ISSN: 1806-9401
sou neguinha?

SOU NEGUINHA?*
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ANA CRISTINA CHIARA é Doutora em Literatura de Língua Portuguesa pela PUC-RJ e professora de Literatura Brasileira na Universidade Estadual do Rio de Janeiro

 

 



* Trabalho apresentado na ABRALIC, realizada em 2000.


Advertência:
Mergulho e saio com os pés sangrando. Cuspo as palavras junto com os dentes.
Isso não são fragmentos nem aforismos. São cacos de pensamento.
Começa agora a floresta cifrada.

Pense bem: são três imagens que se movimentam uma se fundindo na outra:

O negro gira a manivela da locomotiva em que estamos, a neguinha que não se sabe, a puta numa esquina. O negro gira ou não a manivela nos desviando da rota? A puta vai ou não com o freguês? Pode recusar a grana? Estão na confluência do desejo de se afirmar a nação, ou não? São imagens do que não se definiu ainda, imagens da espera, metáforas do instante... são metáforas daquilo que não se pode dizer, por não estar ainda, por ser intratável. Falo do que não é demonstrável, daquilo que não é documentável, não é documento de identidade, registro civil. Se segura, meu irmão, falo de coisas sem identidade, de terras sem gente. Estou falando do que é intratável no terceiro sexo, no terceiro mundo, no terceiro milênio.

O negro é desdentado e tem um cobertor azul enrolado no pescoço. Tia, me dá um trocado pra cheirar ali na esquina? Tia, desvia esse olho gordo de cima da minha miséria. Aqui, seu delegado, isso não é filme não. Vou matar mais um, meu corpo tá fechado. O diabo cuida de mim... Preste atenção! Isso não é um filme!...O real refluiu com violência e enfiou um cano de revólver gelado em nossas gargantas. Atira? Não atira? Explode o pensamento. Cobra tributos com juros altos. Dá de ombros com desdém paras as teorias do simulacro. Traz de volta a brutalidade dos fatos e esfrega sua opacidade na cara do doutor. Entre a brutalidade do fato e as interpretações da mídia, cave o espaço do imprevisível e do imprevisto, se solta malandro. Contra a visibilidade total, contra o olhar panóptico. Pelo segredo, pelo mistério, tome de assalto. Largue o controle, mas não se descontrole.

A neguinha vai me levar pro lado do crime, vai me ganhar lá na esquina, vai me fazer de avião. A neguinha sonega. É um contra-senso na medida certa do meu desejo. A neguinha se converte em fissura. É larica. È uma boca aberta dentro de um carro parado. È um atentado ao pudor num banheiro público. Preste atenção é tudo sexo na encolha.

A puta vende seu corpo amazônico, sua fonte de energia pras companhias italianas, suíças e espanholas. Vamos privatizar essa putinha diz o deputado no Congresso, depois limpa a boca suja de sardinha no pendão auriverde que a brisa do Brasil beija e balança. Existe um povo que a bandeira empresta... Ri-se Satanás...

Pense bem, são três imagens na iminência de qualquer coisa; qualquer coisa de repente... Pense rápido um projeto pro país.

Por uma identidade neguinha. Deslocamentos rápidos da identificação para o enigma. Da afirmação da diferença para a positivação da in-diferença não marcada, ambígua, angelical. Saturada de contra-signos. Sobreposição do muque do negão à bunda da mulata.

Contra a cultura calipígea siliconada, a favor do corpo tensionado no suor do trabalho. Corpo de homem no trabalho. Por uma corporificação do movimento contra as virtualidades mediáticas. São fotos em preto e branco, são instantâneos salgados com muita perícia e estética. A terra de pindorama está mais a frente, ainda não chegou. A manada vai na força cega do destino, na força fatal de Mario de Andrade. Se o Modernismo se faria sem os modernistas, o Brasil se fará sem os brasileiros? O Brasil se cumprirá um dia? No dia seguinte?

Pelo êxtase - estados gloriosos do corpo nas fotos de Artur Omar. Uma cultura da exteriorização, corpos tatuados como significantes puros. Signos opacos ilegíveis, indecifráveis, dançando na noite: raves, gls, mundos mix, cybers manos, na batida tecno acid dance. Os tambores perdidos na selva, os ilês, repercutindo em Carlinhos Brown, Mangues, Towns, Lenines. Os raps dos Racionais MC´s. Pense Oiticica. Pense parangolé. Pense a politização do êxtase. Pense a força dos parangolés girando no corpo do negro da favela, pense nisso, meu irmão. Seja herói, não seja marginal. Pense a arte no asfalto, pense o êxtase como uma pulsão em busca de uma forma, seja rápido no gatilho. Pense os estados extremos do êxtase e da privação. Pense os mendigos de Joazinho Trinta, o Cristo embrulhado no saco de Lixo preto. Pense no luto como superação da dor. Encare de frente, sangue bom.

MV Bill Traficando informação. Embarque nessa viagem à cidade chamada de Deus. Abra os olhos, preste atenção na vida dura desses homens, parados na esquina. Confira a vida na favela. Confira esse mundo sinistro. Ouça o Mensageiro da Verdade, se não puder rala peito, meu irmão. Na cintura o brilho cego do revólver aponta pro sexo. Se liga. Esqueça as ruínas do melancólico Benjamin, pense Brasil, pense uma solução pro Brasil. Deixa de lado essa história alemã, deixa pra lá o muro de Berlim, pense aqui, pense agora, pense Darcy. Pense um plano de Educação pro Brasil. Não seja otário. MVBILL traficando informação. Olha o Rappa. Preste atenção nas letras do Rappa: Me deixa que hoje eu tô de bobeira. Invente uma doença que me deixe em casa pra sonhar. Todas as ciências de baixa tecnologia. Todas as cores escondidas nas nuvens da rotina. Preste atenção, nas letras da rapaziada. São as tribos pisando em terreno minado. São o Raio X do Brasil. São o Holocausto urbano. Escolha seu caminho. Use sua mente. São as galeras na cidade partida. São a consciência black. São os Racionais MC´s. Se vacilar o bicho pega e v. vai decorar o asfalto.

Vamos traficar informação. Os estudos culturais são peneira pra boa consciência dos scollars em seus gabinetes de fórmica marfim, com seus computers e internets. Com suas metáforas elegantes e culposas. Com seus tediosos eufemismos. O maneirismo textual com disfarces políticos burocratiza o pensamento e a sensibilidade. Vamos traficar informação. Os gays são os que compram mais. As mulheres monologam com suas vaginas. O orgulho negro sofre revista e morre nas favelas. Na África não se passa dos vinte com duas pernas, uma explodiu uma granada, outra foi comida pela boca desdentada da Aids.

O Brasil dançarino e afrodisíaco, a força dionisíaca sendo rebaixada, posta à venda pelo mainstream. O neguinho do axé com uniforme Armani, remexendo a bundinha, o neguinho do pagode cantando com Gloria Stefan, a putinha anticastrista. Pense Brasil, meu camaradinha, não venda o corpinho, não desafie os santos. Olha a encruza! Cuidado que o feitiço se volta contra o feiticeiro. Pense Oswald! Cuidado com a macumba pra turista ver, não seja uma Anta. Não se transforme em fetiche.

A questão se dá para além do exterior e do interior. Não se trata de substância, nem de conteúdos, mas de a expressão momentânea não se deixar capturar em diluições perigosas. A força estará com quem tiver rapidez suficiente para desabalar as estruturas de poder. Duvide. Duvide dos comandos. Não se deixe capturar pelo pé. Recuse as correntes da ideologia. As assembléias viraram todas Assembléias de Deus onde se exorcizam fantasmas do passado. Cuidado: o passado é um cadáver e os cadáveres costumam feder. Duvide.

Pense rápido, pense Oswald e se crie na utopia antropofágica, mas fique atento, tudo é perigoso e o Global nem é divino, nem maravilhoso. Pense rápido! Pense geração modernista, pense um projeto pro país. Segura onda, seu moço, que nem tudo que é bom pra eles faz uma nação.

Segura a onda, seu guarda, não machuque a moça! Não machuque a cidade! Não erre o tiro e acerte o coração do país.

Vamos tirar as idéias do lugar, vamos pôr tudo fora do lugar, vamos pôr fora, seu Roberto. Estamos por fora, estamos na periferia, estamos no olho do furacão. Não dá pra fazer uma. Aufklärung. [ auf/-klé-rrung ] Vamos ficar na luz difusa de um abajur lilás, vamos ficar no cafofo, pensando rápido, pra não pisar em falso, pra pisar nos falsos profetas, nos que esquecem o que escrevem, nos que escrevem e não lêem. Pense rápido, nem tudo tá na Internet, tem coisa no mamulengo, tem coisa no meio da rua, vem um rumor, vem um clamor do meio da rua. Quem é? É o diabo, seu Roberto, no meio do rodamunho. Tá tudo saindo dos lugares, o negócio tá vindo na contracorrente, vem aí um movimento, vão invadir a praia, vão jogar ovo no ministro, passarão por cima de sua cova. Pense rápido. São notícias de uma guerra particular. Os homens de bem são os homens certos no mundo errado. São moscas que os deuses espantam. Pense rápido e não pise na moça, cuidado com o guarda que pode vir pela direita.

O bicho vai pegar! Sem essa de desterritorização, vamos demarcar as terras, vamos ceder as glebas, vamos em frente que atrás tem gente na tocaia, seu Chacrinha. Fique atento ao movimento, leia as palavras de desordem e progresso nas bandeiras vermelhas: Ocupar, resistir e produzir. A Amazônia é o pulmão do Brasil, segura a Amazônia, seu moço! Antes que os aventureiros e os desventurados. Olha o assentamento aí, gente...É tudo free, vam'embora. Tão querendo alugar o país. Chame o síndico, chame o cinismo pra ver o charme indiscreto da intelectualidade pós-moderna abaixo do equador. Olha a fumaça. Onde tem fumaça tem fogo. Onde tem fogo? Confira o que diz D. Serafim: "O que é reto, é reto, o que é verdadeiro, é verdadeiro. Tudo que é mentira tem de ser descoberto. Nós temos de procurar a verdade doa a quem doer. E quem é culpado tem de sentir-se pelo menos que é culpado, que fez uma coisa errada. Acho que tudo que se possa descobrir para o que o povo saiba, tome consciência, tem de ser feito. Muita gente vê esse problema como coisa do passado. Vejo muito mais esse problema como do futuro." (JB/ 18/06/2000)

Pão, pão, queijo quente. O negócio está esquentando, meu camaradinha. Tá atento? Tá sentindo o cheiro da confusão? Se segura, malandro, me segura que vou ter um troço.

Mas tem coisa que é diferente. A literatura é diferente. Na literatura existem muitas verdades, mas o melhor é poder mentir, inventar. É delírio. É o mundo imaginativo. É o domínio do artifício, da mentira. Até descobrirem o mapa do genoma literário, ela escapa. A Literatura é a tralha do genoma, os 97 % sem função. Então se entende a leveza e a mobilidade sendo aqueles deslocamentos de perna da Salomé no filme de Ken Russel, tão rápidos que confundem os códigos, menina ou menino? A Literatura é neguinha. É puta na esquina. Preste atenção no que a Ana diz, sangue bom, literatura não é documento. Não é mole não, meu irmão. Tanto esforço teórico pra nada e foram publicar as cartas da menina. Tudo vira documento para os vampiros das letras. A Crítica literária virou fuxico de comadres. A crítica trepa de meias. Nascida sob o Signo de Saturno, deus da velhice, dos desgostos e da morte, a crítica paralisa a energia sexual. A mente sobre-excitada embota as qualidades do sentir. O excesso do sofisticado sistema de citacões leva à estagnação e, se não for estancado, à morte da alma.

Preste atenção, sangue bom, a literatura é uma neguinha que não se sabe. A literatura é segredo e substância. Freud a achava estranha -unheimlich- traduzindo: neguinha maluca. Não é mensageira, é massagista. Manda mensagens ambivalentes diz o que quer e diz o que não quer. A neguinha só ama suas duas línguas, delas todo o prazer e todo seu tédio. É soberana, conquistou autonomia. O coração da neguinha viu tudo e nada viu. É pobrinha, mas é nossa, seu Antonio. É uma chama. Desdenha da fria e assexuada cyborg do norte. Embaixo da saia, no meio das pernas, ela esconde um segredo. Presta atenção no segredo, rapaz. Se desoriente, rapaz. Nem tudo é construção cultural, nem tudo é performance, ainda tem o secreto nesse jogo, ainda tem coisa escondida, vai lá e confere, se tem coragem. No meio das pernas da neguinha tem um segredo... É uma fenda? É um pau? Tome coragem, levante a saia da neguinha, toque essa coisa quente... Não esfrie a neguinha, não tenha medo de tocar na coisa. Inocente ou culpado, você vai ter de rezar. Tire os óculos pra ver o pior. Enfie o nariz, cheire. Tem cheiro de flor e de desinfetante. Pode cheirar maresia, pode ser cheiro de pus. Escorre baba. Aquilo é uma cloaca, é o fim da picada. Tudo ali contamina. Cuidado com a hiper-racionalização, cuidado com os discursos da política, com a falta de humor, de sensibilidade. Seduza a neguinha meu camarada. Enfie sua língua e deixe sangrar, deixe queimar.

Pra que serve a literatura afinal?


 

 

 

 

 

 

 

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