Percebe-se uma influência do Mangue beat em Florianópolis: há dois blocos de maracatu, tem a banda Lamaçau que faz um tributo a Chico Science & Nação Zumbi, além de uma espécie de aglutinação que foi denominada de Mané beat, sem contar a questão geográfica, pelo fato do mar, das praias, e dos manguezais. Quais as relações entre Recife e Florianópolis?
Zero Quatro: Hoje andando pelo centro vi uma loja vendendo material do Avaí e tinha lá o logotipo “O Leão da Ilha” e é incrível que é o slogan do meu time que é o Sport. Recife, na verdade, é uma cidade estuário formada por várias pequenas ilhas e tal, que hoje em dia, você quase não percebe por causa das pontes e os aterros; então tem o local do estádio do Sport que se chama a Ilha do Retiro; então lá também é o Leão da Ilha. Esta questão geográfica, eu acho, desde Josué de Castro, com Homens e Caranguejos, eu acho que esta questão geográfica é um troço que acaba, de certa forma, interferindo no caráter, no temperamento. Estava outro dia refletindo sobre isso: tomar um café numa padaria de São Paulo é completamente diferente de tomar um café em uma padaria de Ipanema, porque o mar, cara, o mar, eu tava lembrando, da presença mesmo, quando você não tá vendo assim, olhando pra ele, não sei se por causa das ondas, por causa da brisa, maresia e tal, eu fiz uma analogia também; uma vez eu vi uma entrevista com Nagisa Oshima, cineasta japonês, em que ele disse que pra filmar aquele filme Furyo, ele, tem uma cena que passa em um campo de prisioneiros que ele construiu um imenso muro ao redor do set de filmagem e este muro não aparece em cena nenhuma do filme, e ele gastou maior grana de produção pra construir esse muro, e aí perguntaram pra ele, mas o muro é uma presença forte mesmo sem ser visto, existe um reflexo pelo fato de você estar encarcerado. O mar também é uma presença forte, por mais que você esteja ali em uma esquina, mesmo que você não esteja vendo diretamente o mar, você vai ver que o jeito de o cara lhe atender, o jeito de o cara lhe dar o troco, o cara tem um outro ritmo, o cara de São Paulo é totalmente diferente, e a coisa da ilha tem isso, cara, já provoca uma certa afinidade. Eu acho se você tá aqui, se você tem áreas de mangue também, você tem áreas de estuários, aí você tem um movimento de uma galera falando de mangue, de manguezais, rios, pontes e tal, eu acho que, de forma completamente leiga, minha intuição diz que tem um fator geográfico e que pesa nisso aí. Ontem eu tava conversando com uma produtora daqui que falava de uma certa dificuldade que tem aqui também de produção, de captar recurso federal, conseguir fazer os eventos e tal. A cidade é pequena e tem um apelo turístico muito forte, a geografia é especial, mas que culturalmente é muito complicado fazer as coisas aqui. Então talvez isso tenha criado, tenha motivado o fato dessa admiração por uma cidade como Recife que tem tanta cultura; deve ter outros fatores que só quem mora aqui e quem faz música aqui talvez possa responder melhor. Tem outra coisa também que um amigo tava me falando que a gente tem uma relação legal com o pessoal do surf. Primeiro de um grande brother nosso, o Pepe César, que era surfista e depois passou a ser produtor de vídeo; fez muitos vídeos sobre surf e é quase amigo de infância meu de Candeias, e o primeiro vídeo dele, que teve uma repercussão poderosa nas revistas de surf, é um vídeo que a trilha toda que tocou muita coisa de rock alternativo, tem muita coisa de Mundo Livre. Desde então a gente fica sabendo de que se cultua um lance dos surfistas com a gente e tal, e recentemente, eu soube que a gente ta sempre na parada dos discos de surfistas, eles sempre colocam Mundo Livre e tal, acho que isso tem favorecido essa relação legal com a ilha aqui.
Luciano Azambuja: Um grupo de amigos que
vira um núcleo de idéias pop, que por sua vez, acaba por gerar
um conceito, uma cena e um movimento. O Mangue beat está completando
quinze anos; claro que esses conceitos vão mudando o seu significado
com o passar do tempo. Na tua visão, o que representa o Mangue beat
hoje em Recife, no Brasil e até no exterior.
Zero Quatro: Às vezes eu fico surpreso... Recentemente
a gente participou de algumas homenagens em torno dos dez anos do manifesto,
depois dos dez anos do primeiro disco, e era muito louco porque você
tem os movimentos musicais como a bossa nova, o tropicalismo que geralmente
duraram três, quatro anos, no máximo cinco anos e tal, pelo menos
o foco que centraliza o interesse, uma coisa que costuma ser efêmero.
Eu acho que, não se deve ao fato de a gente estar tão distante
dos meios de produção da indústria do entretenimento.
Eu suponho que tem a ver com um certo desafio que representa a cena do mangue.
Eu fiquei surpreso, que dez anos depois, a quantidade de entrevistas que eu
dei que parecia que a gente tinha lançado o manifesto há uma
semana; o interesse permanecia quase tão alto quanto há dez
anos, a curiosidade e tal. Eu acho que isso se deve um pouco ao fato de que
tem um certo enigma, uma certa charada, que a gente meio que lançou
com essa história da diversidade em uma cena que é musical,
mas que não é musical, porque não tem uma música
definida, não tem uma batida definida, então para o circuito
da crítica, de análise dos veículos especializados, é
um troço que até hoje não foi bem resolvido, solucionado
enquanto charada, enquanto enigma, e, por talvez isto, tenha mantido por tanto
tempo esse interesse todo, desse conceito de mangue. Eu acho que a gente foi
a primeira cena que se assumiu como cena, não movimento, não
batida, mas uma cena. Ela tinha uma imagem-símbolo que teve um poder
epidêmico essa imagem. As imagens quando conseguem ser sintéticas,
aí eu assim me refiro a Stanley Kubrick, e várias imagens desse
tipo que ele conseguiu conceber e tal, me lembro sempre da seqüência
final do Doutor Fantástico, de um cowboy em cima de uma bomba atômica
e várias outras imagens. E a gente tinha lá esse negócio
da parabólica na lama, tanto é que depois, com a eleição,
cinco anos atrás, da primeira prefeitura do PT lá, o secretário
de cultura que foi escolhido me convidou e o Renato L. também, para
compor o conselho de cultura da cidade e ele disse que o que sempre cativou
desde o início da cena mangue, que ele ficou mais encantado foi com
a história da parabólica na lama. Então a gente tinha,
nem era local nem contrário a alguma coisa que vinha sendo hegemônica
na cena cultural do Recife, que era a coisa do Armorial, de um certo purismo
da tradição local, deu uma certa aura de crítica, a gente
tinha uma ligação com a raiz, com uma coisa fincada na lama,
mas tem o lance da parabólica que talvez tenha aquela coisa de, tanto
mais local mais universal, mais fincado na raiz, você consegue ser único
e universal. Então foi meio essa concepção assim, eu
acho que isso se refletiu, sei lá, reverberou uma imagem bem positiva
em vários pontos do Brasil. Até hoje nos vêem, a gente
serviu para um monte de coisa nova que surgiu e até de estímulo
pra coisas também que foram surgindo meio paralelamente.
Luciano Azambuja: O Mundo Livre s/a está
completando em 2006, 22 anos de carreira, de trajetória, de estrada.
Voltando em 1984 queria que você falasse um pouco sobre a origem e o
significado do nome da banda .
Zero Quatro: Nunca é tão claro trazer de volta
algo que foi concebido há 22 anos atrás... bom! Oitenta e quatro
era o auge da Guerra Fria; uma coisa que se tinha como referência era
aquele humor bem sarcástico do Mel Brooks, naquela série Agente
86, que era em torno dessa coisa da Guerra Fria e tal, e que de vez em quando
tinha uma certa apologia irônica em torno do Mundo Livre, “Nós
temos que defender o mundo livre não sei o quê.”,
sempre de uma forma meio irônica. E a partir daí, essa expressão
começou a gerar um certo interesse e depois comecei a colecionar discursos
de presidentes americanos onde, vez por outra, aparecia essa expressão
do Mundo Livre e aí, quando a gente resolveu superar uma fase,
virar a página do lance do punk, que tinha passado um tempo
militando mesmo no punk, a gente, por diversos fatores, desencantou
daquilo ali, aí o primeiro impulso foi montar uma outra banda. Aí
então o Mundo Livre era o que mais... o próprio punk
tinha essa coisa da Guerra Fria, tinha vários festivais punk
lá, no começo era não sei lá o que nuclear, porque
o Reagan devia estar morrendo de medo desse festival punk aqui...
Eu acho que Mundo Livre é muito engraçado porque tem
um pé no punk, desse negócio do discurso anárquico
e anti-imperialista, do punk, pelo menos do punk do hemisfério
sul, mas tem essa coisa do s/a, que é uma coisa meio cínica,
meio pós-punk, uma coisa assim meio pós-utópica.
Eu tinha listas e listas de nomes possíveis pra colocar em banda naquele
momento, então consultei algumas figuras, amigos que eu confiava, aí
o nome que pareceu irresistível na época; mas tem a ver com
isso, tem a ver com Guerra Fria, tem a ver com punk, tem a ver com
dadaísmo também, o s/a tem a ver com isso... Uma das
coisas mais brilhantes do dadaísmo que é aquele ferro de engomar
roupa que é cheio de prego, o s/a é um pouco isso aí,
Mundo Livre s/a. É engraçado que, nos primeiros
dez anos, eu nem considero que a banda tem 22 anos de carreira, porque até
93, não era uma carreira profissional, era uma forma de sobreviver
ao inferno que era Recife, um ambiente completamente conservador. E a gente
tinha a banda e eu tinha um emprego, o Tony tinha o emprego dele, e a gente
tinha a banda; só tocava as nossas músicas mesmo. Muitas delas
se perderam porque não tivemos condições de gravar, e
o mais louco é que era uma banda de garagem sem garagem; não
tinha nem onde ensaiar, dependia de alguém achar um sótão
ou um quintal da casa de não sei quem, pra poder juntar as coisas,
assim tudo artesanal, pra ensaiar... Daí passou os quase primeiros
dez anos como uma coisa bem amadora, de diletantes quase. Quando a gente foi
assinar o contrato com a Banguela para gravar o primeiro disco, aí
já tinha caído o muro americano (sic) o muro de Berlim, já
tinha meio que um ambiente sócio-político diferente e tal, era
outro o estágio da Guerra Fria, digamos assim. Eu cheguei a me perguntar
se valeria a pena mudar o nome, já que a banda não seria mais
aquela coisa diletante de garagem e a época era outra. Aí “Tá
louco!”, principalmente os velhos fãs do Mundo Livre,
a meia dúzia da legião Mundo Livre que tinha lá
em Recife, “Tá louco!”, acabou ficando, mesmo já
não tendo a ver mais conexão com a realidade geopolítica,
mas acho que até hoje é um nome que eu não consegui me
desprender totalmente.
Luciano Azambuja: E o nome Zero Quatro...
Zero Quatro: O Zero Quatro vem de um período da época
de faculdade dos primeiros anos do curso de comunicação na UFPE,
que eu fui, que eu tive uma militância no diretório acadêmico
e tal, cheguei a ser diretor de imprensa do DA de comunicação
e a gente concebeu um jornalzinho. mimeógrafo mesmo, jornal laboratório
do curso de comunicação onde eram publicadas algumas coisas,
e eu tinha uma veia meio ficcionista e cheguei a publicar umas coisas, umas
crônicas, um conto. Esse jornalzinho se chamava Brecha, e até
teve uma época que eu escrevi algumas coisas que os personagens eram
todos números, então tinha nomes ”a 106 era uma garotinha
muito ingênua... a professora dona 90 não sei o que” ,
e eu comecei a ver que tinha alguns números que tinham uma certa personalidade,
e aí na hora de assinar eu comecei assinando como Fred mesmo e depois
eu vi que tinha mais sentido eu assinar como número; aí eu peguei
a coisa mais óbvia, a minha identidade e eu achei que o mais sonoro
seria o 04. Assinei e isso pegou muito rápido assim com os colegas...”Aí
04! Zero! Zero four!” não sei o que, virou meio que a minha persona
de faculdade, e aí comecei a assinar as primeiras músicas com
04.
Luciano Azambuja: Emendando, Mundo Livre, Zero Quatro, essa
questão da grafia, de aparecer Fred
Zero Quatro, só Zero Quatro, com número, zeroquatro junto...
Zero Quatro: Até o próprio o Mangue beat,
tem bit com i. Não sei se tem a ver com a minha formação
de comunicação, do Renato L. também, Ministro da Informação,
e o pop. E a gente sempre, mesmo quando não tinha esse negócio
de Internet, a gente começou a ter banda e fazer um som, fizemos um
programa de rádio e tal, muito tempo antes de rolar essa coisa de Internet,
até mesmo de parabólica, de tv a cabo, tudo muito de correr
atrás de quem tinha uma revista importada, e ir no aeroporto e encomendar,
de ouvir coisas na rádio BBC, de Londres e tal, programa do John Bill,
era uma coisa mais romântica na época, ir atrás da informação
do que hoje; e aí a gente acho que começou a se familiarizar
muito com essa história de diversos conceitos do imaginário
pop. E aí com a formação que a gente teve depois de faculdade,
que a gente pagou cadeiras de publicidade, de marketing, eu acho que juntou
uma coisa muito intuitiva do lado do Chico Science assim tal, com um lado
mais cerebral meu e do Renato L., e aí uma coisa que sempre foi atrativa
para a mídia, principalmente para a mídia mais alternativa,
foi um pouco uma certa forma de se criar , de inventar essas formas, é,
um certo véu, aquela coisa dos jogos dos véus, que não
entrega tudo pra ninguém. E eu acho que o jornalista gosta de ser provocado.
Uma coisa que você vai ver, e aí tem uma boazuda dançando,
que fala de peito e bunda não sei o que, isso é uma coisa que
não atrai muito pra quem quer uma coisa de entretenimento mais reflexivo.
Eu acho que você brincar com grafia, com formato, e você não
deixar muito, não entregar uma coisa muito definida, muito... beat
tem que ser com eat, e se não for tá errado, e tinha
gente que escrevia do jeito que queria e tal, tem pessoas que insistem em
escrever com i, e acham que tem que ser assim, e com Zero Quatro, por mais
que eu diga que eu prefiro só o Zero Quatro sem o Fred,
mas as pessoas, a maioria, sempre coloca o Fred. Eu acho que tem
um lado dessa cena de lá que tem uma certa - e eu não me envergonho
de dizer isso, isso é algo intrínseco ao pop - uma certa desenvoltura
de lidar com o marketing próprio, saber trabalhar o marketing próprio.
Então há momentos que eu acho interessante o Zeroquatro
juntos, há momentos que eu acho interessante o 04 com número,
separado, ou o mundo livre caixa baixa, Mundo Livre
caixa alta. E eu acho que vai de sentir, e também a coisa de você
jogar com o pêndulo, a tese e a antítese e tá tudo sempre
junto ali, e isso faz parte desde o início da concepção
da banda, do Mundo Livre s/a.
Luciano Azambuja: No livro Do frevo ao mangue
beat, José Teles afirma que o texto Caranguejos com Cérebro,
que acabou se transformando no primeiro manifesto mangue, era mais uma gréia
sua, dando a entender que era uma armação, uma brincadeira que
não era para ser levada tão a sério. O que é gréia?
Zero Quatro: A gréia, é uma
gíria lá, nunca ouvi fora do Recife, uma coisa que nem sei se
existe similar, correspondente em outros lugares, mas não tem uma,
é como ôia, do segundo disco, Guentando a Ôia,
não tem uma definição muito objetiva assim, gréia.
Mas tem um pouco disso que você tava falando da armação,
da pilhéria, do jocoso assim, mas tem um pouco também, tem mais
a ver, não sei, de uma certa forma, com pulha, no sentido, não
sei se existe aqui essa expressão, de você deixar o cara empulhado;
empulhado é justamente assim, perder o rebolado, é ficar vermelho,
ficar corado. Então tem cara lá que é especialista em
pulha, se você conversar cinco minutos com o cara, ou você também
é muito bom em pulha também ou você que dar um soco no
cara, ou você vai embora porque o cara lhe deixa empulhado... O cara
fica te tirando, sabe como é? E se você for refletir mais profundamente,
o pop não deixa de ser isso assim, principalmente o circuito da música
pop. E até na escola da arte pop, aquela história do Andy Warhol,
do negócio de mexer com ícones do cinema, e da música,
aí você coloca um tracinho, e aí isso aí é
arte ou não é, e vem desde o dadaísmo, coloca um urinol,
escreve urinol, inventa um nome de um artista fictício, e escreve aquilo
como uma peça de um salão de independentes como foi feito no
início do século XX; você deixou a comissão julgadora
empulhada (risos), os caras não sabiam se aceitavam aquilo como uma
obra ou não. Eu sempre vi uma relação sempre direta do
pop com o dadaísmo, na medida que você vê uma Marilyn Monroe,
alterada ou multiplicada, e você coloca aquilo como uma obra autoral,
é uma pulha também. Eu acho que o pop tem muito disso, é
uma fronteira um pouco tênue assim, entre o que é sério
e o que não é, entre diversão e reflexão, entre
entretenimento e arte, eu acho que tem isso no pop. Eu acho que tem várias
e várias, e eu acho que aí tem a graça do pop, e acho
que até hoje não é muito entendido, por setores mais
ortodoxos, da, digamos assim, da análise do circuito acadêmico.
Eu acho que talvez tem esse lado da gréia, que é bem
pertinente.