Figura denotativa de uma região específica do Brasil, o interior do centro-sul brasileiro, marcadamente as áreas de colonização paulista (interior de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, sul de Goiás e norte do Paraná), o caipira teve inúmeras representações desde o início do uso deste termo, no último quartel do século XIX. Desde as pinturas de Almeida Júnior até o sucesso de um personagem como Sassá Mutema em uma telenovela, passando por representações literárias, musicais e cinematográficas, o caipira aparece no imaginário da sociedade brasileira como uma antítese da modernidade e, por isso mesmo, recebeu ao longo do século XX, diferentes valorações, relacionadas aos diferentes projetos sociais, políticos e estéticos que teorizaram sobre a sociedade brasileira.

Este texto tem por objetivo analisar algumas práticas centrais numa das representações mais fortes do caipira: aquela relacionada ao humor, ou seja, o caipira enquanto agente do riso. E mais: a análise se centrará na formas de humor veiculadas pela música caipira, talvez o mais importante meio simbólico de representação do caipira ao longo do século XX.

Ao analisar o lugar da comicidade na cultura brasileira na República Velha, Saliba chama a atenção para o fato de que o cômico aparece como representação de diferentes temporalidades e espaços, considerados estranhos a um projeto modernizador da sociedade brasileira que, naquele momento, ocupava um grande espaço nas reflexões sobre o Brasil [ 1 ]. Este projeto modernizador pretendia transformar a face da sociedade brasileira, reconstruindo-a nos termos de uma palavra que, na Belle Époque, fora alçada a uma espécie de altar: civilização. Tal projeto procurava inserir o Brasil no “concerto das nações”, colocando-o ao lado dos modelos europeus [ 2 ]. A partir daí, ações no sentido de expurgar aspectos sociais tidos como arcaicos ganharam força, fomentando uma série de práticas e discursos que permearam diversas áreas, tais como a administração do Estado, políticas de saúde e habitacional, e cultura. Neste último aspecto, diversas práticas culturais – e aqui, a literatura, conforme Sevcenko (1985) apontou, ocupava um lugar de destaque – passaram a ser pensadas na sua função pedagógica e na sua capacidade de representação das principais mazelas da sociedade brasileira, o que criava uma espécie de pressão em relação à criação cultural. O que era cômico, na análise de Saliba, só adquire este sentido, portanto, quando confrontado com os valores propugnados por este projeto modernizante, havendo aí uma sobreposição de ritmos temporais: aqueles ligados a formas tradicionais de sociabilidade e aqueles ligados à modernidade. [ 3 ]

A sobreposição citada acima denota a tensão do pensamento sobre a sociedade brasileira que marca o final do século XIX e, pelo menos, os primeiros trinta anos do século XX. Por um lado, uma ênfase na modernização da sociedade brasileira, problematizando a presença maciça de elementos considerados espúrios do ideal moderno: o índio, o negro e, o pior dos inimigos, o mestiço [ 4 ]. Em contraposição a este vetor, uma visão da sociedade marcada pelo romantismo permeava diversos discursos, vendo nas diversas formas de sociabilidade consideradas arcaicas o verdadeiro fator de construção da nacionalidade. Não que esta visão fosse contrária à modernização, mas desconfiava do caráter secular desta última, da sua tendência a desmanchar “tudo que fosse sólido no ar”.

É em meio a estes vetores do pensamento que surgem as primeiras representações do caipira, o habitante do interior do centro-sul brasileiro. De origem tupi (kaa-pora, que significa “cortar o mato”), Houaiss (2001) aponta para obra de José de Alencar, datada de 1872, como a primeira referência ao termo com o intuito de denotar o habitante do interior do centro-sul. Neste momento, a representação do caipira tende a colocá-lo no rol das figuras que escapam aos malefícios da vida moderna, enfatizando sua pureza de alma, sua índole, sua liberdade. É assim, por exemplo, que o caipira aparece nas telas de Almeida Júnior, produzidas a partir da década de 1880. Em trabalhos como “Caipira picando fumo” (1893) ou “Caipiras negaceando” (1888), o pintor apresenta o caipira a partir desta verve romântica, enfatizando seu modo de vida mais próximo da natureza e suas práticas cotidianas sem formalismos. Interessante observar que nas duas telas, os caipiras são retratados descalços o que, se denota a precariedade das vestimentas da população livre do centro-sul, também aponta para uma aproximação com um modo de vida mais relacionado à natureza [ 5 ]. Em certa medida, o caipira é apresentado aqui como uma crítica à modernidade, uma figura capaz de produzir no citadino um estranhamento em relação aos seus próprios costumes e modos de vida. É com este sentido, por exemplo, que foi publicada em 1875 uma “Carta de uma roceira na capital”, na qual uma moça relata à prima, que mora no interior, um passeio pela cidade de São Paulo, no qual ela pôde observar diversos costumes dos habitantes do capital e estranhar vários dos seus modismos. No final, o caráter ingênuo (e puro) do caipira é enfatizado: “Mas qual! Que posso eu? Uma pobre caipirinha ingênua que só se orgulha de ser paulista.” [ 6 ]

Esta primeira representação do caipira é marcada, portanto, pelo seu viés romântico, onde se enfatiza o caráter de tradição presente no modo de vida caipira. Este é apresentando quase como um bom selvagem, alguém não maculado pelas manchas da civilização, com seu modo de vida fugaz e carente de referências morais. Esta representação do caipira se manteve ao longo do século XX, seja nos discursos primitivistas que marcaram certas produções do modernismo brasileiro, seja na busca de autenticidade presente nas discussões, intensas a partir da década de 1940, sobre o caráter nacional-popular da cultura brasileira [ 7 ]. É esta representação, ainda, que fundamenta muitos dos atuais discursos em torno da cultura popular do interior do Brasil, como, por exemplo, o programa de Inezita Barroso. [ 8 ]

Já no final do século XIX, porém, uma outra representação do caipira começou a ganhar força, relacionada ao projeto civilizatório descrito acima. Desta vez, o habitante do interior passa a ser descrito em tons pessimistas, seja num discurso que enfatizava sua fraqueza corporal, extremamente suscetível a doenças, seja num discurso que apontava para sua índole preguiçosa e de pouca iniciativa. Doente e preguiçoso: eis o caipira que emergiu dos discursos cientificistas e positivistas que marcaram a Belle Époque e que exerceram grande influência sobre a produção cultural da época [ 9 ]. Foi este tom pessimista que caracterizou a representação mais famosa do caipira, a figura do Jeca Tatu, criado por Monteiro Lobato numa série de artigos para a imprensa em 1914. Nestes artigos, Lobato usou a figura do Jeca Tatu para criticar o estado de abandono em que se encontravam as populações rurais no Brasil, marcadamente no centro-sul, além de lamentar o espírito passivo destas populações [10]. Desde então, a representação do caipira enquanto Jeca Tatu dominou o imaginário brasileiro, e esta representação, muito por estar ligada a projetos cientificistas e positivistas, é central para uma análise das relações do Estado na República Velha com as populações rurais. Se a primeira representação, que enfatizava a pureza, era influenciada pelo romantismo, esta segunda era marcada pela rubrica da ciência, o que, na virada do século XIX para o século XX, equivalia a um atestado de verdade.

O Jeca Tatu tornou-se então a representação mais conhecida do caipira, mesmo que seu aspecto doente e atrasado tenha, posteriormente, sido relativizado [11]. De certa forma, todas as imagens posteriores que se fez do caipira dialogaram com o personagem de Monteiro Lobato, ora afirmando-o, ora negando-o. Muitas vezes, houve, conforme mostrarei adiante, uma justaposição de representações: ao mesmo tempo em que o caipira é apresentado como um ser atrasado, ele denota também a pureza ausente na modernidade. De fato, a música caipira, pelo menos no momento de sua constituição enquanto campo artístico trabalhou sobre este tipo de representação por justaposição de imagens, e onde um dos efeitos provocados era o do humor.

Comentei acima a análise que Saliba (1998) faz do cômico na Primeira República, apontando para sua presença no contato entre temporalidades, espaços e modos de vida diferentes daqueles propugnados por um projeto modernizador. Um destes modos de vida a produzir o riso no público do Rio de Janeiro e de São Paulo no início do século XX era a do caipira. Perceba o leitor que, neste caso, este público ria exatamente daquilo que lhe parecia diferente, aquilo que ele não era. Tinha-se aí um público citadino rindo de um tipo rural. De fato, o período que compreende o final do século XIX e a República Velha constituiu exatamente o momento de auto-afirmação tanto do Rio quanto de São Paulo como metrópoles e foi neste momento que a população destas cidades começou a ser afirmar enquanto citadina. Isto não ocorreu sem traumas: diversos autores na historiografia descreveram os dramas vividos pela população em espaços que sofriam uma rápida transformação [12]. O caipira aparecia a estas populações como um ser imerso no passado, num espaço anti-moderno, onde as benesses da civilização e da modernidade ainda (havia a crença no progresso) não haviam chegado. Ria-se, portanto, da alteridade, daquilo que era diferente.

E foi exatamente pela via do humor que a música caipira fez sua aparição no universo musical da Primeira República. Reunião de gêneros musicais praticados no interior do centro-sul (cateretê, cururu, moda-de-viola e outros) a música caipira fez sua estréia em disco em 1929, com as gravações produzidas por Cornélio Pires com artistas do interior de São Paulo [13]. Até então, estes gêneros eram gravados indistintamente sob o rótulo de música sertaneja, sendo que esta categoria abarcava também gêneros de música nordestina, tais como côcos e emboladas. Além disso, os artistas não apareciam como caipiras, usando roupas típicas ou falando com a prosódia do interior de São Paulo [14], mas vestidos e falando de acordo com as normas da cidade. Neste caso, caipiras e nordestinos eram englobados na categoria sertanejos. Paraguassu, grande nome da música em São Paulo nos anos 10 e 20, e Jararaca e Ratinho, principal dupla dos anos de 20, são exemplos desta abrangência: tanto o primeiro, com suas cantigas e toadas, quando os segundos, com seus choros e emboladas, eram considerados sertanejos.[15] O que Cornélio Pires produziu foi uma música relacionada ao que ele chamava de o “autêntico caipira”, separado dos tipos do norte, e denotativo das áreas de colonização paulista. Em maio e outubro de 1929, Pires lançou uma série de 78 rpms onde ele apresentava duplas como Zico Dias e Sorocabinha, Mariano e Caçula. Estas são as primeiras gravações, até agora registradas, que se apresentavam como música caipira.

A senha de recepção do público paulista e carioca para tal tipo de música se deu pelo humor. De fato, entre as décadas de 30 e 60, as duplas caipiras tinham no humor seu meio de inserção principal junto ao público citadino. Através do rádio, meio de comunicação que se consolidou nos anos 30 e se popularizou nos anos 40, duplas e mais duplas caipiras apareceram a partir de 1930 apresentando causos, piadas, anedotas e música cujo intuito era, antes de tudo, provocar efeitos de comicidade [16]. Vale lembrar também que, além do rádio, o outro espaço destinado à apresentação dos caipiras era o circo. Tonico e Tinoco, Vieira e Vieirinha, Alvarenga e Ranchinho, Tião Carreiro e Pardinho, são apenas algumas das duplas que começaram suas carreiras cantando em circos.[17]

Vestidos e falando como caipiras, estas duplas provocavam nas platéias citadinas reações de riso e humor. A partir daí, quase todo o programa de música no rádio trazia em sua programação quadros humorísticos com duplas caipiras [18]. Como afirmei acima, o riso era produzido pelo confronto com um modo de vida considerado arcaico, representado em roupas e modos de falar tidos como atrasados. Contudo, o efeito da comicidade era produzido também por uma série de recursos poéticos e performáticos por parte das duplas. Era através destes recursos que o efeito cômico se realizava de maneira plena e muito da popularidade das duplas dependia do uso de tais recursos.

Um deles era a paródia. Desenvolveu-se na música caipira toda uma tradição de paródias feitas em cima de outros tipos de repertório. Pode-se citar, como exemplo, as paródias que Alvarenga e Ranchinho fizeram entre os anos 40 e 60, e que incluíam canções norte-americanas de Neil Sedaka (“Oh Carol” tornou-se “Tá caro”) ou ainda canções dos Beatles (a versão de Ronnie Von para “Girl”, intitulada “Meu Bem”, virou “Meu Boi” na gravação de Alvarenga e Ranchinho). Outro exemplo foi a gozação com o programa “O Fino da Bossa”, produzido a partir de 1965, que numa versão caipira chamou-se “O Fino da Roça” [19]. Neste caso, o humor produzido rebatia-se sobre o próprio público: ria-se da representação, mas também ria-se de si próprio. Isto se deve ao fato da paródia, como indicou Bahktin [20] operar por inversão, produzindo na platéia um efeito de estranhamento de si próprio. Assim, o humor da música caipira tinha também um efeito catártico sobre a platéia citadina, à medida que colocava em xeque, produzindo estranhamento, as representações que estas tinha de si próprias [21].

A sátira foi outro dos recursos muito utilizados pela tradição humorística da música caipira. Gozações com políticos, personagens históricos, costumes urbanos e rurais, foram muito utilizados por diversas duplas, sobretudo entre as décadas de 30 e 60. Alvarenga e Ranchinho, por exemplo, satirizaram todos os presidentes brasileiros entre 1936 e 1964, tendo, inclusive, muitos problemas com a censura. Os diversos modismos urbanos também serviram de matéria para o humorismo da dupla. Um bom exemplo disto é a moda de viola “Liga dos Bichos”, lançada em setembro de 1936 [22]. Nesta composição, a dupla satirizava os novos valores dados aos animais pelos tempos modernos:

Já formaram a sociedade
Protetor dos animais
Enquanto os bicho progride
A gente anda pra trás
Esse mundo ta virado
Tem coisa que não se atura
A gente passa apertado
E os bicho passa fartura

Da maneira que vai indo
Solteiro que não demora
Os burros monta na gente
E ainda chama na espora
Vou simbora pro sertão
Não volto aqui nunca mais
E lá não tem Sociedade
Protetor dos animais

Aqui, uma vez mais, o humor tem a função de produzir o estranhamento, levando a platéia a rir de si própria e de seus costumes. Sevcenko [23] comenta como a música popular, nesta função crítica dos costumes do início de século XX, teve uma importância fundamental na auto-reflexão da sociedade brasileira sobre si própria [24]. Neste caso, a música caipira não era única: basta lembrarmos de toda tradição satírica presente nas marchinhas de carnaval. Nos anos 30, assim, se a sátira tinha em Alvarenga e Ranchinho seu principal nome na música caipira, no samba e na marcha ela desenvolveu-se nas produções de Noel Rosa, Lamartine Babo, Haroldo Lobo, Braguinha e Nássara.

Além de recursos de paródia e sátira, muitos efeitos cômicos da música caipira foram produzidos a partir de recursos poéticos mais específicos, tais como inversões e redundâncias. Uma vez mais, uma gravação de Alvarenga e Ranchinho serve de exemplo. A valsa “Romance de uma caveira” foi lançada em março de 1940 e foi um dos maiores sucessos da dupla:

Eram duas caveiras que se amavam
E à meia-noite se encontravam
Pelo cemitério os dois passeavam
E juras de amor então trocavam

Sentados os dois em riba da louza fria
A caveira apaixonada se dizia
Que pelo caveiro de amor morria
E ele de amores por ela vivia

Ao longe uma coruja cantava alegre
De ver os dois caveiros assim feliz
E quando se beijavam então fúnebre
A coruja batendo as asas pedia bis

Mais um dia chegou de pé junto
Um cadáver novo de um defunto
E a caveira por ele se apaixonou
E o caveiro antigo abandonou

O caveiro tomou uma bebedeira
E matou-se de modo romanesco
Por causa dessa ingrata caveira
Que trocou ele por um defunto fresco


O efeito cômico era inevitável, apoiado em redundâncias (um caveiro que morre, só que de amores) e inversões (uma caveira que vive de amores, dentre outras). Exemplos como este são abundantes na música caipira e observa-se também, neste caso, uma sátira às relações amorosas na modernidade.

Em outros casos, o efeito cômico era obtido na própria construção textual, no modo de encadeamento das palavras. É o caso, por exemplo, do “Drama de Angélica”, lançada por Alvarenga e Ranchinho em 1942. Toda a composição estrutura-se em torno de um jogo feito com proparoxítonas, antevendo um recurso utilizado décadas depois por compositores como Chico Buarque (“Construção”). A letra do “Drama de Angélica” é longa, mas vale a transcrição pela situação descrita e pela criatividade do jogo textual:

Ouve meu cântico
Quase sem ritmo
Que a voz de um tísico
Magro esquelético

Poesia épica
Em forma esdrúxula
Feita sem métrica
Com rima rápida

Amei Angélica
Mulher anêmica
De cores pálidas
E gestos tímidos

Era maligna
E tinha ímpetos
De fazer cócegas
No meu esôfago

Em noite frígida
Fomos ao lírico
Ouvir o músico
Pianista célebre

Soprava o zéfiro,
Ventinho úmido
Então Angélica
Ficou asmática

Fomos ao médico
De muita clínica
Com muita prática
E preço módico

Depois do inquérito
Descobre o clínico
O mal atávico
Mal sifilítico

Mandou-me o célere
Comprar noz vômica
E ácido cítrico
Para o seu fígado

O farmacêutico
Mocinho estúpido
Errou na fórmula
Fez despropósito

Não tendo escrúpulo
Deu-me sem rótulo
Ácido fênico
E ácido prússico

Corri mui lépido
Mais de um quilômetro
Num bonde elétrico
De força múltipla

O dia cálido
Deixou-me tépido
Achei Angélica
Já toda trêmula

A terapêutica
Dose alopática
Lhe dei em xícara
De ferro ágate

Tomou no fôlego
Triste e bucólica
Esta estrambólica
Droga fatídica

Caiu no esôfago
Deixou-a lívida
Dando-lhe cólica
E morte trágica

O pai de Angélica
Chefe do tráfego
Homem carnívoro
Ficou perplexo

Por ser estrábico
Usava óculos
Um vidro côncavo
Outro convexo

Morreu Angélica
De um modo lúgubre
Moléstia crônica
Levou-a ao túmulo

Foi feita a autópsia
Todos os médicos
Foram unânimes
No diagnóstico

Fiz-lhe um sarcófago
Assaz artístico
Todo de mármore
Da cor do ébano

E sobre o túmulo
Uma estatística
Coisa metódica
Como Os Lusíadas

E numa lápide
Paralelepípedo
Pus esse dístico
Terno e simbólico

“Cá jaz Angélica
Moça hiperbólica
Beleza helênica
Morreu de cólica”


Vale observar que a comicidade não envolvia somente as letras das canções. As gravações originais destas músicas também usam uma série de efeitos de performance destinados a provocar humor. No “Romance de uma caveira”, citado acima, há vários efeitos sonoros (vozes imitando assombrações, um saxofone fazendo glissandos que evocam aspectos soturnos) que criam um “clima” de filme de terror. Além disso, o próprio costume de trazer no rótulo das gravações o gênero ao qual a música pertencia (muito comum no cenário da música popular até a década de 60 e ainda bastante praticado na música caipira) era usado no sentido de produzir comicidade. O rótulo do 78 rpm com “Drama de Angélica” a caracterizava como “canto tétrico”, enquanto que o “Romance de uma caveira” foi classificado como “valsa fúnebre”.

A relação da música caipira com o humor vai muito além destes exemplos. Evoquei-os aqui no sentido de ilustrar algumas formas poéticas e estratégias usadas no sentido de produção do efeito humorístico. Obviamente, estas formas não são exclusivas da música caipira, estando presentes na cultura popular urbana no Brasil desde pelo menos a segunda metade do século XIX [25]. Contudo, tais formas receberam novos sentidos ao serem utilizadas por artistas relacionados à música caipira. A sátira produzida pelas marchinhas de carnaval, por exemplo, tinha outros significados e outro alcance daquelas cantadas pelas duplas caipiras. Uma vez mais, é útil que se observe como o caipira aparecia como uma figura da alteridade para as platéias urbanas na primeira metade do século XX no Brasil. Assim, suas sátiras tinham um efeito duplo: o riso do outro e o riso de si próprio. Esta duplicidade residia exatamente na sobreposição das representações que descrevi no início deste texto: o caipira era um elemento que denotava tanto a ausência da modernidade quanto os seus excessos. Por um lado, uma figura pura, intocada, que com suas piadas fazia a platéia rir de si própria. Por outro lado, uma figura atrasada, arcaica, que provocava o riso pelas suas próprias deficiências.

A música caipira foi, sem dúvida, o meio simbólico mais popular para a representação do caipira na primeira metade do século XX, influenciando, inclusive, representações posteriores como, por exemplo, o cinema. Muitos dos recursos cômicos utilizados por Mazaropi, por exemplo (cuja estréia nas telas se deu em 1952), vinham do trabalho de duplas como Alvarenga e Ranchinho. É preciso, porém, não esgotar no humor a forma como a música apresentou o caipira. O lado saudosista, triste e melancólico, também foi bastante representado. É o caso da dupla que marcou os anos 40: Tonico e Tinoco. O trabalho desta dupla pouco, ou quase nada, tinha de humorístico e se há um ethos na sua música é o da melancolia. Talvez mais do que Alvarenga e Ranchinho, ídolos da década anterior, Tonico e Tinoco operaram, na década de 40, sobre esta sobreposição de representações: puro e simples, atrasado e arcaico. No entanto, ao invés de buscar o humor, Tonico e Tinoco buscavam apontar a “tristeza do jeca”.

Por fim, gostaria de salientar que refletir sobre o uso do humor na música caipira significa também trazer este tipo de música para o centro de um outro debate: o da construção da idéia de nação e dos símbolos desta. Vianna (1995) mostra como a década de 30 assistiu a um processo de nacionalização do samba e regionalização de outros repertórios. Num espaço curto, de cerca de 20 anos, o samba carioca foi alçado à condição de símbolo da nação, conquanto a música caipira, o frevo, as emboladas, passaram a indicar regiões específicas. Isto estava ligado a diversos fatores, mas um deles era a idéia de um ethos nacional ligado ao humor e à irreverência e que tinha no Rio de Janeiro o seu centro. Saliba [26] chamou a atenção para este processo de transformação do espírito carioca em ethos nacional, num movimento que teve nas décadas de 20, 30 e 40 seu eixo central. É preciso refletir a relação destes aspectos humorísticos da música caipira com este processo de transformação do carioca no tipo nacional. Esta reflexão, além de lançar luz sobre a constituição da música caipira, também pode revelar outros projetos para o Brasil.

Referências Bibliográficas

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Referências Discográficas

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––––––––––––––––––––––––––––. “Romance de uma caveira”. Gravação de 1940. In: Violeiro Triste. CD. Curitiba: Revivendo, 2000. faixa 18.

––––––––––––––––––––––––––––. "Drama de Angélica”. Gravação de 1942. In: Violeiro Triste. CD. Curitiba: Revivendo, 2000. faixa 8.

[ 1 ] Elias Tomé Saliba. “Dimensão cômica da vida privada na República. In: SEVCENKO, Nicolau. História da vida privada, v. 3, p. 297

[ 2 ] Sobre a idéia de civilização, cf. Hobsbawn 1989 e Kuper 2002: 45-71

[ 3 ] Elias Tomé Saliba. Op.cit, p.294

 

 

 

 

[ 4 ] cf. Schwarcz, 1995

 

 

 

 

[ 5 ] E também a escravidão. Sobre isto cf. Wissenbach 1998, p. 53-55

 

[ 6 ] A Província de São Paulo, 21/01/1875, p. 2, seção Variedades.

 

 

 

 

 

 

[ 7 ] cf. Travassos 1997 e Vilhena 1997

[ 8 ] Para uma representação atual do caipira como “anti-moderno”, cf. Marchi 2000.

 

[ 9 ] Sevcenko 1985 descreve a pressão de tais discursos sobre a produção cultural.


[10] Para um estudo das condições de vida das populações rurais na Belle Époque, cf. Wissenbach, 1998





 

 




[11] Sobre isto, cf. Nepomuceno 2000, p. 94-98.

 

 

 

[12] Para um exemplo destes trabalhos, cf. Sevcenko 1992.

[23] 1998, p. 329.

[24] Sobre isto, cf. também Wisnik 2003.

Música Caipira e humor
Allan de Paula Oliveira

Doutorando em Antropologia Social PPGAS/UFSC
Pesquisador veiculado ao MUSA/PPGAS/UFSC e MUSICS/DEMUS/UDESC

 

[13] Sobre estas gravações cf. Nepomuceno 2000, p. 101-104.


[14] Sobre a vestimenta caipira, cf. Arantes e Arantes 1996; sobre a prosódia, cf. Bernardes 1999, p. 187-192.

[15] Para uma análise desta categoria no início do século XX, cf. Sevcenko 1998, p. 592-595.











[16] Sobre a expansão do rádio nos anos 30, cf. Moraes 2000, p. 49-72.

[17] cf. Nepomuceno 2000.









[18] Tradição que se perpetuou na TV com personagens como Nérso da Capetinga, por exemplo.








[19] cf. Munaigni Jr, 2001, p. 159.

[20] 2002, p. 10.

[21] Sobre a idéia de estranhamento na cultura ocidental, cf. Ginzburg 2000.











[22] cf. Alvarenga e Ranchinho, 1936

[25] cf. Saliba 1998 e Wisnik 2003.
[26] Op.cit, 362-363.

Alvarenga e Ranchinho.