O nome de Rolando Castello Junior deve constar em qualquer narrativa que se escreva sobre o rock brasileiro. O baterista, reverenciado como um dos melhores de rock do Brasil, além de integrar a Patrulha do Espaço, fundada pelo mutante Arnaldo Baptista no final dos anos 70, integrou as bandas Made in Brazil, Aeroblues, Inox, entre outras no Brasil e no mundo. A despeito da despedida de Arnaldo Baptista, Rolando Castelo Junior manteve incansavelmente a banda na estrada, carregando consigo uma parte fundamental do rock brasileiro. O papel fundamental que o entrevistado cumpre perante o rock brasileiro ultrapassa o de destacado instrumentista que, paralelamente ao desenvolvimento de seus trabalhos, participou de outros como os discos da progressiva Quantum e, mais recentemente, do Cd Esperanza da banda Brasil Papaya, de Florianópolis, atuando como produtor de discos e eventos que envolvem tanto o seu instrumento quanto outros importantes nomes da cena roqueira.

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Tiago Hermano Breunig – A Patrulha do Espaço representa para o rock brasileiro uma afirmação do rock tanto sonora quanto liricamente – como comprova a letra de 1978 que afirma “Eu vou pra qualquer lugar aonde eu possa tocar / E não quero pensar muito pra onde eu vou / Mas onde estiver eu sou mais rock and roll” – justamente no momento em que as bandas de rock se apropriam de determinados paradigmas musicais consensualmente compreendidos como nacionais. O que o leva a escrever em 2003 uma letra que tematiza esse processo associado ao silenciamento do rock a partir do decreto do AI-5 por meio de versos como “Eu não me lembro quando o rock morreu / se foi hoje ou quando o AI-5 nasceu” e “Misture rock com roll”?

 

Rolando Castello Junior – Exato. Ultimamente se mistura o rock com um monte de ritmos: manguebeat, forrock, rock-samba, jazz-rock... A gente quis retornar a misturar rock com roll: rock and roll. Agora, o AI-5 atrapalhou bastante o rock and roll. Os meninos que integravam a banda quando a gravamos nem tinham nascido quando decretaram o AI-5. Mas eles são conscientes. É uma história recente. Mas é por aí... Depois do golpe só se tomou conhecimento do rock a partir de meados dos anos 80, quando, na verdade, o rock brasileiro é muito mais antigo.

 

T – A que você atribui o fato de que não se fala em rock brasileiro antes dos anos 80?

 

R – Simples. Costuma-se dizer que os vencedores escrevem a história. E quem escreve a história do rock a partir dos anos 80 são os seus contemporâneos. Quem manipula as informações participa da geração dos anos 80. Essa semana mesmo eu estava lendo uma revista que saiu agora sobre os discos dos Mutantes e o autor do artigo escrevendo de um modo que... sabe? Mesmo nos elogios ainda existe algo destrutivo. Falta muita informação, e, antigamente, no Brasil, a informação demorava 2 ou 3 anos pra chegar. Livros, discos... O cara que escreve a história tem o dever de ser informado, independentemente do seu gosto. Infelizmente o jornalismo musical se tornou algo do gosto do jornalista. Para eles o rock brasileiro começou com a Blitz. E não começou. Não começou com a Patrulha e nem com o Made in Brazil. Começou com Celly e Tony Campello, Ronnie Cord, etc., operários do rock.

 

T – Acredito que o reconhecimento do rock no Brasil tem a ver com a abertura política. Porque depois da abertura a questão da dicotomia entre o nacional e o estrangeiro perde importância. Então se fala em rock nacional, o que antes era inconcebível.


Patrulha do Espaço em 1978: Osvaldo "Cokinho" Gennari, Rolando Castelo Junior, Dudu Chermont e Percy Weiss. Foto: Grace Lagoa.

R – Totalmente. Isso é uma consciência que se tinha na época. O rock só funciona com liberdade. Não existe rock and roll sem liberdade, porque o rock mexe com costumes. Se não se tem liberdade de mudar os costumes, não se pode fazer rock. Evidentemente que tem tudo a ver.

 

T – Essa dicotomia se sustentava na sociedade por meio de pares opostos como esquerda e direita, nacional e estrangeiro, etc., e, aparentemente, o rock brasileiro responde a essa dicotomia segmentando-se, a grosso modo, entre uma vertente musicalmente mais nacionalista que misturava o rock aos ritmos brasileiros e outra vertente mais propriamente roqueira. Por um lado, aproximar-se da categoria MPB poderia significar a garantia de circulação, por outro, a Patrulha do Espaço, por exemplo, tem seus dois primeiros discos lançados apenas dez anos depois.

R – Os dois primeiros com o Arnaldo Baptista?

 

T – Exatamente. Esses discos são lançados dez anos depois e o terceiro disco sem o Arnaldo dois anos depois.


Elo Perdido, 1978.

R – O problema com o Arnaldo se relaciona com o estereótipo que o pessoal das gravadoras tinha dele. O Elo Perdido sequer foi mixado. O disco foi apenas gravado para uma posterior mixagem. As gravadoras não queriam trabalhar com o Arnaldo porque ele tinha fama de louco. Ele poderia ser louco mesmo, mas, ainda assim, faria boas canções, bem gravadas e com conteúdo, e, ainda, teria uma história. Eles deveriam ter uma grande gratidão pelo trabalho que ele realizou, mas não se interessaram. O Brasil é muito secional. Você mesmo sabe que o rock foi marginalizado. Você mesmo falou que o rock conseguiu maior expressão depois de 1985. E a gente está falando de 1978. Houve um boom de rock brasileiro no começo dos anos 60 e outro acredito que entre 1970 e 1975, com Made in Brazil, Som Nosso de Cada Dia, Mutantes, O Terço, etc., mas houve um hiato de uns dez anos. A coisa ficou totalmente underground.

 

T – E como você encara a questão da apropriação de paradigmas musicais brasileiros em “Corta Jaca” (Elo perdido, 1978)? O Arnaldo Baptista a classifica como “booguie-honk-tonk-rock and roll”, e, com isso, como que apaga que algo soa como um xote, pela acentuação e pela binaridade do compasso.

 

R – Totalmente brasileira. Essa canção remete a algo bem caipira. O ritmo dela e a melodia dela, a mim, a primeira vez que toquei com ele, remeteu-me ao interior. Ela soa como as canções do interior do Estado de São Paulo. Mas eu não sei dessa história de “booguie-honk-tonk-rock and roll”. Acho que tem muito mais a ver com música brasileira mesmo, o que vem da formação dele, que tem um grande conhecimento de música brasileira.

 

T – Eu transcrevi a melodia da canção e percebi que aparece constantemente uma figura rítmica que o Mário de Andrade ora chama “síncope característica”, ora chama “síncope legítima”, atribuindo a ela uma brasilidade que se manifesta pelo ritmo.

 

R – Inclusive quando a gente começou a tocá-la, ela não tinha uma roupagem rock and roll. Pra mim aquilo não era nem um rock e nem uma balada. A levada da bateria é simples porque é uma canção muito simples. E acho que a cultura popular é simples. E acabou sendo uma canção com a qual nos identificamos muito. Mesmo que o cara seja brasileiro, alemão, polonês, etc., o cara acaba carregando a cultura consigo. O John Flavin (guitarrista da Patrulha do Espaço de origem irlandesa) adquiriu muito da cultura brasileira. Ele tocou no Secos e Molhados. Nos anos 60, em São Paulo, muitos roqueiros acabaram se voltando para a música brasileira, estabelecendo uma relação com a música brasileira.

 

T – E como você encara isso particularmente?

 

R – Pra mim, é complicado porque eu sempre fui roqueiro. Mas eu sempre gostei de música brasileira. Peguei, por exemplo, a era dos grandes festivais, em que surgiu muita gente boa. Era uma fase rica da música brasileira, mas eu era roqueiro e adolescente. Beatles, Hendrix, Cream, etc. Mas ouvia as canções do Chico, do Caetano e do Gil, ainda que estes tenham enveredado um pouco pelo rock and roll, bem como Edu Lobo, Geraldo Vandré, Elis Regina... Mas você falou um negócio importante: que o rock and roll só aconteceria com a abertura política. Outra coisa que eu sempre achei é que com a abertura política rolou muita bobagem. O rock and roll só seria levado a sério quando houvesse canções com letras do nível das do Chico Buarque.

 

T – Eu quero retomar aquela questão da Patrulha como uma banda que afirma o aspecto roqueiro. Eu acredito que aquela letra de “Rolê da Estrada”, “não importa aonde eu estou indo eu sou mais rock and roll”, confirma o que eu penso. Pode falar a respeito?

 

R – Trata-se de uma canção de estrada. De “Rolê da estrada”, de 1978, para “Vou rolar”, de 2003, o espírito é o mesmo. A Patrulha é uma banda estradeira desde o começo. A diferença de 1978 para hoje é que em 1978 era complicado. Hoje o rock está bem difundido. É bem isso que você falou: a gente tem um pacto com o rock and roll.

 

T – E quanto aos lugares nos anos 70? Onde o rock rolava? Estou pensando em termos de dificuldades. A Patrulha é uma banda fundamental pelo aspecto independente. O que dificulta o trabalho com o rock nos anos 70?

 

R – Essa dificuldade é relativa, pois, como eu falei, houve um boom de rock nos anos 70. Mas, infelizmente, não se tem memória e não se fala no assunto no Brasil. Nos anos 70, havia um circuito em teatros. Os Mutantes faziam isso no final dos anos 60 e no começo dos anos 70. Outras bandas, como o Som Nosso, faziam o circuito que eu fazia com o Made in Brazil, que era o circuito dos salões e clubes. Então, todo final de semana se tocava duas ou três vezes pelo bairros. Esse era o único mercado de trabalho que havia. Mas as maiores dificuldades não eram a produção nem a mídia, que não havia. Apenas com cartazes a comunidade roqueira lotava os lugares. A maior dificuldade, portanto, foi o Estado. Na maioria dos shows paravam duas ou três viaturas na porta do lugar. Era uma coisa ruim. E certamente tinha gente infiltrada. Outra coisa que atrapalhava muito era a censura.

 

T – Os discos de rock passavam pelo mesmo processo da censura?

 

R – Sim. O sistema tinha mecanismos para gerenciar esse tipo de atividade independente. Hoje está mais difícil controlar. Ainda assim, se você fizer um trabalho independente dentro dos conformes legais, você ainda tem esse controle. Eles dizem que é para controlar os direitos autorais. Antes era mais para controlar o conteúdo político das letras. Veja bem, tem um tipo de política que não se pode colocar na letra. A atitude é uma coisa política, assim como o são os costumes. Nós éramos os inimigos. A gente não portava arma nem era de esquerda, mas a gente era cabeludo, usava roupas diferentes, inclusive as meninas. Era uma atitude contra o sistema estabelecido. Então, a maior dificuldade era o controle pelo Estado mesmo sobre a atividade do show business. Você tem que liberar os shows, tem censura, tem ECAD. Tinha toda uma máquina montada para dificultar o lance.

 

T – Em um programa da TV Cultura, transmitido no momento dos 40 anos do Golpe, você afirma, aparentemente a contragosto dos apresentadores, que hoje a juventude tem mais consciência que naqueles anos.

 

R – Sem dúvida alguma, ainda que pequena. O Brasil sempre foi elitizado e a rebeldia controlada. A juventude era muito careta. Política e culturalmente, os mais posicionados eram os estudantes, de onde sai a maioria dos quadros de luta armada, mas eles evidentemente viam o rock and roll como o bicho papão, como mais uma ferramenta de dominação norte-americana. Muita molecada hoje diz que queria ter vivido nos anos 70. Mas existe um lado dos anos 70 na América Latina que era um horror.

T – Você tocou em outros países...

Foto: Ana Fuccia

R – Eu saí do Brasil no final de 1969. Morei no México até 1973, onde toquei inicialmente com uma banda chamada La Parada Suprimida. Posteriormente, montei um trio chamado Tarântula (nome inspirado no livro de Bob Dylan) com o guitarrista norte-americano Alex Hunt e o baixista e vocalista mexicano Manolo. Substituí temporariamente o baterista Carlos Hauptvogel do grupo Three souls in my Mind, rebatizada como El Tri. Voltei ao Brasil em 1973, integrando o Made in Brazil entre 1974 e 1975. Em 1976, fui para os Estados Unidos comprar instrumentos e tocar numa banda chamada Elmo Flick. Em 1977, fui para a Argentina tocar no Aeroblues com Alejandro Medina e Pappo. Retornei um ano depois para o Brasil. Mas aqui as coisas nunca mudavam. Eu voltava e queria ir embora de novo. Aqui integrei a Patrulha do Espaço, que permanece na estrada ainda hoje, concorrendo com muitos trabalhos que exerci tocando e gravando com outros artistas e bandas. Ademais, produzi discos, montei um selo, fabriquei baterias, produzi workshops e eventos afins, bem como shows do André Christovam, Golpe de Estado, o Terço, e, ainda, David Byrne, entre outros.

Entrevista concedida em: 21 de abril de 2006.

Entrevista com Rolando Castello Junior
Tiago Hermano Breunig

Bacharel e licenciado em Letras-Português pela UFSC, mestrando em Teoria da Literatura pela mesma instituição e guitarrista da banda Eletrolíticos.

Foto: Ana Fuccia