A adequação do sistema capitalista à época da Terceira Revolução Industrial e da globalização da economia, somada à crise impulsionada pela desintegração da União Soviética (URSS), em 1991, e da própria Guerra Fria, esvaziou de conteúdo os paradigmas até então vigentes. A crise do socialismo constitui apenas parte do sistema capitalista, hegemônico ao longo dos últimos dois séculos. As conseqüências da política Neoliberal são drásticas, tanto no aumento desenfreado das desigualdades sociais como no alarmante recrudescimento da exclusão social de milhões de pessoas dos benefícios trazidos pela revolução científico-tecnológica, como apontam os dados apresentados por Paulo Vizentini: “(...) A concentração de renda atingiu níveis alarmantes: em 1992, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) 82,7% da renda mundial encontrava-se nas mãos dos 20% mais ricos, enquanto os 20% mais pobres detinham apenas 1,4% da renda; quatro anos depois, os 20% mais ricos haviam aumentado sua parcela para 85% da riqueza”.[ 2 ]
Anexas às idéias e hábitos progressistas como o avanço
tecnológico e a globalização da economia, generalizam-se
outras tendências como a multiplicação da exclusão
social, da violência, da xenofobia, das sombrias sinuosidades que
a crise de civilização está adquirindo em cada região
do planeta. As relações predatórias com os recursos
naturais e com o meio ambiente, que começaram a se tornar preocupações
a partir dos anos 80, se intensificaram durante os anos 90, com a atuação
política de ONGs, principalmente no protesto contra testes nucleares
realizados pelos países que detinham esse tipo de armamento como
EUA, Rússia, França, China entre outros. Vivemos as instabilidades,
mas também as potencialidades, que compõem o quadro da história
contemporânea.
A globalização foi disseminada com o término da Guerra
Fria, porém junto com ela, vieram tendências à regionalização
dos costumes e hábitos e à fragmentação das
identidades culturais dos sujeitos históricos. Tal como afirma Paulo
Fagundes Vizentini: “Na medida em que a competitividade tornou-se
a força motriz do capitalismo contemporâneo, a fluidez passou
a ser um elemento indispensável para atuação do capital
financeiro e das empresas transnacionais em escala mundial”. [ 3 ]
Da mesma forma, no âmbito das relações sociais, a flexibilidade
tornou-se também elemento indispensável, abrindo caminho para
uma nova articulação paradoxal e ambígua: de um lado
a multiplicidade de possibilidades, a pluralidade de estilos e de atitudes
e de outro, a homogeneização de costumes e hábitos
e a padronização do consumo em escala mundial, em especial
nos grandes centros urbanos.
Dentro deste contexto
histórico de globalização, os meios de comunicação
de massa têm agido como mediadores destas novas relações
sociais paradoxais e ambíguas. Essencialmente nas grandes metrópoles
do globo, o quadro das juventudes urbanas encontra-se segmentado em
“tribos”, que, segundo Michel Maffesoli, realizam uma
espécie de “ritualização da banalidade
cotidiana” através do “(...) mimetismo tribal e
na intensa circulação de informações,
próprias das redes de internautas; em resumo, nos novos meios
de comunicação de massa e na nova cultura que eles impulsionam”.
[ 4 ] |
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A globalização é seletiva, pois tem
como alvo certas atividades, segmentos sociais e regiões do planeta
a serem integradas através dos meios de comunicação
de massas, enquanto grandes massas são excluídas deste processo,
levadas a assistir tudo de forma apática e suscetível aos
novos paradigmas estabelecidos, à instauração de sucessivas
novas tendências efêmeras do mercado, à imposição
e à ditadura da informação. O cientista social inglês
Raymond Williams apresenta o conceito massa como sendo derivado
de três tendências sociais que concorreram para lhe conferir
sentido: a grande concentração de habitantes nos centros urbanos;
a massificação imposta pela produção e consumo
em larga escala; a massificação social e política.
[ 5 ]
Com respeito ao conceito de comunicação, o mesmo autor atenta
para o fato de que esta acontece em três momentos distintos e complementares:
transmissão, recepção e resposta. Porém, no
contexto da comunicação de massa, tal como encontrada na sociedade
contemporânea, evidencia-se uma preocupação com a demasiada
transmissão de informações, realizada, muitas vezes,
a partir de interesses de um determinado grupo majoritário de indivíduos
sobre uma grande massa, considerada pelos primeiros como anônima,
amorfa. O cuidado com a recepção e, principalmente, com a
resposta se torna quase evanescente, num processo de banalização
das próprias informações transmitidas. Portanto, como
argumenta Williams, o conceito de comunicação de massa apresenta
vários problemas como o da credulidade, o preconceito de grupo, a
vulgaridade de gosto e de hábitos, as idéias antagônicas
de democracia de massa e democracia de classe, além da ambigüidade
constatada na utilização do termo na experiência real.
[ 6 ]
As novas articulações paradoxais e ambíguas de homogeneização
e pluralidade de costumes e hábitos, de multiplicidade de possibilidades
e de padronização do consumo em escala mundial, caracterizaram
a diversidade cultural da década de 90. Porém, é relevante
comentar que os indivíduos nas sociedades contemporâneas possuem
nos seus hábitos uma relativa liberdade de optar por determinado
estilo cultural, que eles participam de forma desigual em diferentes “mundos”,
em que o habitante dos centros urbanos compartilha códigos e valores
que podem conter pouca coerência entre si, conduzindo respostas e
decisões muitas vezes contraditórias: (...) na sociedade capitalista
ocidental as relações de produção constituem
o principal foco de manifestação da produção
simbólica, mas isto não deve implicar em uma forma de reducionismo
que desconheça não só as mediações como
o fato de que outros focos existem e podem ser decisivos e determinantes
em várias situações e momentos da vida social. [ 7
]
Em artigo acerca da problemática que envolve o conceito de cultura,
Ciro F.Cardoso demonstra que, anteriormente ao surgimento da antropologia
como ciência, a noção de cultura aparece representando
um antagonismo entre as noções de cultura e civilização,
na busca pela construção de uma identidade nacional alemã.
No século XVIII, com a Revolução Industrial e o fortalecimento
da classe burguesa industrial nos reinos que formavam o que viria a se tornar
a nação alemã no fim do século XIX, esta classe
industrial procurava diferenciar-se dos hábitos da nobreza defendendo
a cultura nacional alemã em oposição à nobreza
que, no interior das cortes, falava o idioma francês e designava-se
civilização. Nesse contexto, surge o conceito de cultura em
oposição ao conceito de civilização, com o intuito
reforçar a idéia do nacionalismo alemão. [ 8 ] Nos
séculos XIX e XX, o conceito de cultura continua a reforçar
as ideologias nacionais, o Imperialismo e a hegemonia da visão de
mundo da sociedade ocidental. Dos contatos desta com as diversas sociedades
não ocidentais, surge a necessidade de entender estas sociedades
possibilitando o desenvolvimento de novas áreas da ciência
moderna, como a Sociologia, a Antropologia, a Etnologia, a Arqueologia.
A problemática do conceito de cultura, dentro destas novas ciências
sociais, mais especificamente a Antropologia, girou em torno de sua definição,
caracterizada por ser inclusiva e confusa: “Cultura, ou civilização...é
este todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte leis, moral,
costumes e quaisquer capacidade e hábitos adquiridos pelo homem,
enquanto membro da sociedade” (Tylor 1871:1). [ 9 ]
A própria Antropologia também surgiu dentro do contexto do
Imperialismo europeu do século XIX e acompanhou a destruição
de tantas sociedades consideradas primitivas aos olhos do progresso da Revolução
Industrial. Sociedades inteiras no continente africano, na Ásia e
nas Américas, foram subjugadas e exterminadas. Também durante
os anos 90, pudemos observar as conseqüências geradas por este
processo em países como Ruanda, Somália, África do
Sul, Iraque, Timor Leste, Colômbia, Venezuela, Brasil, etc. Em 1952,
Kroeber e Kluckhon transcreveram, classificaram e comentaram 164 definições
diferentes a respeito do par conceitual cultura/civilização,
chegando mesmo a mencionar o abandono do uso do termo e sua substituição
por sinônimos [10] ou utilizando cultura como adjetivação.
Um pouco mais tarde, surgem novas teorias, através de diálogos
da antropologia com a lingüística, com a história e outros
campos do conhecimento.
Interessante também é a definição de cultura
sugerida pela professora Maria Bernardete R. Flores, citando C.Geertz, em
seu livro sobre a Farra do Boi na Ilha de Santa Catarina. Segundo a autora,
C.Geertz propõe a definição de cultura “(...)
como um sistema de significados, atitudes e valores partilhados e as formas
simbólicas (apresentações, objetos artesanais) em que
eles são expressos ou encarnados (...)”. [11] Apesar destas
explanações sobre estes conceitos serem significativas, as
dificuldades em relação à sua utilização
persistem a nos rodear. O importante é estar atento ao fato de que
estas problemáticas existem e devem continuar a serem debatidas para
que nos iluminem no estudo das ciências sociais no contexto das sociedades
contemporâneas.
Como já foi dito, através das articulações entre
o processo de homogeneização, padronização e
massificação do consumo, dos costumes e práticas sociais,
com as identidades culturais regionais ou locais, surge uma multiplicidade
de estilos, onde códigos culturais encontram-se fragmentados nas
diversas possibilidades efêmeras do cotidiano. Um escorregamento da
moral à ética dentro das sociedades ocidentais contemporâneas
vem proporcionando às pessoas a construção de novos
paradigmas de comportamento e relacionamento, gerando outras soluções
para os diversos problemas do cotidiano. [12]
Apesar de alguns teóricos considerarem que a origem do processo de
Globalização está na “modernidade”
- com os Estados-nação, as Grandes Navegações
marítimas, a Reforma Religiosa, o Renascimento Cultural e o surgimento
do Capitalismo - geralmente se concorda que desde a década de 1970
o alcance e o ritmo da integração global, os fluxos e as articulações
entre as nações aceleraram enormemente. Agora sentimos em
nosso dia-a-dia um fenômeno de “compressão espaço-tempo”,
onde um enorme espaço pode ser percorrido num piscar de olhos por
aviões a jato, por satélites. Atualmente observamos uma articulação
entre o “Global” e o “Local”, entre o “Ocidente”
e o “Resto”, num movimento de fragmentação das
identidades e códigos culturais. O processo de homogeneização,
padronização e massificação dos padrões
de valores morais e de consumo próprios da sociedade ocidental contemporânea
dialoga intensamente com uma tendência de fascinação
pelas diferenças, pela mercantilização da etnia e da
alteridade, pela multiplicidade de estilos, pela ênfase no efêmero,
no flutuante e no impermanente, no pluralismo cultural e na complexidade
das coisas. [13]
O cenário da música popular urbana nos anos 90 no Brasil
Luiz Tatit, no capítulo O Desenlace: O Leque das Dicções,
[14] atenta para a diversidade da música brasileira dos anos 90,
caracterizada por uma pluralidade de estilos e dicções. Segundo
o autor, o Tropicalismo - enquanto movimento cultural, iniciado no fim dos
anos 60, que procurava articular as manifestações da cultura
brasileira com tendências internacionais da arte, comunicação
e da filosofia como o rock, os meios de comunicação
de massa, o orientalismo, o existencialismo – deu a abertura que a
MPB precisava para a mundialização da cultura brasileira.
A diversidade das dicções passava então pelo sertanejo,
axé, pagode, MPB, rap, reggae e rock nacional.
Nesta articulação entre a identidade global e a identidade
regional, a música popular brasileira, através de uma roupagem
tropicalista, é transformada em produto pela indústria fonográfica
transnacional, recebe um rótulo de world music, [15] para
ser consumida no mercado global.
Em meio a este contexto de diversidade de estilos dos anos 90, o conceito
representado pela sigla MPB acaba tornando-se por demais elástico
e inclusivo, o que levou a um debate sobre as suas significâncias.
Como nos aponta Carlos Sandroni, podemos inferir que a história do
conceito de música popular brasileira, no contexto histórico
do Brasil República, apresenta-se, muitas vezes, de forma ambígua,
paradoxal e paradigmática. Pode conferir sentido à música
urbana, comercial, encontrada em discos, nas rádios e na televisão;
pode referir-se a uma concepção político-ideológica
de “povo brasileiro”, comum essencialmente após o surgimento
da bossa nova e do tropicalismo; ora nos remete à idéia de
uma música urbana e midiática em oposição aos
conceitos de música folclórica ou música erudita; podemos
entender como uma categoria comercial de produto, própria para definir
um estilo musical dentro da atual segmentação do mercado musical
brasileiro. [16]
Dois motivos, porém, efetivamente contribuíram para conferir
esta forte articulação da música popular brasileira
urbana com as tendências da globalização: a musicalidade
do povo brasileiro, aberta a todas as linguagens pelo tropicalismo e a característica
do músico popular urbano pesquisador instituída no Brasil,
na década de 60 pela bossa nova. A escolha dos temas a serem abordados
nas letras e também nas soluções estéticas para
as melodias que ressaltassem as identidades culturais de uma determinada
região tornou-se uma pragmática comum entre os diversos artistas
e bandas do país desde a década de 60. Este tipo de postura
do músico urbano, popular e erudito, foi uma prática também
em outros momentos do século XX, o que acabou resultando em grandes
mudanças nas técnicas composicionais, nas formas de execução,
na relação com o público e com os meios de comunicação.
O maestro Júlio Medaglia em entrevista concedida ao programa “Fora
de Pauta” da rádio Roquete Pinto do Rio de Janeiro em 1978,
insiste na importância da pesquisa no âmbito da música
popular urbana:
(...) “Waldir Azevedo é universal – qualquer botequim de Cingapura toca “Delicado” – e se o músico popular brasileiro urbano atual fosse profissional, estudasse música, se informasse corretamente, ele também seria. Não há termos de comparação entre essas danças pops internacionais fabricadas e coreografadas artificialmente, de época, de moda, com o frevo, o samba, o baião ou o forró. Se estas excitantes formas de música urbana recebessem um tratamento moderno, com os equipamentos usados pelo pessoal do rock – que já não sabe mais o que fazer com ele – mandaríamos na música do mundo. Nenhum outro país possui tanta matéria-prima à espera de industrialização como o nosso. Aliás, se houvesse essa profissionalidade e um mínimo de consciência cultural em nossos músicos urbanos populares, pela proximidade e uma inegável afinidade existente, ele é que seria o canal de desenvolvimento e sobrevivência de nossa música folclórica, rural. Uma geração de músicos “alfabetizados” como a de Pixinguinha, Nazaré, Tia Amália, Chiquinha, Dilermando, Jacó, Benedito Lacerda, Altamiro, Abel Ferreira, Chiquinho do Acordeão, artistas populares de elevado gabarito técnico, já não existe mais. Pela falta de competentes e sensíveis artistas-técnicos como estes, em condições de realizar uma efetiva prospecção e industrialização de nossa rica matéria-prima que a tornaria resistente e universal(...)”. [17]
Entre as décadas de 50 e 60, surge no Brasil a bossa nova. Uma forma
de música popular urbana calcada na rica sensibilidade auditiva da
população deste país. A palavra “bossa”
pode ser entendida como “jeito”, “habilidade”, “vocação”
e “aptidão”. Partindo desta constatação,
a expressão bossa nova, antes de tudo, tem um significado próximo
de nova habilidade musical, novo jeito de tocar, cantar e de se relacionar
com as artes. O músico e compositor Noel Rosa e os músicos
que faziam parte do estilo Cool Jazz foram as principais influências
do estilo bossa nova. Estudando os textos de Júlio Medaglia
e Augusto de Campos, [18] percebemos que dentre as principais inovações
propostas pela bossa nova, podemos observar um diálogo entre a letra
e a harmonia da música, feita de forma direta e evidente em canções
como "Desafinado" e "Samba de uma nota
só". As músicas de Jobim e Newton Mendonça apresentam
intervalos melódicos complicados, cheios saltos e modulações.
Ao mesmo tempo, suas letras vão claramente descrevendo as características
deste novo estilo e habilidade.
Na bossa nova a figura do cantor não apresenta demagogia pessoal
nem virtuosismos vocais. Ao contrário, o cantor apresenta-se de forma
sutil, com discrição e rigor, ou melhor, a negação
do cantor, da estrela vocal e de todas as suas variantes. Também
há uma modificação na estrutura de execução,
da linguagem e da simbologia do violão. A pesquisa musical de novos
acordes, escalas e novas batidas percussivas torna-se uma pragmática
entre os músicos que seguem esta tendência. Dentro de mercado
musical brasileiro, torna-se evidente também a valorização
de toda a equipe de produção, passando pela gravação,
pelos músicos, o surgimento da “Ficha Técnica”
dos discos e a própria apresentação gráfica
das capas dos discos e nas nomenclaturas dos discos e músicas.
Assim como na música popular brasileira o tropicalismo e a bossa
nova representaram uma ruptura com o padrão, instituído até
a década de 50, do samba-canção, o movimento modernista
na música erudita européia, no início do século
XX, também conduziu grandes mudanças que causaram um impacto
na estética musical em toda música ocidental. Gênios
como Claude Debussy, Igor Stravinsky, Arnold Schönberg, entre outros,
criaram novas concepções e técnicas composicionais.
Entre as principais inovações propostas por esses compositores
estava o silêncio como elemento estrutural da composição,
a pesquisa sobre materiais folclóricos, experimentações
rítmicas e colorísticas, a cacofonia politonal/atonal, superposição
extremamente densa de complicadas estruturas rítmicas, a diluição
da tonalidade, o dodecafonismo. Fazia parte da práxis musical deles
a intensa pesquisa sobre temas da natureza, da música oriental, do
folclore, rituais tribais e história de seus respectivos países.
[19]
A música popular
urbana norte-americana, o Blues e o Jazz e de todas
as suas variações estilísticas como hot,
swing, jive, cool, ragtime, blues, bop, entre outros, também
gerou novas formas de compreender a música popular urbana e
influenciou muitos estilos de música popular e erudita. Aqui
o elemento musical africano, assim como na música popular brasileira
e cubana, torna-se estrutural, tanto nos ritmos percussivos como na
forma de compor e executar as músicas. Aparecem novos tipos
de instrumentos musicais como a bateria, a guitarra elétrica,
o contrabaixo elétrico, os teclados eletrônicos, os sintetizadores
de sons, entre tantos outros. A partir da década de 50, o rock
entra em cena iniciando uma nova fase na música comercial.
Entre as principais inovações propostas pelos músicos
do rock encontramos a tecnológica, o conceito de conjunto
ou banda, a atitude e a postura de palco dos músicos, o ritmo
insistente e palpitante, as experimentações estilísticas
e estéticas, sua relação intrínseca com
os movimentos juvenis urbanos e a articulação intensa
e ambígua com a indústria da comunicação
de massa. [20] |
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Dentre os principais músicos e bandas destacamos Jimi Hendrix, que
alterou os padrões de execução da guitarra elétrica,
introduzindo um estilo sem código preciso de interpretação,
tocando com todo o corpo do instrumento - barra de trêmulo, pedal
de wha-wha, volume e microfonia, trastejadas, escalas dodecafônicas.
Ainda na música popular urbana podemos citar o músico argentino
Astor Piazzolla - que fez uma complexa releitura do tango, da milonga e
outros ritmos da Argentina, construindo um estilo inteiramente novo com
muitas influências do jazz, e do progressivo, introduzindo
novos instrumentos no tango como a guitarra elétrica, a bateria e
criando soluções musicais muito interessantes. [21]
Ao investigarmos a música popular urbana brasileira dos anos 90,
temos que tomar como ponto fundamental a articulação intensa
que os músicos realizaram com diversos estilos e linguagens musicais,
que se consolidaram durante o século XX. No âmbito das décadas
de 70 e 80, surgiram outros estilos de música popular urbana e jovem
como o heavy-metal, o rock progressivo, o pop-rock,
o rap, o reagge e o funk. Deste movimento, nos
Estados Unidos, aparece uma série de bandas que procuravam fazer
uma música com influências de todos estes estilos musicais
citados, seguindo a crescente segmentação do mercado fonográfico
destas mesmas décadas. No Brasil os artistas e as bandas deste período
começaram a misturar em suas composições estes estilos
musicais internacionais com diversos ritmos brasileiros e regionais como
o maracatu, a capoeira, o choro, o samba, entre outros, além das
influências da música eletrônica como o house
e o drum & bass.
Sem dúvida, vários são os exemplos das influências
da história da música popular urbana do século XX no
quadro de diversidade que compõe a música popular urbana dos
anos 90 no Brasil. Artistas como Lenine, Zeca Balero, Chico César,
Paulinho Moska, faziam uma música popular brasileira com um olhar
aberto a todas as tendências regionais e globais. No rock
nacional, um movimento de destaque deste fenômeno de pesquisa musical
no Brasil, durante a década de 90, foi a cena Mangue Beat em Recife.
Este movimento iniciou uma nova fase da relação do rock
nacional com os ritmos regionais do estado de Pernambuco, com predominância
do maracatu. Também incentivou a construção e o desenvolvimento
profissional de outras cenas regionais no país. Músicos, bandas,
selos e festivais independentes ou não, passaram a pesquisar mais
intensamente uma mescla de elementos musicais e aspectos das identidades
culturais locais, com as influências da música pop reproduzida
através dos meios de comunicação de massa. Estas estratégias,
utilizadas por diversas bandas e artistas, das cinco regiões do Brasil,
conduziram ao aparecimento de bandas como Chico Science & Nação
Zumbi e Raimundos, O Rappa, Planet Hemp, Sepultura, Mamonas Assassinas,
Racionais MCs, entre outras que assumiram um estilo de música
brasileira calcado na primazia de misturar ritmos regionais com elementos
do pop-rock, do rap, do reagge, do rock,
do jazz, enfim a influência da musica industrial norte-americana
que habita os meios de comunicação de massa no Brasil.
Estas articulações que aconteceram, durante o século
XX, na música popular urbana brasileira, sem dúvida são
essenciais para tentarmos compreender a diversidade de dicções
a que se refere Luiz Tatit. Porém, para que possamos apreender este
fenômeno em toda sua complexidade, será preciso unir um olhar
que preze pela contextualização política, socioeconômica
e cultural dos anos 90, com duas tendências que tomaram uma real intensidade
nesta década: a intensificação da revolução
científico-tecnológica, focando a indústria cultural,
em especial as tecnologias aplicadas no campo da música popular urbana,
e os principais acontecimentos no setor da indústria fonográfica
e as articulações desta com o crescimento da atitude independente
no mercado musical brasileiro, a partir da década de 80.
A indústria fonográfica e a atitude independente no Brasil da década de 90
Como assinala Márcia Tosta Dias, ao mesmo tempo em que as grandes
gravadoras, também conhecidas pela nomenclatura de majors,
estabelecem a pop-music como a música produzida dentro da
própria indústria fonográfica, de massa, pronta para
o consumo em larga escala, e a segmentação e a diversidade
do mercado musical brasileiro (sertanejo, pagode, axé, rock,
reggae, e rap nacional, etc.), surge o artista produtor, não
mais um funcionário da indústria fonográfica, mas sim
um prestador de serviços, que trabalha independente, ganhando por
serviço prestado, muitas vezes contratado exclusivamente para trabalhar
com um determinado número de bandas ou artistas. Trata-se de um novo
perfil de profissional, mais interado no desenvolvimento das técnicas
de gravação e produção: “(...) o maior
imbricamento entre as formações de músico e técnico
proposto pelo digital, acaba permitindo que o mesmo profissional realize,
simultaneamente, as funções de técnico de gravação,
executante, regente e produtor. No entanto, tal substituição
é gradativa, limitando-se à esfera do trabalho nos estúdios”.
[22]
A própria indústria fonográfica passa por mudanças
estruturais durante a década de 90. A terceirização
de serviços ou de etapas inteiras do processo de produção
dos discos, como os estágios de produção musical, estúdios,
fábrica e distribuição física do produto, passaram
a constituir práticas efetivas das majors, que acabavam
ficando muitas vezes somente com as partes da direção artística,
as gerências de marketing, vendas e de administração
e finanças. Como aconteceu em vários setores da indústria,
os quadros de funcionários foram paulatinamente enxugados, sendo
transformados em serviços terceirizados fornecidos por profissionais
altamente especializados e autônomos, restando nas grandes empresas
e grupos empresariais apenas os cargos essenciais para o seu funcionamento.
Este novo perfil de profissional impulsionou o crescimento, em escala mundial,
dos cenários de bandas, artistas, produtores, festivais e selos independentes
das majors, ou, pelo menos, se não independente de forma
total, que caminham de maneira paralela, servindo muitas vezes como laboratório
de novos artistas para as majors. Isto é a constatação
do movimento que estes profissionais vêm fazendo a partir da década
de 90, buscando um maior espaço dentro das novas condições
do mercado fonográfico e reconhecimento deste mesmo mercado; é
a garantia de que a expressão cultural regional vem abrindo um precioso
espaço em meio ao mercado estabelecido das majors; é
a evidência de que as supostas massas são constituídas
por seres pensantes e antenados que geram, degeneram e regeneram a cultura
e, principalmente, que o fenômeno da comunicação não
acontece apenas na etapa da transmissão das informações,
mas nas etapas de recepção e resposta àquelas informações.
O recrudescimento das cenas independentes em praticamente todos os estados
brasileiros, durante a década de 1990, também é um
fato notório. Segundo Dias, a avaliação do conceito
de independente padece de critérios, porém, “(...) de
maneira geral são consideradas independentes todas as iniciativas
de produção, gravação e difusão que acontecem
fora do circuito das grandes (...)” [23] empresas que compõem
a indústria cultural. Desde que existem as majors, existem
também as indies ou independentes. As gravações
independentes de música popular urbana no Brasil já são
realizadas há bastante tempo como nas décadas de 60 e 70.
Durante os anos 80, a atitude independente ou autônoma dos artistas
pertencentes à chamada Vanguarda Paulistana – Itamar Assumpção,
Arrigo Barnabé, Premeditando o Breque, Grupo Rumo,
Banda Sabor de Veneno, Língua de Trapo –
foi bem significativa para o contexto da produção independente
no Brasil e de produzir os discos “às próprias custas”,
parafraseando o título do segundo disco de Itamar Assumpção.
Porém, somente nos anos 90 é que esta prática pôde
de certa forma ser sistematizada, articulando uma relação
de complementaridade com as grandes empresas do setor, criando possibilidades
de acesso de novos artistas e bandas às condições de
produção e difusão.
A complementaridade pode, então, ser vista das seguintes perspectivas: a indie, ao absorver parte do excedente da produção musical não capitalizada pelas majors, além de permitir a diminuição da tensão no panorama cultural, derivada da busca de oportunidades, acaba por testar produtos, mesmo que num espaço restrito, permitindo à major realizar escolhas mais seguras no momento em que decide investir em novos nomes. [24]
Como aponta Dias, a relação entre os selos independentes
e as majors vem a ser uma relação de complementaridade,
onde os primeiros se apresentam como “laboratórios” de
novas bandas e artistas para as segundas. O que podemos observar durante
a década de 90 é um crescimento do número de produtores,
artistas, festivais e selos atuando no cenário independente, e um
aperfeiçoamento da relação entre indies e
majors. Festivais como o “Bananada” em Goiás,
“Abril Pró-Rock” em Recife, “Curitiba Pop Festival”
na capital paranaense, aos poucos vão construindo um espaço
sólido para o desenvolvimento de novos artistas, produtores e selos
independentes.
Através destes festivais, dos selos independentes, e dos selos lançados
no mercado pelas majors, destinados a atender à segmentação
e à diversidade do mercado de música popular urbana dos anos
90 no Brasil, parece ter havido uma maior articulação entre
os mercados musicais regionais e os grandes centros urbanos como Rio de
Janeiro e São Paulo. Dias evidencia duas marcantes e diferentes trajetórias
de selos independentes no Brasil: o selo Baratos Afins, de Luís
Carlos Calanca, e o selo Tinitus, de Pena Schmidt. Segundo a autora,
o primeiro (...) como lojista, tem uma postura crítica perante o
mercado e faz dessa postura a sua estratégia de trabalho (...). [25]
Por este motivo, a atitude dele não se caracteriza exatamente como
independente, mas como postura alternativa dentro do mercado. Seu comércio
localizado na Galeria nº62, da Rua 24 de Maio, popularmente conhecida
como Galeria do Rock, no centro São Paulo - galeria que reúne
em seu interior uma série de lojas especializadas em produtos ligados
à música urbana jovem do rock, hip-hop,
rap e funk como CDs, LPs raros, roupas, acessórios,
tatuagens e piercings, etc. – inaugurou o selo Baratos
Afins em 1982 e até hoje continua atuando no mercado alternativo,
produzindo novos artistas. Para ele, o termo independente não é
apropriado, pois o alternativo continua dependendo das majors ou
de terceiros em várias etapas da produção como fábricas,
estúdios e gráficas. Já no caso do segundo exemplo,
o selo Tinitus, a relação estabelecida com as majors
é exatamente aquela de complementaridade, criando oportunidades de
novos artistas serem inseridos aos poucos no mercado nacional de música
popular urbana.
A popularização do CD constitui outra importante mudança,
de ordem técnica, que ocorreu no mercado musical durante os anos
90. Possuindo uma qualidade de gravação e reprodução
superior aos antigos formatos LP (long-play) e K-7 (cassetes),
o CD (compact-disc) representou uma passagem para outra era na
distribuição e consumo de música, e muda o panorama
do mercado fonográfico mundial a partir de sua comercialização
nos países desenvolvidos em 1983. Como a indústria fonográfica
enfrentou uma crise no final da década de 80, a solução
encontrada para revitalização do mercado musical, foi o lançamento
em CD, a partir de 1993 no Brasil, de coletâneas de artistas consagrados
no mercado musical brasileiro, bem como relançamentos neste novo
formato de discografias que o consumidor possuía apenas em LP, como
aponta Dias.
Esta foi a maneira como o CD foi consolidado no mercado brasileiro. Sua
prensagem mais barata e a redução nos custos com a parte gráfica
dos discos em comparação às dimensões do formato
LP, também são aspectos importantes a serem destacados na
busca da indústria fonográfica por soluções
para conter a crise econômica. Mudanças de natureza estética
do produto como a capacidade de espaço para comportar as gravações
(o CD comporta até 70 minutos de gravação, o dobro
do espaço do LP), o salto qualitativo nas gravações
de estúdio e a inserção no produto final das bandas
de composições e experimentações dos músicos
em estúdio completam o quadro geral das alterações
estruturais proporcionadas pelo processo de popularização
do CD. [26]
A instituição e a popularização da linguagem
áudio-visual dos vídeo-clipes no mercado musical, impulsionada
pela MTV, a partir de 1981 nos Estados Unidos e 1990 no Brasil, propuseram
aos artistas, bandas, produtores musicais, selos independentes e gravadoras
uma nova articulação e integração dos meios
de comunicação de massa com várias formas de expressões
artísticas como: a comunicação visual, a música,
as artes plásticas, as linguagens corporais, a moda, o teatro, o
cinema e a televisão, com a estética, com a performance. A
atuação da MTV no mercado musical dos anos 90 articulou com
a juventude urbana do período uma gama de possibilidades de arquétipos,
estilos, estéticas, que deixou este jovem mais informado sobre as
tendências estilísticas da música, da moda, da publicidade,
de um formato diferente de relacionar várias mídias através
da TV. Um exemplo destas novas possibilidades tem sido muito explorado desde
a década de 70 por artistas como Laurie Anderson, norte-americana
que atua em vários campos da arte, linguagens e mídia. [27]
Utilizando recursos das artes plásticas, artes cênicas, músicas
e diversos tipos de mídias, lugares, situações e temas,
Laurie Anderson produz um diálogo inédito e curioso com o
circuito dominante da arte. Este perfil de artista, que transita por vários
campos do conhecimento, da comunicação e das tecnologias,
que procuram inventar novas maneiras de sentir, de viver e de comunicar
mais de acordo com o contexto atual começa a ficar mais comum durante
a década de 90.
No interior das majors, cada vez mais acontecia uma ampliação
e a consolidação da segmentação de estilos dentro
do mercado nacional – sertanejo, lambada, pagode, rock e
música pop. Dias comenta sobre o artista de marketing, ou
seja, um artista elaborado e produzido, ele, o seu produto e todo o esquema
promocional que os envolve, a um custo relativamente baixo, com o objetivo
de fazer sucesso, vender milhares de cópias, mesmo que por um tempo
reduzido. Instituído durante os anos 80, isto continua a ser emblemático
da produção de mercadorias musicais durante a década
de 90.
Os anos 90 foram marcados pela forte hegemonia do sistema capitalista, pela
revolução científico-tecnológica aplicada à
produção, pela homogeneização, padronização
e massificação do consumismo, pelo aumento da exclusão
social, da concentração de renda nas mãos de poucos,
da generalização da pobreza e da violência social, e
também pela desintegração das grandes ideologias que
marcaram o pano de fundo de dolorosos conflitos políticos e guerras
do século XX. Dentro das indústrias do setor fonográfico,
e da economia em geral, a redução de empregos formais conduziu
à busca de novas oportunidades de inserção no mercado
de trabalho, construindo sentidos nem sempre precisos, abrindo espaço
para a consolidação do mercado de música popular urbana
independente e/ou alternativo.
As revoluções
de valores e costumes da década de 60, impulsionadas contra
a moral da sociedade de consumo do pós II Guerra Mundial, alcançaram
a década de 90 de certa forma banalizada pelas garras do capitalismo.
O consumismo parecia conseguir transformar a mais profunda ideologia
política num mero objeto do consumo, um souvenir.
Os jovens urbanos, ao realizarem uma reflexão acerca de toda
esta banalidade do seu cotidiano e dos valores morais fragmentados,
produziram novos sentidos, uma nova ética relacionada às
diferentes situações e pontos de vista, elaborando conjuntos
de significados diferentes, em cada uma das tribos urbanas de jovens,
promovendo variadas possibilidades de ações. A relação
da MTV com o consumo de músicas, de idéias, de tendências,
de estilos de moda, possibilitou a instituição do formato
do vídeo-clipe como um produto musical mais completo, dentro
de mercado musical popular urbano brasileiro, onde além da
música, dos arranjos, harmonias e poesias, podemos consumir
também imagens, formas de ser, de sentir, de pensar. Estes
são alguns aspectos da complexidade que envolve o estudo das
sociedades contemporâneas. |
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REFERÊNCIAS
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