Entre junho de 1996 e junho de 1997, Hermeto Pascoal dedicou-se a elaborar seu Calendário do som, resultado de um ano de sua vida no qual compôs e escreveu uma música a cada dia. O trabalho resultou numa coletânea de 366 partituras - o dia 29 de fevereiro, dos anos bissextos, foi também lembrado -, em sua maioria escritas com melodia e cifra - algumas delas estão com escrita para piano -, contendo também vários comentários e desenhos do autor, uma contribuição de inestimável valor musical, artístico, literário e filosófico para o mundo da música popular.

            O que o Calendário do som traz de especial? De um ponto de vista musicológico, ressaltamos que o Calendário do som é uma experiência inédita na música popular brasileira, pois traz 366 partituras de músicas inéditas, um fato raro neste cenário: as canções são geralmente compostas, gravadas, expostas à apreciação do público e da crítica para somente então serem editadas em partitura. Hermeto inverte a ordem tradicional e desafia intérpretes a pesquisar e elaborar suas interpretações sem outros subsídios além da própria partitura, como acontece na música erudita, na qual a partitura é o principal meio de referência do intérprete para construir sua execução. Notamos, ainda, o fato de que o Calendário sintetiza muitos aspectos importantes sobre Hermeto Pascoal e sua obra: além dos aspectos puramente musicais, representados na partitura com raras indicações – “para não influenciar o digníssimo intérprete” – [ 1 ], constam inúmeros desenhos e comentários diversos, sobre a música, o dia, reminiscências de pessoas, lugares, uma abordagem bem própria para o leitor entrar no universo artístico, filosófico e até mesmo religioso de Hermeto Pascoal.

            Sob um ponto de vista musical o Calendário traz a novidade de uma linguagem altamente improvisada, diante da qual as canções vão sendo geradas a cada novo dia, e na qual não é preciso nem há como se burilar e trabalhar detalhadamente cada composição. Elas nascem como pedras brutas prontas a dar o máximo de si, instigando intérpretes e arranjadores a buscar a lapidação perfeita para cada peça do Calendário do som. Assim, este trabalho trata de observar alguns aspectos musicais bastante significativos sobre o estilo de Hermeto, através das 50 primeiras músicas do Calendário, analisando suas características improvisatórias.

            No âmbito da música popular brasileira, Hermeto traz a novidade da relação estreita entre os processos de composição e improvisação: “It is necessary to compose and write music as though it were an improvisation and improvise as though the music were written out”, declara Jovino Santos Neto [ 2 ], pianista e flautista do grupo de Hermeto por 15 anos, ressaltando a importância dessa relação composição/improvisação no trabalho de Hermeto, na organização dos ensaios e treinamento dos músicos. Essa importante característica confere à sua música o frescor, a “naturalidade” e a espontaneidade tão particulares dentro do universo da música popular brasileira.

            O processo usado para analisar as primeiras cinqüenta músicas do Calendário foi uma “análise panorâmica” simultânea à performance, atenta a certos procedimentos de composição recorrentes dentro do Calendário do som. Cada peça era vista por uns trinta, trinta e cinco minutos. O primeiro passo era ler a peça ao piano, acrescentando também o ritmo de mão esquerda, mais adequado a essa primeira leitura, com base na observação das figuras rítmicas presentes, além da harmonia e da curva melódica. Depois de tocar determinada peça cerca de quatro vezes, ganhando mais familiaridade a cada execução, observava-se novamente a partitura examinando a construção da peça, uso dos motivos, frases, etc. A seguir, anotavam-se as observações nos seguintes tópicos: melodia, ritmo, harmonia e forma. A este processo é que nos referimos como análise panorâmica. Como o interesse deste trabalho é perceber as novidades musicais que Hermeto traz para a música popular brasileira, as anotações seguiram os tradicionais critérios de forma, harmonia, melodia e ritmo, que são os critérios estabelecidos pela análise da música tonal centro-européia, desde o período barroco até final do séc. XIX, da qual a música popular brasileira é herdeira. Ao longo da análise destas cinqüenta peças, foi muito interessante observar que a cada análise, novos parâmetros recorrentes eram observados e investigados dali em diante. Ou seja, a cada análise, o processo ia se tornando mais completo. Foram muitas idas e vindas até chegar a um resultado satisfatório, com um certo cruzamento de dados de todas as músicas tocadas.

Forma

            Em relação à forma, o Calendário do som é composto de trezentas e sessenta e seis peças curtas, com no mínimo onze compassos e no máximo vinte e sete compassos. Assim, todas as composições trabalham com formas curtas, mesmo quando há repetições. Nestas composições, o termo “forma” merece atenção especial, pois a partitura não estabelece rigorosamente a estrutura final da música, é apenas a matéria bruta da interpretação de música popular. O que fica bem claro, observando essas formas e estruturas tão pequenas, é que o arranjo tem um papel igualmente importante no resultado final, pois vai definir a maneira como o material musical da composição vai ser trabalhado.

Harmonia

Em relação à harmonia, observamos alguns procedimentos recorrentes nestas músicas do Calendário e que marcam de maneira especial a sonoridade da música de Hermeto. Em comum, apresentam o fato de serem muito acessíveis ao ofício da improvisação, ou seja, são facilmente manipuláveis em tempo real. Vejamos:

Seqüência estendida de um mesmo tipo de acorde:

Este procedimento está muito presente no Calendário do som. Ele consiste em usar um mesmo tipo de acorde em seqüência, até chegar a outra tonalidade, ou retornar à tonalidade anterior, realizando uma transição, pois é um procedimento que causa instabilidade tonal. Por tipos de acorde entendemos aqui as cinco tétrades básicas através das quais se estabelece toda a harmonia de música popular tonal [ 3 ] e são C7M, Cm7, Cm7(b5), C7 e Cº, no caso tendo a nota dó como fundamental -, os quais serão aqui denominados respectivamente acordes de tipo tônica, tipo menor com sétima, tipo meio-diminuto, tipo dominante e tipo diminuto [ 4 ]. Entre as músicas analisadas, todos os tipos de acordes foram utilizados neste procedimento, com exceção do acorde diminuto (Xº), que aparece muito raramente, em algumas valsas e chorinhos. Os compassos doze a dezessete da música “1º de Julho”, por exemplo, ilustram dois tipos dessa seqüência:

Nesta música, existe uma tonalidade bem afirmada de ré maior, nos primeiros onze compassos, utilizando acordes do campo harmônico e de empréstimo modal. No segundo tempo do décimo primeiro compasso, o acorde de Em7 é o ponto de partida para explorar uma pequena seqüência de acordes Xm7 que acaba no acorde Fm7, no segundo tempo do décimo segundo compasso, já afastado do centro tonal Ré maior. O décimo terceiro compasso se inicia com um Eb7M, de quem o acorde anterior Fm7 é IIm7, ou seja, possuem uma relação estreita. O acorde Eb7M dá início à outra seqüência de acordes, agora do tipo X7M, e que permanece até o décimo sétimo compasso, com o acorde de Ab7M. O décimo oitavo compasso, que faz a ligação para o início da peça, em ré maior, possui dois acordes: um Asus4 e um A7(b9), uma cadência V7 para o tom de ré maior.   

            Assim, no trecho analisado, as duas seqüências de um mesmo tipo de acorde foram utilizadas para desenvolver um motivo, fazendo desse trecho um contraste na música, desenvolvendo e expandindo as idéias presentes no começo da peça, atingindo outras notas interessantes através dos acordes de passagem. O motivo utilizado na seqüência Xm7 foi um arpejo sobre notas do acorde e tensões:

                                    

            O motivo utilizado na seqüência X7M foi uma frase de um compasso, explorando arpejos em cima de notas dos acordes e tensões. No penúltimo compasso dessa seqüência – décimo sexto compasso  - uma cadência encerra o período iniciado no décimo terceiro compasso, e chama o início da peça através de uma preparação V7:

 

II – V estendidos:

            São recursos de composição/improvisação muito utilizados por Hermeto, em clássicos do seu repertório como “Bebê”, “Música das Nuvens e do Chão”, “Fátima”, “Hermeto”, “Vale da Ribeira”, “Forró Brasil”, “Chorinho pra ele”. [ 5 ]

            O que é peculiar no modo de Hermeto compor é o uso estendido de II – V associado a uma frase melódica, que também é “estendida”, ou seja, trabalhada em seqüência. Vejamos a música “5 de Agosto”:

 

            Aqui o II – V é “estendido” da seguinte forma: cada compasso possui um II – V, sendo que a meta X de cada II – V já é um II de uma nova progressão II – V, e assim por diante. O décimo nono compasso e o vigésimo primeiro compasso se comportam dessa maneira. A melodia também é “estendida”: a frase apresentada no décimo nono compasso, junto com o primeiro II – V, é trabalhada em seqüência até o vigésimo primeiro compasso. O vigésimo segundo compasso é uma pequena cadência dentro desse período de quatro compassos, trazendo também um II – V e fazendo uma variação do motivo inicial do décimo nono compasso  - assinalada pelo retângulo menor.

Melodia

            Muitos conceitos utilizados na análise melódica foram baseados nos conceitos clássicos de análise musical: os conceitos de motivo, frase e período foram utilizados para identificar de que forma o desenvolvimento melódico das músicas aqui analisadas tem a ver com os formatos tradicionais de elaboração de um enunciado melódico. Esses conceitos foram utilizados conforme a acepção da Schoenberg (1991), com a devida ressalva de que o conceito de período aqui utilizado tem a acepção mais geral de um desenvolvimento melódico a partir de uma frase inicial que sofre variação e cadência, e é geralmente composto de células de um ou dois compassos, pois ele considera que existem duas formas de estabelecimento desse desenvolvimento melódico: a sentença e o período, sendo que a sentença é composta de frase, transposição de frase, variação e cadência, ao passo que o período é composto de frase, variação, transposição de frase e cadência. [ 6 ]

            O conceito de motivo foi utilizado aqui como menor célula dentro de um desenvolvimento melódico, ou dentro de uma frase, e que serve justamente para ser variado. Conforme as palavras do próprio Schoenberg: “O motivo se vale da repetição, que pode ser literal, modificada ou desenvolvida” [ 7 ]. Assim, o motivo é trabalhado através dessas transposições e variações, que aqui chamamos de seqüências (ou formas-motivo), estabelecendo grandes frases a partir das transposições e variações de um motivo.

            O conceito de frase utilizado aqui fica situado entre o motivo -menor célula - e o período, que é um agrupamento melódico com começo meio e fim - ou frase, variação e cadência - e que utiliza frases na sua organização. 

Motivos “estendidos”:

            Consiste em trabalhar uma frase curta ou motivo melódico estabelecendo seqüência, ou seja, repetindo o motivo transposto, conforme o acorde usado e sua escala. A cada mudança de acorde o motivo é transposto. Nestas passagens é muito comum que a que a harmonia progrida por seqüência de acordes do mesmo tipo, ou em dominantes ou II – V estendidas. A música “11 de Julho” traz um exemplo:

 

            O motivo melódico a ser “estendido” - trabalhado em seqüência - é o do segundo tempo do terceiro compasso - assinalado com um círculo -, que é um arpejo sobre a sétima, nona e décima primeira do acorde, no caso o Db7M. No quarto compasso, a harmonia caminha para um Bbm7 relativo do anterior Db7M, sendo que o motivo continua sendo um arpejo sobre as tensões do acorde - as mesmas sétima, nona e décima-primeira. A partir do Bbm7 a harmonia passa a progredir através de seqüência de acordes do mesmo tipo, sendo que o motivo também é tratado da mesma maneira, em seqüência, e transposto conforme a escala do acorde do momento. Interessante neste caso é observar que o ritmo do motivo já vinha sendo explorado desde o segundo tempo do segundo compasso. Ou seja, num primeiro momento - do segundo tempo do segundo compasso até o segundo tempo do terceiro compasso - havia um motivo rítmico - assinalado com o retângulo - que estava sendo explorado em seqüência, até que foi estabelecido um motivo melódico a este motivo rítmico - no segundo tempo do terceiro compasso. Num segundo momento - do segundo tempo do terceiro compasso até o final do quinto compasso -, um motivo completo se estabeleceu e foi explorado. Vejamos outro exemplo, música “25 de Junho”:

            Aqui, a seqüência foi elaborada a partir do motivo do terceiro e quarto tempos do décimo compasso, no acorde de F7M. A seguir vem uma seqüência de acordes do mesmo tipo (X7M), sendo que o motivo é transposto de acordo com a mudança dos acordes até o acorde Eb7M.

Ritmo Melódico:

            Em algumas das peças observadas o principal modo de estruturar a melodia se deu através do ritmo melódico. Desse modo, as frases se organizam em períodos ou em seqüências de dois ou quatro  compassos, simetricamente, mas somente na divisão rítmica da melodia. Afinal de contas, o ritmo por si só já estabelece de modo eficiente a organização das frases e períodos: “O ritmo é um elemento particularmente importante para moldar a frase (...), estabelece seu caráter e é freqüentemente o fator determinante para a existência de sua unidade” [ 8 ]. Ocasionalmente podem aparecer motivos ou frases melódico-rítmicas a serem trabalhadas.

            É o caso da música “13 de Julho”: do primeiro ao oitavo compasso se apresenta um período, composto de antecedente e conseqüente. O nono e o décimo compassos apresentam uma seqüência elaborada a partir da cadência do período, presente nos sétimo e oitavo compassos. Até aqui todo o desenvolvimento melódico foi elaborado através do ritmo. O décimo primeiro compasso aproveita um motivo rítmico presente na cadência do período – sétimo compasso -, e organiza este motivo também melodicamente. Esse motivo completo é utilizado em seqüência, no décimo segundo compasso, sendo transposto uma terça menor abaixo. O décimo terceiro compasso apresenta outro motivo, que vai sendo transposto em terças menores descendentes até o décimo quarto compasso. O décimo quinto compasso retoma o motivo rítmico do primeiro compasso, utilizando todas as notas presentes nesse motivo, numa outra ordem. O décimo sexto compasso traz uma repetição literal do décimo quinto compasso, realçando o retorno desse motivo do primeiro compasso. É interessante notar como o ritmo aqui é por si só suficiente para guiar a construção dos períodos, das frases, da organização da melodia.  

 

Frase “Quebrada”:

            É um tipo de construção de frase muito típico do Hermeto: é uma frase que apresenta um grande contraste em seu interior, uma “quebra”. Essa “quebra” pode ser uma figura rítmica, como em muitos casos, ou uma harmonia bem diferente, ou uma melodia sobre notas de tensão dos acordes, quando em meio a uma melodia baseada em notas do acorde, contrastando dessa forma com o caráter da frase. É o caso do famoso “Chorinho pra Ele”, na segunda parte, toda em semicolcheias, quando um grupo de sextinas aparece de repente, contrastando com toda a peça até então, baseada em semicolcheias - aliás, sextina é uma figura rítmica muito usada pelo Hermeto, para possibilitar essa “quebra” ou estabelecer cadência de frase, apesar de não ser tão comum na música popular de um modo geral.

            Vamos observar essa frase “quebrada” no início da música “16 de Julho”:

 

            É uma grande frase de quatro compassos, baseada principalmente em colcheias.  No terceiro e quarto tempos do segundo compasso aparecem apenas semicolcheias, com um sinal de legato ligando todas elas. No terceiro compasso, as colcheias voltam a aparecer, retomando o caráter moderado da frase, até o quarto compasso. Ou seja, o contraste se dá através do ritmo, que é a introdução das semicolcheias, e através da articulação, pois todo o resto da frase não possui nenhum sinal específico de articulação: apenas as semicolcheias, com legato sobre elas.

            Esse tipo de quebra também possui um caráter todo especial: lembra um pouco a ironia, a brincadeira, o humor. Como uma brincadeira de alguém que sabe muito bem como fazer frases simétricas e teima em fazer justamente o contrário.

Um clichê na Coda:

            Existe um “clichê”, um maneirismo típico do universo da música popular brasileira e do jazz que é acrescentar a décima segunda aumentada ao X7M que finaliza uma música. Ou seja, depois que se chega a este último acorde, o músico realiza uma frase improvisada que recai exatamente sobre a décima primeira aumentada, dando um “sabor lídio” - pois a décima primeira aumentada sobre um X7M caracteriza a sonoridade do modo lídio - a este acorde final. É um recurso usado ao extremo em gravações dos mais variados estilos. De tanto ser usado tornou-se banal, corriqueiro, um “clichê”.

            Em muitas das composições do Calendário do som, este “sabor lídio” aparece no final. Afinal, Hermeto, pianista da noite por muitos anos, um conhecedor de “clichês”, buscou esta mesma sonoridade usual, um “sabor lídio”, porém de forma diferente: no último compasso de uma composição Hermeto coloca dois ou mais acordes para a última nota melódica, sendo que em algum destes acordes a última nota da melodia será harmonizada de modo a soar como décima primeira aumentada. É um final com um “sabor lídio”, mas que ocorre em função da melodia. Como na música “23 de Junho”:

   

            A última nota melódica é o si bemol, harmonizado com três acordes: primeiro o Gm7, que encerra uma seqüência de acordes do mesmo tipo (Xm7), depois o E7M, acorde que torna o si bemol uma 11ª aumentada, e por fim o Eb7M, que torna o si bemol uma quinta do acorde. Aliás, em muitos dos casos vistos o acorde que sucede aquele que harmoniza a última nota da melodia como 11ª aumentada é um acorde do mesmo tipo do anterior, uma segunda menor abaixo -tornando a nota melódica uma quinta -, como na música “3 de Agosto”:

                      

            Outros exemplos: músicas “23 de Junho”, “28 de Junho”, “1º de Julho”, “5 de Julho”, “12  de Julho”, “19 de Julho”, “20 de Julho”.

Todos os procedimentos até aqui observados têm em comum a possibilidade de serem improvisados. No Calendário do som, verificamos que muitas composições podem ser entendidas como improvisações escritas. Vejamos a música “11 de Julho”, por exemplo:

 

            O desenvolvimento melódico desta composição se baseia no motivo, que é explorado seqüencialmente em alguns momentos. Não existem grandes frases ou períodos, ou seja, frases com maior organização interna - variação, cadência. Essa exploração seqüencial do motivo como recurso principal de estruturação de uma melodia é muito característica da improvisação jazzística, na qual o improvisador inicia criando frases, concatenando frases preparadas – clichês -, “passeando” pelas escalas de acordes, até chegar a um motivo com potencial para ser explorado, explorando-o ao máximo, para então voltar a “passear” com frases soltas, em busca de outro motivo. Vemos dessa forma como esta composição se assemelha a uma improvisação jazzística, baseada em uma harmonia que está sendo estabelecida juntamente com a melodia, mas direcionando o encaminhamento melódico, portanto, pré-estabelecida em relação à melodia. O primeiro motivo “encontrado” aqui é o do segundo tempo do terceiro compasso que é explorado até o final do quinto compasso. Do sexto ao décimo primeiro compassos, a melodia volta a passear, “encontrando” outro motivo no primeiro tempo do décimo segundo compasso, que é explorado até o final do décimo terceiro compasso.

Esse tipo de recurso de improvisação é contrário à improvisação na música brasileira baseada no chorinho, mais rítmica e próxima do material temático – no caso, a composição. [ 9 ] Este distanciamento do material temático que caracteriza a improvisação jazzística é que dá maior liberdade à construção de frases, gerando frases soltas, que “passeiam” pelas escalas de acordes, sem uma maior construção interna - como o uso de variações e cadência -, sem muitas “rimas” melódicas e rítmicas. O grande interesse neste modelo de improvisação é a adequação da melodia improvisada à seqüência harmônica. No improviso do choro, por exemplo, a proximidade com o material temático resulta num improviso mais “construído”, no sentido de que as frases são elaboradas como variações sobre o material melódico original, que na literatura do choro é costumeiramente construído por períodos, ou grandes frases com variação e cadência. Assim, é possível notar que os choros do Calendário do som muitas vezes também possuem um caráter improvisatório dentro da linguagem do choro, como a música “6 de Julho”.

                        Temos neste caso uma organização melódica maior, no sentido de que os motivos e frases são mais trabalhados com repetição, variação, estabelecendo períodos. Nestes doze primeiros compassos temos três períodos de quatro compassos que organizam a melodia: o primeiro período não trabalha com uso de motivo, mas ele se torna claro através da harmonia, que segue na progressão I – VIm – IIm – V7 - I, simplificadamente, retornando ao I no quarto compasso, que apresenta uma cadência que finaliza o período, e ao mesmo tempo estabelece uma frase - assinalada com a circunferência, e composta a partir de um motivo presente no segundo compasso, assinalado com o retângulo - que é trabalhada seqüencialmente, formando assim o segundo período, entre os quinto e oitavo compassos. Este segundo período, elaborado a partir da variação seqüencial, tem no oitavo compasso uma pequena cadência. Esta pequena cadência fornece o material – no caso, o uso de arpejos – no qual se baseia o terceiro período. O terceiro período é composto a partir da frase do nono compasso: o décimo compasso traz uma seqüência desta frase na versão de tônica, o décimo primeiro compasso faz um desenvolvimento, uma variação, e o décimo segundo compasso faz a cadência e pontua o período.   

            A improvisação é um dos recursos chave na música de Hermeto Pascoal, na qual está presente de várias formas: na sua execução, na performance dos músicos de seu grupo, e muito intensamente no processo de composição. Vejamos como ele percebe seu processo de composição:

Para mim, compor é algo muito fácil. Minha cabeça é uma fonte, uma nascente. E uma nascente quer que alguém venha buscar a água, que vai sendo substituída. Eu tenho sempre que compor porque minha cabeça se enche de idéias. O livro surgiu como uma intuição. Sempre que eu estava viajando, ou às vezes no banho, pensava: ‘Hermeto, você tem que fazer uma música por dia, durante um ano. Onde você estiver tocando, em qualquer parte do mundo’". [10]

            Sendo “muito fácil”, o ato de compor se torna para Hermeto algo instantâneo, graças à sua grande facilidade de criar e desenvolver idéias musicais. Percebemos com essa declaração que o seu processo de composição se norteia em aproveitar as idéias de forma rápida, porque logo elas vão dando lugar a outras. Muitas de suas composições não vão para o papel, porque surgem no tempo tão rápido como desaparecem, como na metáfora da nascente. O processo de composição com Hermeto torna-se algo rápido, fácil e “desmistificado”:

Não tive essa intenção, mas o livro acabou virando um diário", reconhece o músico alagoano, dizendo que pretende com essa obra desmistificar o ato da composição. "O que eu quis mostrar é que para compor não tem dificuldade. Comparo isso ao pintor que vai para uma praça e pinta um monte de quadros. Eu poderia ir para uma praça também e ficar fazendo uma música atrás da outra. Não é difícil. Só depende da pessoa”. [11]

            Assim, suas composições surgem em poucos momentos, instantaneamente, como um improviso. É preciso escrevê-las para dar lugar às novas idéias. Não é possível ficar muito tempo burilando uma composição, uma idéia. Ela deve ser tocada, pensada e prontamente passada para o papel, o que é para Hermeto a parte mais difícil: frear o impulso criativo e parar para anotar suas idéias, suas composições.

Em clima de viagem compus esta música juntamente com a do dia 7. Se fossem seres humanos seriam irmãos gêmeos. Eu ia fazer só uma, para não sobrar idéias preferi fazer as duas” [12].

            Podemos notar através de seus depoimentos que o processo de composição de Hermeto está carregado de instantaneidade, de improvisação. Esta atitude perante a composição e a improvisação torna esses dois processos praticamente simultâneos: é como se compor e improvisar fosse uma mesma coisa, pois o raciocínio musical usado em ambos é o mesmo. Enquanto a composição se refere a algo que foi previamente preparado, já possuía uma forma definida - ainda que contenha elementos improvisatórios, indeterminados ou aleatórios na sua concepção -, a improvisação remete a um acontecimento musical instantâneo, cuja forma está sendo definida no momento de sua execução - ainda que contenha elementos “composicionais”, como o uso de clichês, de motivos trabalhados seqüencialmente ou mesmo a improvisação sobre um tema musical de conhecimento prévio. Ou seja,

Composição => Forma definida      Improvisação => Define forma

Interessante é notar que em sua linguagem musical Hermeto mostra seu grande senso de observação, de estudo e posterior “canibalização” de vários estilos musicais, que através de seu apurado senso de improvisação se relacionam, se misturam e se completam. Samba, choro, música regional nordestina, jazz, free-jazz, música contemporânea, foram todas observadas, assimiladas e incorporadas de forma absolutamente orgânica em sua música, e isso a torna especialmente fascinante. Esses procedimentos analisados são apenas algumas das formas de concretizar essa vivência musical tão completa.

Referências Bibliográficas:

CAZES, Henrique. Choro: do quintal ao Municipal. São Paulo: Editora 34, 1999.

FREITAS, Sérgio Paulo Ribeiro de. Teoria da harmonia aplicada à música popular. Dissertação de Mestrado. UNESP, 1995.

JUNGBLUTH, Axel. Jazz Harmonielehre: Funktionsharmonik und Modalität. Mainz: Schott, 1981.

LIMA NETO, Luiz Costa. “The Experimental Music of Hermeto Pascoal e Grupo (1981-1993): a musical system in the making”.  In: British Journal of Ethnomusicology Volume 9/I, 2000.

PASCOAL, Hermeto. Calendário do som. São Paulo: Editora SENAC São Paulo – Instituto Cultural Itaú, 2000.

SANTOS NETO, Jovino. Tudo é som. “All is sound: the music of Hermeto Pascoal”. Seattle: Universal Edition, 2000.

SHOENBERG, Arnold. Fundamentos da Composição Musical. São Paulo: Edusp, 1991.


ARTIGOS E ENTREVISTAS PUBLICADOS NA WEB:

CALADO, Carlos. “Entrevista com Hermeto Pascoal”. Disponível em http://www.cliquemusic.com.br/br/Acontecendo/Acontecendo.asp?Nu_materia=660, consultada em 18/04/2004.

GONTILLO, Murilo. “Minha religião é a música” – Entrevista com Hermeto Pascoal. Disponível em www.ufmg.br/boletim/bol1285/pag5.htmlHermetoPascoal, consultada em 18/01/2004.  

Composição e improvisação no Calendário do som
Luiz Gustavo Zago

Bacharel em piano pela UDESC, compositor e arranjador.
PASCOAL, Hermeto. Calendário do som. São Paulo: Editora SENAC São Paulo – Instituto Cultural Itaú, 2000.
[ 1 ] PASCOAL, Hermeto. Calendário do som. São Paulo: Editora SENAC São Paulo – Instituto Cultural Itaú, 2000,pg 121.
[ 2 ] in LIMA NETO, Luiz Costa. “The Experimental Music of Hermeto Pascoal e Grupo (1981-1993): a musical system in the making” in: British Journal of Ethnomusicology Volume 9/I, 2000, pg:127.
[ 3 ] FREITAS, Sérgio Paulo Ribeiro de. Teoria da Harmonia aplicada à Música Popular. Dissertação de Mestrado. UNESP, 1995, pg 24
[ 4 ] JUNGBLUTH, Axel. Jazz Harmonielehre: Funktionsharmonik und Modalität. Mainz: Schott, 1981
[ 5 ] SANTOS NETO, Jovino. Tudo é som. “All is sound: the music of Hermeto Pascoal”. Seattle: Universal Edition, 2000.

[ 6 ] SCHOENBERG, Arnold. Fundamentos da Composição Musical. São Paulo: Edusp, 1991.

[ 7 ] Schoenberg. Op. cit, p. 37.
[ 8 ] SCHOENBERG. Op. cit, p. 30.

[ 9 ] CAZES, Henrique. Choro: do quintal ao Municipal. p. 121.
[10] GONTILLO, Murilo. “Minha religião é a música” – Entrevista com Hermeto Pascoal.
[11] CALADO, Carlos. Entrevista com Hermeto Pascoal.

[12] PASCOAL, Hermeto. Calendário do som, p. 130.