__________ Ditos e escritos III Estética: Literatura e Pintura, Música e cinema. Organização e seleção de textos: Manoel Barros da Motta. Tradução: Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Corpo e forma: ensaios para uma crítica não-hermenêutica. Organização: João César de Castro Rocha. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998.

MORICONI, Italo. Pós-modernismo e volta do sublime na poesia brasileira. In: Poesia hoje. Organização: Célia Pedrosa, Cláudia Matos, Evando Nascimento. Niterói-RJ: EdUFF, 1998.

OLIVEIRA, Solange Ribeiro. Literatura e música modulações pós-coloniais. São Paulo: Perspectiva, 2002.

SANTIAGO, Silviano. Introdução a Guardar. In: CICERO, Antonio. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1997, s/pp.

SEKEFF, Maria de Lourdes. Da música: seus usos e recursos. São Paulo: Ed. UNESP, 2002.

WISNIK, José Miguel. Introdução A cidade e os livros. In: CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002.

_______ Cajuína transcendental. In: BOSI, Alfredo. Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 1996, pp. 191-219.

_______ O som e o sentido. São Paulo: Cia das letras, 1989.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] OLIVEIRA, Solange Ribeiro. Literatura e música: modulações pós-coloniais. 2002, p. 16.

 

 

 

 

 

[2] CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro. Record, 2002. Obs: As citações dos poemas serão seguidas de sigla e número da página, por ex., CL (A cidade e os livros), G (Guardar).

 

 



[3] WISNIK, José Miguel. In: Introdução A cidade e os livros. 2002, s/p

 

[4] CICERO, Antonio. A cidade e os livros. 2002, p. 19.



[5] CICERO, Antonio. Guardar. 1997, pp. 89-90. Composição gravada por Marina Lima.

 

 

 

 

 

 

 

 



[6] SANTIAGO, Silviano. In: Introdução Guardar. 1997, s/p.

 

 

 

 

[7] WISNIK, José Miguel. Cajuína Transcendental.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[8] DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. 2ed, 1991, p. 111.

 

 

[9] DELEUZE, Gilles. 1991, p. 116.

 

 

 

[10] DELEUZE, Gilles. 1991, p. 116.

 

 

 


[11] OLIVEIRA, S. 2002, p. 36.

 

 

 

 


[12] GUMBRECHT, Hans Ulrich. Corpo e forma: ensaios para uma crítica não-hermenêutica. 1998, p. 138.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


[13] HEIDEGGER, In: Corpo e forma. 1998, p. 141.

 

 

 

 



[14] GUMBRECHT, H. U. 1998, pp. 142.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


[15] SEKEFF, Maria de Lourdes. Da música: seus usos e recursos. 2002, p. 27.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[16] MORICONI, Ítalo. Pós-modernismo e volta do sublime na poesia brasileira. In: Célia Pedrosa et alli. Poesia hoje. 1998, p. 21.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


[17] FOUCAULT, Michel. Ditos & Escritos III. Literatura e pintura, música e cinema. Organização e seleção de textos: Manoel Barros de Motta. Tradução: Inês Autran Dourado Barbosa. 2001, p. 395.

 

 

 

 

 

 

 

[18] WISNIK, José Miguel. O som e o sentido, 1989, p. 15.

 

 

 


[19] SEKEEF, M. L. 2002, p. 126.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[20] BATAILLE, George. O erotismo. 1988, pp 18-19.

 

 

 

 

 


[21] FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 2002, p. 114.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


[22] FOUCAULT, Michel. Ditos & Escritos III. Literatura e pintura, música e cinema. Organização e seleção de textos: Manoel Barros de Motta. Tradução: Inês Autran Dourado Barbosa. 2001, p. 49.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[23] FOUCAULT, Michel. 2001, p. 46.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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