Neste
artigo, observo o jogo dos conceitos opostos de sexualidade e morte na ópera
Turandot, de Giacomo Puccini, com base em textos de Freud, Bataille
e Kristeva. Concentro-me no entrelaçamento das convenções literárias e musicais
característico da ópera, restringindo-me a sua partitura músico-textual. Não
considero, aqui, o aspecto cênico da ópera, por ser o fator mais suscetível
de variação de uma montagem para outra, pois cada uma pode ressaltar visualmente
diferentes aspectos da partitura original.
O
gênero operístico se encontra na fronteira entre a música e o teatro, e este
último já é um composto de artes dramáticas, artes visuais e literatura. Apesar
da maioria dos estudos sobre ópera ocorrer no campo da musicologia, a natureza
do gênero demanda uma abordagem transdisciplinar. A ópera impõe um desafio
de igual tamanho para diferentes áreas do saber, especialmente para os estudos
literários, no campo da literatura comparada. O gênero dramático-musical se
desenvolveu, afinal, a partir de um parentesco artificial com a tragédia grega,
um dos fundamentos da literatura ocidental: o início da ópera foi em Florença,
entre as décadas de 1570 e 1600, quando a Camerata Bardi, um grupo de aristocratas
que discutia temas intelectuais e artísticos, especulou sobre o papel da música
na tragédia grega. [ 1 ] No entanto, a história
da literatura raramente trata da ópera e os livros de história da música e
do teatro normalmente lhe dedicam poucos parágrafos. Configura-se, assim,
a recente demanda por território historiográfico tão específico e exclusivo
quanto o público contemporâneo desse gênero.
A
ópera tomou a forma que conhecemos
hoje durante a metade
final do século
XVII. No século XVIII,
espalhou-se pela Europa, junto com a internacionalização das práticas musicais
italianas, cujas ressonâncias sentimos até hoje nas indicações de andamento
e expressão das partituras (adagio, fortissimo, piano, etc).
Surgiram, então, linhas operísticas específicas, sendo a alemã e a francesa
as ramificações mais significativas da ópera italiana. Os musicólogos William
Ashbrook e Harold Powers referem-se a uma “grande tradição” italiana que começa
por volta de 1675, com a definição da aria da capo. Giacomo Puccini (1858-1924) é considerado
por Ashbrook e Powers um dos seus nomes principais, ao lado de Rossini, Bellini
e Verdi. [
2 ]
De
acordo com os autores, a tradição teria terminado com Turandot (1926),
ou ainda com a morte de Puccini, que não conseguiu completar sua última ópera.
Afinal, embora ainda se componham óperas, é quase impossível que hoje se escreva
um novo melodrama grandioso, pelo menos com intenções sérias. [ 3 ]. A “grande
tradição” sobrevive na contemporaneidade pela representação constante de tais
óperas no mundo inteiro e por sua herança em filmes, a princípio em cineastas
como Cecil B. De Mille e, mais tarde, em cineastas-diretores de ópera como
Franco Zeffirelli. [ 4 ].
Hoje,
a música é subjugada pelo texto e constantemente subestimada no cinema, nas
novelas e mesmo no teatro não-musical. No entanto, como escreve o crítico
Joseph Kerman, “Em ópera, o compositor é o dramaturgo”. [ 5 ]
A única parceria na criação da partitura de uma ópera é entre o compositor
e o libretista. O libreto
é usualmente uma compressão e versificação (quando necessária) de uma obra
literária já existente. Assim, os
compositores de ópera são, de certo modo, responsáveis simultaneamente pela
ação dramática e sua trilha sonora, porque, nesse gênero, ambas são a mesma
coisa.
As habilidades do compositor de ópera se mostram na capacidade de expressar musicalmente o drama teatral com concisão narrativa e na conexão entre texto e aspectos visuais, ou cênicos, por meio da música. E são justamente essas as habilidades mais aclamadas de Giacomo Puccini, tendo sido, em vida, um sucesso de público equivalente ao dos filmes blockbusters americanos contemporâneos e mantendo vitalidade constante no limitado mercado de montagens de ópera até hoje. No entanto, a maior parte da crítica, baseada em padrões musicais eruditos, sempre o considerou superficial e apelativo. O próprio Puccini lamentava não conseguir compor música instrumental pura, sem apoio num texto dramático, e admitiu, numa carta a um dos libretistas de Turandot, só saber escrever música quando seus “fantoches” se moviam no palco. [ 6 ] Há, porém, unanimidade entre musicólogos quanto à técnica dramática de Puccini e quanto à sua capacidade de despertar simpatia, “no sentido etimológico de ‘sentir com’ (...) não só em relação às personagens ‘positivas’ e dignas de compaixão (Mimì, Butterfly, Angelica, Liù), mas também às ‘negativas’, que inspiram asco ou antipatia (Scarpia, a Zia Principessa, Pinkerton ou Turandot)”, tal como afirma o historiador de ópera Lauro Machado Coelho. [ 7 ]
Turandot e Liù são personagens da ópera aqui investigada. Puccini convocou dois libretistas para escrevê-la, Giuseppe Giacosa e Luigi Illica, com quem trocava intensa correspondência e em cujo trabalho interferia a ponto de criar, sozinho, uma personagem nova, a escrava Liù. A obra de base foi a peça Turandotte, escrita em 1762 por Carlo Gozzi (1722-1806), adaptada diversas vezes para ópera e teatro e inspirada, por sua vez, num conto de fadas de origem oriental. [ 8 ] Friedrich Schiller está entre os dramaturgos que reescreveram Turandot. Sabe-se que Puccini leu sua versão. |
. |
Turandot
é uma obra fundada em contrastes e a oposição de forças permeia
esta ópera em múltiplos aspectos. Musicalmente, segundo William Ashbrook e
Harold Powers, existe um contraste entre as tonalidades de ré maior e mi bemol
maior, associados respectivamente ao príncipe Calaf e à princesa Turandot.
Tematicamente, ainda segundo os musicólogos, há contrastes recorrentes entre
“ouro e prata, luz e escuridão, fogo e gelo, vida e morte”. [ 9 ] É nesta
última oposição que concentro minha análise, partindo dos escritos de Sigmund
Freud, Georges Bataille e Julia Kristeva sobre a relação entre as forças internas
da vida, ou da sexualidade, e as da morte.
Em Além do princípio do prazer, de 1922, Freud refutou a própria tese de que todas as ações humanas seriam dirigidas pelo “instinto de vida” – desejo sexual, libido, Eros –, ao perceber que pacientes traumatizados insistiam em recontar e reviviam em sonhos as histórias que lhes perturbavam. Freud classificou essa obsessão como um “instinto de morte” que convive com Eros em cada célula de um organismo. [10] Embora Freud não nomeie o instinto de morte como o faz com o de vida, o Eros personificado nas figuras do Cupido e de Vênus, este ficou associado a Tânatos ou Tanatos, representado por um gênio masculino alado na mitologia grega e pela deusa Mors na romana. [11] A pulsão da morte teria a função de levar o organismo gradualmente de volta ao estado não-orgânico e precederia o desejo sexual.
A ópera, uma forma de arte complexa, extravagante, grandiosa e viva como um desfile de carnaval é também impregnada por fortes associações com a morte. Tanto que a insistência e a previsibilidade do final trágico é o primeiro aspecto considerado em qualquer paródia ao gênero: “a soprano sempre morre no final”, ri o meio operístico. A grande tradição italiana de ópera une constantemente amor, ou desejo sexual, à morte, sendo que o primeiro conduz à segunda. Para citar poucos exemplos, a sacerdotisa de Norma (Bellini, 1831) viola seu voto de castidade e é sacrificada junto com seu amante por isto; Rigoletto (Verdi, 1851), um palhaço deformado, esforça-se em resguardar dos homens a bela filha, que termina seduzida e, conseqüentemente, assassinada por causa de um; e a Santuzza de Cavalleria Rusticana (Mascagni, 1890) leva o amante à morte, após descobrir que ele a traiu.
No enredo da Turandot de Puccini, esse jogo de forças acontece de modo mais sutil que nesses exemplos, ainda que o equilíbrio de Eros e Tânatos se faça sentir tanto nos aspectos basais da obra quanto em seus detalhes. No nível estrutural mais básico, por exemplo, toda a ação de Turandot ocorre em menos de vinte e quatro horas, entre o nascer da lua e o nascer do sol, pólos simbólicos de morte e amor. O enredo, no entanto, não traz uma clara relação de causa e conseqüência comum na ópera italiana e também na obra precedente de Puccini. Turandot contém fatores complicadores que, especula-se, podem ter posto o compositor num impasse que o impediu de terminar a ópera antes de morrer. Além de a história prever um atípico final feliz, por sua origem de conto de fadas, havia o fator de a personagem-título corresponder simultaneamente aos arquétipos de vilã e de mocinha.
Nas peças em que o libreto foi inspirado, uma delas uma comédia, Turandot é retratada como uma princesa violenta e impetuosa que, no entanto, sente-se atraída pelo príncipe desde o momento em que o vê, chegando a torcer para que ele decifre seus enigmas, às vistas do público – tornando-se, assim, uma personagem “positiva”. No entanto, Puccini e os libretistas Giacosa e Illica transformaram Turandot numa deusa síntese de Vênus e Mors, inatingível, que se refestela em vingança contra os homens em geral e que só revela a atração que sentiu o tempo todo por Calaf no último instante da última cena. “Cosa umana non sono”, ela chega a afirmar ao príncipe no terceiro ato, em referência a uma auto-imagem divina, fantasmagórica, de morta. E com que artifícios de enredo se poderia forçar essa deusa absoluta a se tornar uma princesa sexualizada, casadoira e, portanto, destituída de poder sobre os homens, poder que ela preza acima de tudo? Diferente de Carmen (Bizet, 1875), a cigana que prefere ser assassinada a se comprometer definitivamente com seu amante, Turandot tinha seu casamento marcado antes mesmo da ópera começar a ser composta. Era esse seu destino de personagem. Ao escrever o primeiro ato, porém, Puccini criou uma personalidade feminina tão forte quanto Carmen – embora, ao contrário da cigana cuja força motriz é a sexualidade, a força de Turandot seja provida por sua castidade ou, melhor dizendo, seu instinto de morte.
O erotismo que cerca
Turandot, inseparável da morte e até instigado por ela, é compreensível por
meio das idéias de Georges
Bataille, que defende, em O erotismo, a semelhança entre o movimento
do desejo e o da morte. Ambos empurram o ser para fora da descontinuidade
individual, que se faz sentir no mundo iluminado, diurno, onde se discerne
cada objeto. Na escuridão da morte e do desejo sexual, há uma continuidade
que Bataille considera divina, e que se teria feito sentir nos antigos rituais
de sacrifício humano – como o que se presencia no primeiro ato de Turandot.
A princesa,
portanto, representa o
pólo noturno e contínuo desta ópera, em contraste com o príncipe Calaf, que
quebra, ou descontinua, o ciclo de orgias funerárias do povo bárbaro e traz
iluminação solar. Apesar disso, ele deseja cegamente Turandot, possuidora
do halo de morte que, para Bataille, caracteriza a paixão. [12]
A união entre Eros e Tânatos na figura de Turandot está expressa nos coros musicalmente contrastantes do carrasco e do nascer da lua, no primeiro ato. A personagem da princesa só canta a partir da metade do segundo ato, tendo apenas uma breve aparição muda no primeiro. Sua presença ausente e ameaçadora, porém, se faz sentir desde os primeiros compassos da ópera, quando um mandarim anuncia, para o povo reunido em frente ao palácio de Pequim, que mais um pretendente, o príncipe da Pérsia, errou os enigmas propostos por Turandot e será decapitado ao nascer da lua. Em seguida, sempre em meio a música contínua, há a apresentação dos personagens do príncipe Calaf, seu pai e sua escrava Liù, três exilados que assistem aos costumes do povo chinês “exótico” com o mesmo distanciamento que os espectadores ocidentais.
A ressonância da presença de Turandot atinge volume máximo nos coros geminados
em que os chineses invocam a trindade princesa-morte-lua. O primeiro coro,
de música percussiva e violenta, tem um papel de sedução: seu ritmo marcado
e grandioso leva o corpo do espectador a uma vibração simpática com a do povo
que deseja assistir à morte de mais um pretendente frustrado. Nestes trechos
da letra, o povo e os ajudantes do carrasco descrevem Turandot como uma entidade
espiritual maligna, que se pode invocar através do gongo em frente ao palácio:
Chi quel gong percuoterà
apparire la
vedrà.
Bianca al pari della giada,
fredda come
quella spada
è la bella
Turandot!
Quem soar aquele gongo
Vai vê-la aparecer.
Branca como a geada,
fria como aquela espada
é a bela Turandot! [13]Do mesmo modo que o coro do carrasco, o coro do nascer da lua, metáfora para a princesa Turandot, impregna a morte com um valor erótico. A música composta por Puccini neste trecho lembra o estilo francês da transição entre o século XIX e XX, conhecido como “impressionista”, cujos compositores, como Debussy, procuravam evocar atmosferas desenvolvidas musicalmente, sem ênfase na referencialidade. Tal como na pintura impressionista, em que se representa a percepção do objeto e não o objeto, o impressionismo na música se dedica à expressão das percepções e sensações relacionadas com alguma temática – no caso, a luz lunar morta e fria, porém apaixonadamente desejada, de Turandot. A harmonia do estilo do coro da lua não segue a tradição da teoria funcional. É possível que Puccini tenha escolhido esse estilo “ilógico” para esse trecho do libreto porque, para o público-alvo classe-média de Puccini, futuro público de Hollywood, esta evocação erótica da morte pareceria irracional:
O amante smunta dei morti!
(...)
Come aspettano, o taciturna,
il tuo funereo lume i cimiteri!
O esangue, squallida! O testa mozza!
(...)
Como os cemitérios anseiam, ó taciturna,
por tua luz fúnebre!
Ó exangue, esquálida! Ó cabeça cortada!
No entanto, a barbárie não é completa: quando o povo vê o belo e jovem príncipe
que será executado, seu clamor sanguinário se transforma em clamor piedoso.
O coro implora à princesa que revogue a punição. Calaf, horrorizado com os
acontecimentos, junta-se a eles, cantando “Ch'io ti veda e ch’io te maledica,
crudele!” (que eu te veja e te amaldiçoe, cruel). Turandot aparece numa janela
ao fundo do palco, acompanhada por uma melodia chinesa folclórica fúnebre
e, com um gesto imperial, confirma a sentença de decapitação. Ao ver a princesa,
Calaf repete sua melodia anterior, porém transposta uma terça abaixo, o que
pode sinalizar tanto o enfraquecimento apaixonado de seu senso moral quanto
uma demarcação de sua masculinidade, e com a seguinte letra: “O divina belezza!
O meraviglia! O sogno!”. A circunstância mórbida em que Calaf se apaixona
por Turandot é a chave para outro aspecto da homeostase entre Eros e Tânatos
nessa ópera: a ligação entre frieza feminina e poder político.
As
duas mortas de Turandot
A análise por um ângulo diferente revela outro contraste entre Eros e Tânatos, desta vez na oposição das personagens Turandot e Liù. Isto, no entanto, não exclui o contraste que cerca a figura de Turandot em si, pois a coesão interna desta ópera, mesmo com seu final mutilado, permite que se observe a mesma estrutura repetida em diversos níveis. |
|
A escrava Liù, como já mencionei, é uma criação de Puccini, cuja obra é
marcada por heroínas frágeis que se sacrificam por amor. O acréscimo desta
personagem parece ter sido um artifício para o compositor lidar com a frieza
da protagonista, de quem Liù é o oposto: desprovida de poder social, frágil
e calorosa, ela nutre um amor platônico e extremado por Calaf, que a leva
a suicidar-se para salvá-lo. O final do libreto aprovado por Puccini dita
que, impressionada por esse ato, Turandot passa a acreditar na força do amor,
cede aos avanços do príncipe estrangeiro e os dois vivem felizes para sempre,
esquecidos da subordinada. No entanto, Puccini não conseguiu compor para além
da morte de Liù, deixando a ópera pronta apenas até seu cortejo fúnebre e
legando a Alfano a difícil resolução deste nó: como pode o público torcer
pela realização do amor de Turandot e Calaf, quando as atrocidades da princesa
impassível se agravam perto da grandiosidade da escrava morta? Liù, a essa
altura, tornou-se o único alvo da simpatia do espectador. Sabe-se que Puccini
planejava, para o final, um dueto de amor tão grandioso quanto o de Tristão
e Isolda (Wagner, 1865), que talvez remanejasse a atenção do público para
o casal da nobreza. Ainda assim, os problemas de coerência do enredo persistiriam.
Existem, porém, dois recursos para tornar a súbita capitulação de Turandot
aceitável: uma é a consideração da troca de papéis sociais que ocorre, gradualmente
ao longo da ópera, entre as duas personagens femininas; a outra é a audição
mais atenta da primeira ária de Turandot.
Julia Kristeva analisa
as amadas mortas da literatura e especula sobre o cadáver feminino como representante
de uma mulher fálica, porque impenetrável, porque deixou de ser sexo oposto
para se tornar um símbolo da potência que o amante almeja para si. [14] No já referido coro do primeiro ato, a população ironiza
a princesa “fria como aquela espada”
do carrasco, uma metáfora que fala por si mesma. Enquanto isso, o príncipe Calaf, como
se pode deduzir do diálogo inicial com o pai, é um exilado do próprio reino:
seu pai foi deposto pela população e hoje esse ex-monarca é um velho quase
cego, esfarrapado, mendigando alimento, impotente. Quando Calaf vê Turandot,
vislumbra não apenas uma “divina belezza”, mas, antes, sua última chance de
recuperar o poder perdido. Isso explica a teimosia cega com que ele resiste
às veementes tentativas de todos os outros personagens, incluindo o coro,
em dissuadi-lo de se oferecer para Turandot. Nada o impedirá de tentar a mão
da princesa em casamento, junto com todo seu poderoso reino. O príncipe tira
sua coragem, e talvez sua facilidade em resolver os enigmas, do fato de que
nada tem a perder. Ele precisa da princesa fria e rígida para recuperar sua
própria potência.
A descrição de Kristeva de uma personagem do romance Ma Mère, de
Bataille, é aplicável ipsis litteris à Turandot do início da ópera:
“(...) sexualidade feminina onipotente, destruidora, agressiva e vitimária
a um só tempo, mas autárquica em última instância como um Deus antigo, porque
despojada de objeto.” [ 15 ] A mulher fálica de que fala Kristeva é associada,
no imaginário ocidental, ao poder político e à desistência da feminilidade
e maternidade. O arquétipo europeu da princesa ou rainha gelada está presente
nos contos de fadas de Andersen como A rainha da neve e a famosa madrasta
da Branca de neve, e também em poderosas como a primeira-ministra inglesa
Margaret Thatcher, a “dama de ferro”. Este tipo é apresentado, ainda, na narrativa
contemporânea do filme Elizabeth (Shekhar Kapur, 1998), uma recriação
da personagem histórica Elizabeth I, rainha da Inglaterra entre 1558 e 1603.
No filme, ela elimina seus pretendentes para manter seu poder político absoluto
e, no final, cria para si a imagem divina da “rainha virgem”. É desse momento
de criação de uma personagem de si própria que parte a história de Turandot.
Esta, entretanto, termina na derrocada da imagem sobrenatural e na transformação
da protagonista numa mulher de carne e osso, como numa imagem invertida de
Elizabeth.
Tal transformação de Turandot se dá através de Liù. Assim como Turandot,
Liù é uma soprano, o que mostra que não se trata da hierarquia arquetípica
comum em outras óperas do romantismo. Nelas há, em geral, uma protagonista
feminina (a “prima donna”) de voz aguda e uma coadjuvante de voz grave, sendo
mais raro o inverso. Em Turandot, duas sopranos dividem o palco, sendo
que o tratamento dramático que Puccini deu à suposta “seconda donna” rompe
a hierarquia estrutural entre as duas personagens.
Tu che di gel sei cinta,
da tanta fiamma vinta, l'amerai anche tu!
(...)
Ei vinca ancor!
Você que pelo gelo é fortificada,
Enfraquecida por tanto fogo, também o amará!
(...)
Que ele vença outra vez!
A população que exortara os carrascos a torturar a escrava se arrepende, após sua morte, e carrega seu corpo num grandioso cortejo fúnebre, deixando Turandot para trás e pedindo ao espírito com poder de vingança de Liù: “Ombra dolente, non farci del male! Ombra sdegnosa, perdona, perdona!” (Sombra triste, não nos faça mal! Sombra desdenhosa, perdoa, perdoa!) Nesse momento, no verdadeiro ponto final de Puccini para a ópera, ocorre o cruzamento das linhas que traçam os caminhos opostos das protagonistas: Liù passa de Eros a Tânatos e Turandot faz o caminho oposto. A princesa, no início da ópera, é um poderoso e implacável cadáver, sem instinto de vida algum, e termina como uma mulher em lágrimas, sexualizada e, em suas próprias palavras, derrotada. Liù, conduzida por Eros à ação mais extrema do instinto de morte, termina a ópera dona do mesmo poder sobrenatural que pertencera a Turandot, no início.
Note-se que a última fala de Liù (“Ei vinca ancor!”), assim como a de Turandot após o beijo de Calaf, “Come vincesti?”, conotam uma perda de poder de ação. Tal inversão de papéis justifica ainda outro problema do enredo. No segundo ato, quando o príncipe Calaf resolve os três enigmas e ganha a mão de Turandot, ele recua diante da ira da princesa, dizendo que não a quer à força e sim “toda ardente de amor”. Por isso, propõe a ela que descubra seu nome até o amanhecer; se ela conseguir, ele será decapitado, e, se não, eles deverão se casar. Tal proposta foge a qualquer lógica interna; Calaf demonstra uma ingenuidade que não condiz com sua recém-comprovada inteligência superior. Afinal, se Turandot teve aversão a homens a vida inteira, não será por causa de um enigma não resolvido que se entregará de boa vontade aos braços de Calaf, como ele parece esperar. Tanto é que, imediatamente, a princesa ordena que ninguém no reino durma naquela noite, anunciando que, se o nome não for descoberto até o amanhecer, toda a população pagará com a vida. Turandot prefere aniquilar o próprio reino a entregá-lo ao estrangeiro.
Uma explicação para a atitude de Calaf, na perspectiva da mulher morta e onipotente com que trabalhei acima, está na conseqüência inesperada de sua vitória: ele buscou sua potência perdida na princesa fria e, ao se casar com ela, estaria violando sua própria deusa, derrubando-a do altar do qual ele próprio depende. Liù resolve o impasse ao substituir Turandot, no imaginário de Calaf, como o cadáver feminino implacável, noturno e contínuo. Assim, em ato contínuo ao suicídio de Liù, Calaf reúne uma masculinidade que não tivera no segundo ato e beija Turandot à força, tão confiante em seu novo poder que ele próprio revela seu nome à princesa – o nome pelo qual sua pobre escrava deu a vida para esconder.
A outra possibilidade de coerência que Puccini reservava
para o final, levantada por alguns musicólogos, esconde-se na primeira ária
da personagem Turandot, no segundo ato, em que a princesa relata para Calaf
uma remota invasão dos tártaros, “há muitos milhares de anos”, quando uma
antepassada sua foi morta. É por causa desta morte (e provável violação) que
Turandot precisa se vingar de todos os homens estrangeiros:
Il regno vinto! E Lou-Ling,
la mia ava, trascinata
da un uomo come te,
come te straniero, là nella notte atroce
dove si spense la sua fresca voce!
O reino vencido! E Lou-Ling,
minha antepassada, arrastada (para fora do palácio) por um homem como tu,
estrangeiro como tu, naquela noite atroz
em que sua jovem voz foi sufocada!
Esta narração pode ser lida, com base no artigo de Freud Além do princípio do prazer, como a narração de um trauma atávico que comanda o instinto de morte de Turandot. É também o lugar de expressão da “sexualidade agressiva e vitimária a um só tempo” de que fala Kristeva. A narrativa ainda pode ser disfarce para um fato violento do passado da própria princesa, que extinguiu sua feminilidade e sua libido.
Se a simetria for
uma manifestação concreta da beleza, estamos diante de uma obra que a atingiu
através do equilíbrio de extremos: por toda a parte em Turandot, Tânatos
vibra em uníssono com Eros – às vezes literalmente, como no caso do micro-dueto
de Turandot e Calaf acima descrito. E a paixão exacerbada que se presencia
nas óperas, apresentada sempre numa conjunção libidinosa de diversas artes
cujos significados se potencializam mutuamente, exige a morte para que haja
equilíbrio interno, do mesmo modo que um organismo que luta pela vida tende,
ao mesmo tempo, para sua auto-extinção.
Bibliografia: