O texto se propõe a descrever a experiência do mané beat por meio de relações de influência e comparação com o mangue beat, procurando analisar e refletir sobre os fatores que inviabilizaram a efetivação da experiência na Ilha de Santa Catarina, tendo como marco comparativo o modelo de um movimento que se concretizou e que, portanto, pode servir de referência para projetos que tenham como objetivo a constituição de uma cena cultural.
As principais fontes documentais para a tentativa de reconstruir a experiência mané beat serão: um documentário em vídeo e um capítulo da tese de doutorado em Psicologia Social intitulada Sete Mares Numa Ilha: a mediação do trabalho acústico na construção da identidade coletiva, defendida por Kátia Maheirie em 2001 e que aborda o trabalho musical das bandas Iriê, Primavera nos Dentes, Rococó, Stonkas y Kongas, Phunky Buddha, Dazaranha e Tijuqueira.
A iniciativa de mobilização partiu de alguns músicos da banda de reggae Iriê e do produtor cultural Gringo, que prestava serviço de sonorização para várias bandas de Florianópolis. Ao conversarem sobre os diversos grupos e sonoridades que despontavam no cenário florianopolitano, resolveram criar um movimento chamado mané beat, cuja proposta iria se constituir, de uma forma vaga, na construção de uma identidade regional capaz de projetar a criação musical de Florianópolis no cenário nacional através da inserção no mercado fonográfico.
Pelo momento, nome e proposta do suposto movimento, estabelecem-se inevitavelmente a relação de influência com o mangue beat. O ano de 1997 pode ser considerado, contraditoriamente, o ápice e o início do fim, o ponto limite e a consolidação de um dos movimentos mais importantes da música popular brasileira contemporânea. Uma matéria jornalística do New York Times, de três colunas, com foto, redigida pelo reconhecido crítico musical John Pareles noticiou:
“Chico Science, compositor e bandleader, altamente celebrado como o futuro da música brasileira, morreu domingo passado em um acidente automobilístico, próximo à cidade nordestina onde morava. Ele tinha trinta anos.” [ 1 ]
No dia 02 de fevereiro de 1997, em pleno carnaval recifense, no auge da carreira
e da criatividade artística, Chico Science morre em um acidente automobilístico
na mesma estrada cercada de manguezais que liga Recife a Olinda, onde teve
a inspiração e criou o conceito mangue. Um artista ignorado
pela intelectualidade local e que tocou muito pouco nas rádios pernambucanas
tem um velório comparável a grandes personalidades, com filas
quilométricas para o último adeus. Segundo Teles, “nunca
as emissoras de TV locais, inclusive a TV Globo, de rígida
grade de programação, abriram tanto espaço para um movimento
de cultura regional” [ 2 ], ainda que por meio de matérias sensacionalistas.
Zero Quatro, líder da segunda banda carro-chefe do som do mangue, Mundo Livre s/a, publica um texto na imprensa local que fica conhecido como o Segundo Manifesto Mangue. Nesse texto faz um balanço das realizações e conquistas do movimento, enaltece o legado de Chico, incentiva a continuidade da Nação Zumbi e aponta para perspectivas futuras do mangue beat. Em mais uma ironia do destino, o mesmo Zero Quatro também fora o autor do primeiro manifesto, Caranguejos com Cérebro, que lançou as pedras fundamentais do movimento; o conceito, a cidade e a cena: o manguezal, a Manguetown e o mangue. A imagem-símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama. A intenção do “núcleo de pesquisa e produção de idéias pop” era salvar a cidade doente, injetando energia na lama para conectar Recife à rede mundial. Do primeiro manifesto que lançou o movimento em 1992 ao segundo manifesto, quando da morte de Science em 1997, um recorte temporal: da origem do mangue à morte de Chico. A morte de Chico Science teve repercussão nacional e, como vimos, internacional, e, consequentemente, reverberou em Florianópolis, principalmente no meio musical ligado a música pop.
Apesar da perplexidade e indecisão, o festival Abril Pró-Rock de 1997 foi apoteótico e triste, trágico e irônico, mas serviu para selar a celebração em homenagem a Chico Science. No mesmo pavilhão do Centro de Convenções onde acontecera o velório de Chico, Max Cavalera, que na época estava saindo da banda Sepultura (de fama internacional), se apresenta com a Nação Zumbi cantando os principais sucessos dos dois primeiros discos. Chico saía da vida para entrar na história da música do Recife e do Brasil: “Ali Chico Science começava a virar um mito” [ 3 ]
Em um momento em que o interesse das gravadoras e da mídia pela cena recifense começava diminuir, a morte de Chico Science representou a cristalização e um divisor de águas do movimento mangue. A atitude e as idéias tinham ficado, mas o mangue teria que seguir sem Chico. E seguiu. Mas se retornarmos às origens será possível compreender melhor esse evento balizador, e veremos que a proposta inicial daquele grupo de amigos de criar uma cena musical na cidade do Recife já estava realizada; mais do que isto, superava todas as expectativas. Conseguindo se inserir na indústria fonográfica e no panorama da música pop brasileira, ajudaram a construir um movimento cultural que recolocou Pernambuco no circuito cultural brasileiro e até hoje reverbera “fractais de cena” [ 4 ] em diversas manifestações e lugares.
Além do próprio nome, a influência do mangue beat sobre o mané beat se verifica de uma forma mais direta na análise do depoimento de Caio, vocalista da banda Stonkas y Congas:
“Tendo participado do Abril Pró-Rock em Recife, ele considera que lá, apesar da diversidade de bandas e de propostas sonoras, o mangue beat é composto pela união concreta destas bandas, que se “se ajudam” mutuamente, expressando um “orgulho muito forte de suas raízes”. Para ele, no mangue beat as diversidades sonoras não impedem o movimento de acontecer. Talvez o mané beat possa surgir como um promotor desta interação”. [ 5 ]
Caio identifica três aspectos que fundamentam o mangue beat: diversidade, identidade e interação entre as bandas. Ao sugerir que o mané beat poderia promover essa interação, conclui-se que ela não existia de fato. Já o produtor Gringo, um dos anunciadores da cena, acreditava que a diversidade sonora poderia traduzir a identidade da ilha:
“O que tem a ver Primavera com Iriê, com Daza, com Phunky Budda, com Tijuqueira? Exatamente por não ter nada a ver é que tem tudo a ver. Sabe, cada um faz o seu trabalho da sua forma, canta as belezas da nossa terra da sua forma, misturam ritmos, misturam influências (...) e isso cria uma característica uníssona, todos acabam falando a mesma coisa”. [ 6 ]
O produtor admite que, entre as bandas citadas, não existe afinidade nenhuma, mas acredita que a unidade virá dos trabalhos individuais, do cantar as belezas da terra, da mistura de ritmos e influências. Isso não foi suficiente para constituir um movimento musical capaz de inventar uma identidade regional. Não havia um grupo definido com uma proposta e um projeto claros. Segundo os depoimentos dos músicos entrevistados por Kátia Maheirie, não houve uma movimentação composta pela maior parte dos integrantes envolvidos para que depois se efetivasse a declaração da existência de um movimento. Apesar de considerar a iniciativa louvável, alguns integrantes admitem que o movimento aconteceu “meio de fora pra dentro”, ou melhor, de frente pra trás; primeiro anunciaram a cena para depois tentar uma interação das bandas que não acontecia de fato. Apesar de também desejarem projetar a música de Florianópolis no cenário nacional, os integrantes das bandas Dazaranha e Tijuqueira manifestaram uma posição mais realista e crítica:
“... nem todas as pessoas que são citadas como parte deste movimento estão sabendo ou estão conscientes da responsabilidade que é se ter um movimento na ilha, e se caracterizar isso como um movimento (...) e o que significa ter um nome pro movimento...”. [ 7 ]
Para Márcio, vocalista da Tijuqueira, a iniciativa de unir os grupos musicais locais era interessante, mas discordava da existência de um movimento. Segundo o cantor, não basta, para que haja um movimento, que os integrantes habitem a mesma cidade e façam músicas próprias, como acontece no suposto mané beat. Para que ele aconteça é necessário que haja afinidades musicais e filosóficas, “como aconteceu na Tropicália”. Para o músico, o que acontecia era uma “movimentação das bandas” que poderia vir a constituir um movimento.
Já os integrantes das bandas Iriê, Rococó manifestam uma postura mais otimista e ingênua. Rô, vocalista do Iriê constata que
“...nem todo mundo tá com esta mentalidade ainda, mas a gente acredita que isso vai rolar, que todo mundo vai perceber que é isso que precisa pra Florianópolis crescer musicalmente, para que Santa Catarina apareça musicalmente; (,,,) se rolar pra um, vai rolar pra todo mundo, porque aqui tá explodindo. [ 8 ]
Apesar de todos os grupos apoiarem a iniciativa, percebe-se a falta de interação e diálogo entre as bandas sobre o que esperavam de um movimento musical, manifestando mais divergências do que pontos em comum. O mané beat não tinha começado bem. A influência do mangue beat talvez pudesse ter sido mais consistente e aprofundada, no sentido de incentivar a pesquisa e análise das origens do movimento que servia de modelo para as pretensões dos músicos catarinenses.
Foi a partir de um horizonte cultural, em que Recife despontava como a quarta pior cidade do mundo em qualidade de vida, que “amigos trocando informações, partilhando estilos musicais, bebendo, fumando, criando, divertindo-se” [ 9 ], em mesas de bares boêmios, e, em especial, em um apartamento do centro do Recife, passaram a articular o embrião inconsciente de um grupo de amigos que iria trabalhar em cooperativa para criar uma cena musical na cidade do Recife. Unidos em torno da “brodagem” (atitude de ser irmão), da diversidade de estilos musicais e do prazer de estarem juntos, o núcleo era formado pelo já apresentado Zero Quatro, por Chico Science, Jorge Du Peixe, Lúcio Maia, músicos; Renato L., o “ministro das comunicações”, jornalista; Her dokctor Mabuse e Helder Aragão (Dj Dolores), designers, programadores visuais e Djs. No apartamento de Helder, no Bar dos Gringos, na zona portuária e do meretrício, ou no Cantinho das Graças, bar cult de classe média alta, às vezes com a presença de Xico Sá, jornalista da Folha de São Paulo, bebiam cerveja e conhaque, fumavam “patuá” (maconha); comentavam influências literárias de Burroughs e Kerouac, discutiam arte fractal, acid house e os filmes de Alex Cox; ouviam James Brown, Afrika Bambaata, Jorge Ben, Jony Rotten, The Who, Ira, Fellini entre outros. Começaram a juntar as idéias de mesa de bar para vislumbrar de uma forma irônica e irreverente, “diversão levada a sério”, a possibilidade de produzirem festas para “ganhar algum dinheiro e se divertir”. A partir de então é que se começará a construção, a montagem da idéia, do rótulo, da imagem, da metáfora para designar esse núcleo que começava a emergir no cenário. Esse termo inicial será trazido por Chico Science.
Constata-se que a amizade, diversidade e prazer foram os elementos que, primeiramente, originaram um grupo de amigos que vislumbrava a possibilidade de criar uma cena para, a partir de então, começar a montagem do rótulo que iria personificar o núcleo e a cena.
O mané beat primeiro anunciou o nome e a cena para depois tentar aglutinar e consultar as bandas envolvidas. E a primeira divergência, resultado da falta de interação, iria se manifestar no próprio nome: os dois termos “mané” e “beat” apresentaram problemas.
Ao analisarmos o termo “mané”, a divergência se manifestará em relação a dois significados diferentes e antagônicos da expressão: o positivo e o pejorativo. Dentre os defensores do termo, identificam-se os integrantes da banda Iriê:
“Até o próprio nome já diz, tem a ver com a cultura açoriana, porque o cenário é a nossa ilha, que tem vários estilos musicais diferentes: (...) do reggae, do funk, rock, metal (...) até boi de mamão... rola de tudo (...) não é o mané pejorativo, é o mane da ilha, o nativo, o local” (Chris, guitarrista do Iriê).
Por outro lado, alguns músicos expressaram um desconforto muito grande com o termo “mané”, o que chegou inclusive a comprometer a adesão ao movimento:
“(...) mané é muito pejorativo, mané quer dizer aquela pessoa estúpida e burra que não sabe nada e pensa que entendeu...” (Alexandre, baterista do Phunky Buddha)
Ao analisar essas contradições do termo, Meheirie analisa as mudanças de significado do termo “manezinho” em relação ao sentido adotado no resto do país: “malandro é malandro, mané é mané”. A pesquisadora defende que, a partir da década de 70, se verifica em Florianópolis a criação de um novo significado para o termo “manezinho”, usado para identificar a figura folclórica do ilhéu, do nativo, do local, com o seu modo de falar e seus costumes, herança da colonização e da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina. Para Meheirie, o surgimento deste novo significado do termo estava relacionado com o potencial turístico da cidade e também serviu para a defesa do local diante dos processos de globalização dos anos oitenta e noventa. Em outras palavras, inventa-se uma tradição para vender uma identidade associada ao turismo e, por outro lado, desenvolve-se uma resistência em relação aos valores que vem fora. Da mesma forma, o mané beat tenta se apropriar do valor positivo do termo para caracterizar um produto que visa se inserir no mercado fonográfico.
“Esta questão do nome é aquela história de usar a marca; (...) tem que saber se defender - isso é uma defesa que o pessoal tá querendo fazer pra poder entrar no mercado; (...) tem que colocar um slogan, fazer uma embalagem bonita; (...) o nome pode não se encaixar pra todo mundo, eu acho que pode fazer de conta que encaixa” (Márcio da Vila, vocalista do Tijuqueira).
Além de toda a problemática do termo “mané”, tinha também a questão do segundo termo, o “beat”. Primeiro, pela falta de originalidade ao se associar diretamente, e de uma forma reprodutora, ao mangue beat, o que também causou desconforto em alguns integrantes
“... ao se preocupar em agrupar sobre uma nomenclatura que seja também original. A questão de estar somente na repetição do beat, e o som de cada um leva numa direção, a gente quer deixar isso claro na nomenclatura também” (Barreto, vocalista do Phunky Buddha).
Outra questão que ficou no ar foi em relação a qual seria a “batida do mané”. O próprio Cléo, vocalista da banda Iriê, admite que sua banda estava totalmente voltada para o reggae e que não tinha nada a ver com a cultura açoriana. Em verdade, cada banda desenvolvia um trabalho próprio, cantado em português nos mais diversos gêneros de influência anglo-americana (rock, blues, reggae, funk, metal) e “até boi de mamão”. Efetivamente não existia uma batida do mané e não temos conhecimento se ocorria uma experiência de fusão de ritmos regionais com a música pop. Talvez o termo associado ao mangue beat tenha estimulado um interesse pela pesquisa de ritmos regionais de tradição açoriana e o uso mais significativo de instrumentos de percussão nos trabalhos das bandas locais.
Voltando ao nosso modelo de análise, vejamos como se deu o processo de criação e construção do conceito mangue beat.
Francisco França, Chico Vulgo, Chico Science, era um jovem de classe média baixa que morava em Olinda e que na infância espontaneamente tivera contato com as tradições folclóricas da ciranda, do maracatu e do coco. Na adolescência pegava caranguejos nos manguezais para vender, na intenção de conseguir dinheiro para ir aos bailes funk que a mãe proibia. No início dos anos 90 trabalhava em uma empresa de processamento de dados da prefeitura e tinha uma banda. Um colega de trabalho lhe conta sobre um grupo musical de Chão de Estrelas, da Comunidade do Daruê Malungo, um núcleo lúdico, didático e religioso de resistência da cultura negra e que realizava um trabalho social de inclusão de meninos de rua. O grupo era o Lamento Negro, que tocava maracatu, afoxé e samba-reggae. Segundo José Teles, “Chico foi com Gilmar Bola Oito e saiu de lá mudado, convertido, de que o baque virado, o baque solto poderia se encaixar no ‘suíngue’ de George Clinton, Kurtis Blow, Afrikka Bambaata ou James Brown” [10].
Há duas versões para o nascimento lendário do termo. No ônibus, com o amigo Jorge Du Peixe, na linha Rio Doce, de Olinda para Recife, em uma estrada cercada de manguezais, Chico diz que chamaria a música que eles estavam fazendo de mangue. Em outra, talvez desdobramento da primeira, Chico chega excitado no Cantinho das Graças e diz para os presentes, dentre eles Renato L., “o nome da parada é mangue!”. Apesar da resistência inicial, sob a forma do argumento de que uma pessoa de fora da comunidade descaracterizasse a proposta, Chico se integrou ao Daruê Malungo e esperou um ano para convencer integrantes do grupo Lamento Negro, Gilmar Bola Oito, Gira e Toca Ogan, a participarem da sua alquimia sonora.
Dia 01 de junho de 1991: pela primeira vez nome e foto de Chico Science e o termo mangue aparecem na imprensa local, mais especificamente no Jornal do Comércio, para designar um estilo musical. A “batida do mangue” foi a “primeira e restrita compreensão que a imprensa teve do fenômeno...” [11].
Essa matéria é muito representativa, pois inaugura a relação do grupo mangue com a imprensa jornalística através da estratégia da “brodagem”, pois a amizade com os jornalistas Fred Zero Quatro e Renato Lins facilitou para que Chico não amargasse uma longa espera na redação ou recebesse apenas uma “notinha”. O texto jornalístico sugere o mangue como um novo gênero, mas Chico o define como um ritmo, e dá a receita: “é uma mistura de samba-reggae, rap, ragamuffin e embolada”. Chico Science, vocalista e organizador do evento, apresenta o termo mangue através do resgate e da valorização dos ritmos regionais, e ao mesmo tempo, propõe a alquimia com os sons negros das Américas. O termo inaugurador tinha sido apresentado por Chico Science. Faltava agora o grupo e, em especial, Fred Zero Quatro completar a montagem do conceito mangue beat.
“Fred Zero Quatro é chamado para fazer o roteiro e locução de um documentário sobre o ecossistema mangue. Da pesquisa e elaboração desse roteiro surgem os fundamentos de um release que se transforma em manifesto mangue. Assim nasce o primeiro manifesto de um fenômeno que passa a ser chamado de movimento” [12]. Foi a imprensa jornalística que começou a usar o termo manifesto a partir da chegada às redações em 1992 de um release escrito por Zero Quatro, com ilustrações computadorizadas de Helder Aragão, intitulado Caranguejos com Cérebro.
O “manifesto”, escrito e estruturado com conhecimentos científicos, históricos e culturais, carrega um tom de ironia, na medida em que traça um diagnóstico emergencial de uma metrópole urbana (“esclerose econômica”, “síndrome de estagnação”, “depressão crônica”) e apresenta, utilizando termos médicos, uma solução “simples” para o quadro: conectar o mangue à rede mundial e criar uma cena pop. Em seguida, elenca os diversos interesses dos mangueboys, chamando à resistência ao mesmo tempo em que faz uma exaltação à diversão. Pelo que apresenta, “Caranguejos com Cérebro” não deixava de ser mais uma “gréia” (armação, ironia) de Zero Quatro. Não era para se levar tão a sério aquele texto, como a imprensa o fez a ponto de transformá-lo em um manifesto. De qualquer forma, de marca registrada do trabalho daquela cooperativa, em especial das duas bandas que eram seu carro chefe, o rótulo migrou em direção a algo maior, identificando-se com a própria cena que ajudou a criar.
Em março de 1993, o jornalista local José Teles é requisitado pela revista Bizz (revista especializada em música pop de circulação nacional) para escrever uma matéria sobre o mangue. O título: “Da lama para a fama – Recife inventa o mangue-beat”. O texto apresenta o conceito mangue beat como uma concepção sonora que mistura os ritmos regionais com “o bom e velho rock’n’roll”, como uma repulsa “contra os modelitos anuais pop importados”. Zero Quatro, que no texto aparece grifado “04”, afirma a descoberta de que Recife era “muito mais rica em música do que Seattle” e a determinação de fazer um som próprio. Ao ser interrogado sobre o mangue, ele faz um discurso sobre os manguezais de Recife e o nome em latim de um caranguejo com cérebro, símbolo do movimento do “pessoal do mangue” que participa dessa “filosofia crustaceana”: Mundo Livre s/a, Loustal, Nação Zumbi e Lamento Negro. O texto parte para o fechamento destacando as realizações do grupo (fita demo e videoclip, “elogiadíssimo”, já apresentado na MTV) e indica a possibilidade de “sair de vez da lama” para ser ouvido pelo Brasil através da participação em uma coletânea de uma gravadora independente, além de outras curiosidades como o “bar do Caranguejo” na praia de Candeias e o “o mangue móvel”, o fusca 69 “pré-Itamar” de Zero Quatro.
A matéria jornalística é significativa na medida em que ajuda a completar a montagem do conceito, agora denominado mangue beat, apresentando o pessoal e o som do mangue, sua atitude, seu discurso irreverente, sua vontade de conquistar um lugar para si através da criação de uma cena. No mesmo mês de março, a MTV apresenta um especial com Chico Science & Nação Zumbi.
A construção da marca mangue beat foi resultado de um processo espontâneo de intenções, interações e conspirações de um grupo de amigos que se transforma em cooperativa para criar uma cena pop para a cidade do Recife. Tinham um grupo formado por músicos, jornalistas, programadores visuais e Djs, com uma significativa e eclética bagagem cultural. Tinham um nome e uma “batida”, resultado da fusão dos ritmos regionais pernambucanos com a música negra americana; tinham um manifesto que apresentava o núcleo e a sua vontade de conquistar um lugar para si através da criação de uma cena; aplicaram a estratégia da “brodagem” para conquistar espaços na mídia e atrair o interesse das gravadoras do sul. Tinham o som poderoso das guitarras e tambores de CSNZ e a ironia e balanço de MLSA, e produziam festas e shows para promover a cena cultural.
Já em relação ao mané beat, apesar das divergências com relação ao nome e à existência ou não do movimento, os supostos integrantes elogiavam a iniciativa e procuravam superar o problema inicial, pois, assim como os mangueboys, também desejavam criar uma identidade sonora que atraísse o interesse das gravadoras do eixo Rio-São Paulo.
“Nesta época, as bandas buscavam “estreitar” o relacionamento que estabeleciam entre si, primeiro pela amizade existente entre alguns músicos, segundo pelas parcerias nas composições e, terceiro, em participações especiais e apresentações conjuntas em shows. Além disso, Gringo buscava promover shows que chamava de mané beat, nos quais convidava, em média, três bandas para compor o espetáculo da noite. Foram organizados, aproximadamente, cinco shows com esta característica” [13]
Amizade, parcerias e shows não foram suficientes para criar uma aglutinação em meio à diversidade de estilos e o mané beat, enquanto movimento, não se efetivou. As parcerias foram se tornando esporádicas, os shows diminuindo. Gringo deixou de apostar no projeto e ninguém tomou a iniciativa de recuperar a idéia do movimento.
No pré-lançamento do vídeo Sete Mares numa Ilha aconteceu uma apresentação coletiva que reuniu seis das sete bandas que estavam envolvidas no projeto. A recuperação da idéia de lutar pela construção de um movimento musical na ilha ficou só na emoção do momento de encontro e no renovado comprometimento que não se realizou. Na prática, as bandas foram individualmente procurando o seu próprio espaço em Santa Catarina e no país. Na época, Dazaranha já se destacava juntamente com Iriê; Phunky Buddha estava em crise com a perda do baterista; Stonkas y Congas se dissolveram; Primavera nos Dentes estava com projetos de se mudar para São Paulo e Tijuqueira batalhava para gravar o seu primeiro CD. Rococó se fundiu dando origem a John Bala Jones que também se destacaria na ilha. A emoção unificadora de alguns eventos específicos se dispersava e não se efetivava na prática de um projeto coletivo. Ao analisar a não concretização do mané beat, Maheirie argumenta:
“Certamente, a emoção, mesmo que por uma causa emancipatória, se dissociada de uma racionalidade que seja compatível e que a leve para a concretização efetiva de práticas que sejam igualmente emancipatórias, carece de sentido e se perde no processo” [14].
Para concluir o diálogo entre o mané beat e o mangue beat, retomamos o modelo de análise proposto para descrever e analisar a concretização dos objetivos do grupo mangue. Diferentemente da dissociação entre emoção e razão prática verificada no mané beat, a montagem do conceito mangue beat foi o resultado da fusão alquímica da intuição mangue de Chico Science com o beat cerebral de Zero Quatro. Os mangueboys estavam prontos e dispostos a realizar os seus propósitos: “diversão levada a sério”.
O ano de 1993 foi o ano do mangue beat. O jovem Paulo André retornava de Los Angeles, Estados Unidos, trazendo na bagagem as últimas novidades do rock americano, e resolve montar uma loja de discos alternativos em Recife. Logo a sua loja se torna um ponto de encontro de diversas bandas que despontavam paralelamente na cena: Paulo Francis Vai pro Céu, Eddie, Câmbio Negro, Devotos do Ódio, Faces do Subúrbio, entre outros. Paulo André, tendo como referência a “cena de Seattle”, resolve organizar um festival com bandas locais para chamar a atenção da imprensa do sul do país. Da desorganização inicial emerge o “produtor”, personagem que estrutura o encontro entre artista e público.
“O Abril Pró-Rock é um fenômeno que emerge junto ao mangue e principia o ciclo dos festivais em Pernambuco” [15]. Conforme tinha projetado, Paulo André realizou a primeira edição do Abril Pró-Rock no dia 25 de abril de 1993 na tenda do Circo Maluco Beleza, apresentando doze bandas das mais diversas influências, incluindo o mangue beat e o Maracatu Nação Pernambuco. Segundo José Teles, “o Abril Pró-Rock foi responsável pela consolidação da cena graças à competentíssima divulgação nacional”. Houve a cobertura do festival nos principais jornais e revistas do sudeste e a vinda do produtor e jornalista Carlos Eduardo Miranda (Bizz e Showbizz), que aderiu à “brodagem” com os mangueboys freqüentando assiduamente a Soparia, bar que abriu espaço para as principais bandas de Recife e de outros estados. Miranda voltou para São Paulo elogiando a cena recifence.
A partir do Abril Pró-Rock, ocorreu uma efervescência de acontecimentos motivada pela “injeção de energia”. A rádio 89 FM, uma rádio rock, se instala em Recife; a cada show aumentava a platéia e surgiam novas bandas ligadas ao estilo mangue, bandas locais gravando “demos” (fitas de demonstração). Em maio, o Jornal do Comércio publica uma matéria em que se arrisca a fazer um balanço de dois anos do movimento, ao mesmo tempo em que anuncia em um bar de grande porte o show Da Lama ao Caos, com a participação de CSNZ, Mundo Livre s/a, Loustal, Cérebro Esquerdo e Eddie. Esse show foi uma “armação” do grupo mangue para arrecadar dinheiro para a primeira turnê que fariam para o sudeste, com datas agendadas em São Paulo (Aeroanta) e Belo Horizonte (Drosophilia). Conseguem o dinheiro das passagens de ônibus com uma fundação cultural do governo do estado; são 48 horas de viagem em uma linha convencional; a mãe de Chico tinha feito alguns sanduíches e os acomodado em uma caixa de papelão. Estava começando a primeira Mangue Tour.
Os mangueboys contavam com a “brodagem” de Xico Sá, jornalista da Folha de São Paulo, e de Carlos Eduardo Miranda, o crítico-produtor que tinha sido conquistado pelo mangue beat. Além dos sanduíches levavam um criativo e estratégico material promocional. O kit-mangue continha camiseta, pau-de-índio (bebida energética composta de raízes, ervas e cascas), um chip colar, uma fita “demo” e um glossário de gírias tiradas de expressões referentes a caranguejos. Os principais jornais deram destaque aos dois grupos, alguns tentando rotular o som do mangue como uma “mistura de guitarras grunge de Seattle com o ritmo Olodum da axé music”. Para duas bandas que mal tinham gravado suas fitas “demo” o fato de conseguir um público de 700 pessoas no Aeroanta de São Paulo superou as expectativas. O que antes poderia parecer mero devaneio tornava-se possível; Jorge Davidson (Warner) e Pena Schmidt, produtores artísticos de gravadoras estavam lá para ver e ouvir o som do mangue. As duas bandas fizeram os programas de televisão Fanzine e Metrópole da TV Cultura e o Programa Livre do SBT. Em Belo Horizonte, onde também acontecia uma cena pop, mais comportada, com Skank e Pato Fu, a recepção foi menos calorosa. Na volta, contatos em Salvador valeram um convite à CSNZ para participar da Festin Bahia.
Em agosto, um novo show em Recife. Toda a diretoria, inclusive o presidente da Sony Music, se deslocam de São Paulo para assistir e contratar Chico Science & Nação Zumbi. A Sony escolhe Liminha, considerado uma ‘máquina de fazer sucesso’ do rock nacional, para produzir o CD de estréia. Paulo André, produtor do Abril Pró-Rock, torna-se empresário de CSNZ a partir do show no Festin Bahia, no qual, fluente no inglês, traduz as entrevistas com jornalistas internacionais, conseguindo um catálogo de contatos de festivais, clubes e produtores de world music. O Mundo Livre s/a toca no III Festival de Inverno de Garanhuns, promovido pelo governo do estado de Pernambuco. Jorge Ben Jor convida-os para participar do seu show para um público de 35 mil pessoas. Seguiram-se apresentações, programas de TV, matérias nos principais jornais, gravações, contatos e consagração: terminava o fundamental ano de 1993.
Dia 17 de janeiro de 1994: depois de ser sondado por várias gravadoras, o Mundo Livre s/a assina com o selo Banguela, de alguns integrantes dos Titãs e distribuído pela Warner. O Jornal do Comércio anuncia a contratação do grupo para a gravação do primeiro CD. Em agosto de 94 acontece o Rec beat, a “segunda invasão nordestina”: doze bandas, incluindo Mundo Livre s/a, aportaram durante três dias no Aeroanta de São Paulo, com apoio da FM Brasil 2000, com direito a entrevistas e inserções na rádio.
O mangue beat estreava em disco entrando nas listas dos melhores do ano. Da Lama ao Caos recebeu a aprovação quase unânime da crítica especializada dos principais jornais do país. Trazia novas informações que não foram bem processadas pelo público em geral, vendendo somente 30 mil cópias. A Sony não priorizou CSNZ no selo Chaos, pois havia contratado também Planet Hemp e Gabriel O Pensador. Samba Esquema Noise, o primeiro disco do Mundo Livre s/a, apresentou um repertório formado por músicas que o grupo vinha tocando em shows nos últimos dez anos de trajetória. Apesar de ter ultrapassado as horas de estúdio orçadas e de ter pecado pelo excesso de participações, o Mundo Livre s/a teve uma acolhida que não teria em uma grande gravadora, e Samba Esquema Noise também foi bem recebido pela crítica e entrou nas listas dos melhores do ano. Com Da Lama ao Caos e Samba Esquema Noise e mais o reconhecimento do Abril Pró-Rock a cena mangue beat estava configurada.
Jorge Cabeleira e o Dia que Seremos Todos Inúteis são em seguida contratados pela Sony; Mestre Ambrósio seria reconhecido com um CD independente produzido por Lenine, que em 93 tinha lançado pela gravadora Velas o seu segundo CD, Olho de Peixe, que alavancaria sua carreira rumo ao sucesso do disco O Dia em que Faremos Contato, de 1997. Logo Mestre Ambrósio também seria contratado pela Sony. A descarga inicial gerou uma cena com mais de cem bandas. A antena mangue beat transmitiu ondas que se manifestaram em programas de rádios, desfiles de moda, mercado pop, bares, festas, festivais, sites, fanzines, videoclipes, filmes, livros, dissertações e muitas outras emanações que iriam constituir uma cena cultural para a cidade do Recife.
Apesar da aprovação quase unânime da crítica especializada, os discos de estréia do mangue beat não conquistaram sucesso comercial e um espaço significativo nas programações das rádios, em uma década marcada pelo domínio da axé-music, do pagode e da música sertaneja. Porém, depois de projetar Recife no cenário nacional, o mangue beat, consciente da sua originalidade e visão global, buscou alternativas e saídas nos aeroportos. Através de contatos com jornalistas internacionais no Festin Bahia, Paulo André conseguiu um catálogo de contatos de festivais, clubes e produtores de world music, articulando a primeira turnê para os Estados Unidos e Europa. Chico Science & Nação Zumbi se apresentam ao lado de Gilberto Gil no Festival Summerstage, no Central Park em Nova York, arrancando elogios do jornal New York Times, que de certa forma antecipou que a alquimia sonora de CSNZ possibilitava “criar algo híbrido capaz de desenvolver um estilo que um dia será reprocessado por outra geração”. A segunda turnê internacional teve a participação de Mundo Livre s/a e da Banda de Pífaros de Caruaru, e foram realizadas cinco apresentações nos Estados Unidos e dez na Europa, com excelentes críticas nos principais jornais e revistas especializadas.
O fato de fazer parte do cast de uma gravadora multinacional, o sucesso de crítica e a repercussão internacional deixaram CSNZ em uma posição mais confortável para o lançamento do segundo CD, Afrociberdelia, em 1996. Já o MLSA sofria as conseqüências de pertencer a um selo alternativo ligado a uma multinacional. A Banguela virou Excelente Discos, que lançou também em 1996 o segundo disco intitulado Guentando a Ôia. Embora repetissem a mesma performance de vendas dos discos de estréia, as bandas do mangue mostravam que tinha vindo pra ficar.
O ano de 1996 foi um grande ano para a expansão do mangue beat, particularmente para CSNZ. Afrociberdelia estava vendendo mais que Da lama ao caos, a segunda turnê na Europa fora um sucesso, Chico se entrosava no meio artístico do Rio de Janeiro, articulava parcerias com Max Cavalera da banda Sepultura e um projeto paralelo denominado Sebosa Soul. Como vimos, a morte abrupta de Chico Science interrompeu um futuro promissor e provocou todos os efeitos analisados que serviram de contexto para situarmos as origens do mané beat.
Ao descrever a consolidação do movimento, podemos perceber que outros sistemas artísticos desenvolviam-se paralelamente quando foi anunciada a cena, fazendo emergir o produtor profissional que passou a estruturar o encontro entre os artistas e o público. O Abril Pró-Rock configurou a cena por meio de uma competente divulgação nacional, atraindo críticos e produtores que foram cativados pela “brodagem” do grupo mangue. A efervescência da cena possibilitou que eles armassem um grande show para arrecadar dinheiro e, com apoio do Estado, viabilizassem a primeira “invasão nordestina” a São Paulo. Com uma estratégia de divulgação e marketing próprios, o mangue conquistou a imprensa, o público e despertou o interesse das gravadoras. O sucesso de crítica dos discos de estréia de CSNZ e MLSA concretizou uma cena cultural para o Recife que se desdobrou em várias manifestações e estimulou a criação e a profissionalização de novas bandas. Não satisfeitos com a conquista de Recife e do Brasil, partiram, como também era a sua proposta inicial, para conectar o som do mangue à “rede mundial” através de duas turnês nos Estados Unidos e Europa, com ótima receptividade do público e da crítica especializada. De uma forma paradoxal, a morte de Chico Science veio a coroar todo esse processo que se iniciara no início da década de 90.
Como já foi indicado na introdução, objetivo deste texto não foi superdimensionar o mangue beat e desqualificar a experiência mané beat, mas refletir sobre os fatores que inviabilizaram a experiência catarinense, tendo como marco comparativo o paradigma de um movimento cultural que se concretizou e que serve de referência para projetos que tenham como objetivo criar uma cena cultural, respeitadas as devidas especificidades e diferenças.
Se considerarmos o conceito de cena enquanto “espaço cultural no qual um leque de práticas musicais coexistem, interagem umas com as outras dentro de uma variedade de processos de diferenciação, de acordo com uma ampla variedade de trajetórias e interinfluências” [16], efetivamente o mané beat não constituiu uma cena, mas um cenário, e, conseqüentemente, não um movimento, mas uma movimentação de bandas que, apesar da intenção de aglutinação, acabaram por se isolar em trajetórias individualizadas, não projetando, até então, Florianópolis no cenário nacional, apesar do destaque regional conquistado por algumas das bandas participantes daquela experiência, em especial, Dazaranha. Como sugere o título da tese de Kátia Meheirie, cuja pesquisa parece ter contribuído para a questão da possibilidade de um movimento musical na ilha, o mané beat não conseguiu constituir um mar para as sete ilhas. De uma certa forma, a não articulação do mané beat acabou por reforçar uma conotação pejorativa do termo, desqualificando a experiência e seu intento de construir um movimento musical em Florianópolis.
“Quem sabe algum dia possa surgir um movimento musical na ilha que se proponha a ser uma linguagem reflexiva-afetiva unificada na diversidade e ambigüidade de sua essência. Que nome seria capaz de articular toda multiplicidade presente no seu interior? Para nós, o importante é que ele contemple uma postura humano-genérica, que seja emancipatória do sujeito, no qual a música seja o fundamental meio de objetivação da sua subjetividade.” [17].
O mangue beat pode ser classificado como um típico fenômeno pós-moderno de hibridismo cultural, caracterizado por uma assimilação da cultura hegemônica decorrente dos processos de globalização, porém de uma forma negociada, resgatando e preservando as raízes de uma identidade regional como forma de resistência ao caráter homogenizador desses mesmos processos. Segundo Leão:
“O consumo de signos estrangeiros não se configura como recepção passiva, despolitizada, mas como apropriação que instaura o espaço da mediação cultural, onde a hegemonia vai ser desafiada” [18].
Em outras palavras, guardadas as devidas diferenças de tempo, espaço
e contexto, o característico procedimento antropofágico de deglutir
as influências estrangeiras, para, ao misturá-las com a identidade
brasileira, criar algo novo capaz de influenciar a própria influência.
Por outro lado, esse tipo de procedimento tão característico
da cultura brasileira, começou a apresentar sinais de esgotamento,
do ponto de vista da indústria fonográfica.
“A mistura de elementos e a releitura de estéticas do passado virou um recurso previsível para artistas que tentam se manter ou adentrar no mercado” [19].
O caráter exótico do hibridismo cultural e a tendência de valorização do excêntrico, periférico e marginal, já não mais constituem novidade e nem despertam tanto interesse na indústria cultural pós-moderna. Efêmera, transitória, e insaciável, ela cria, tão rápido quanto descarta, os novos e velhos modismos expostos nas prateleiras do supermercado global. O que sobrevive vira história.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LEÃO, Carolina Carneiro. A maravilha mutante: batuque, sampler e pop no Recife dos anos 90. Dissertação de Mestrado em Comunicação. Recife: UFPE, 2002.
LIRA, Paula de Vasconcelos. Uma antena enfiada na lama: ensaio de diálogo complexo com o imaginário do Mangue beat. Dissertação de Mestrado em Antropologia Cultural. Recife: UFPE, 2000.
MAHEIRIE, Kátia. Sete mares numa ilha: a mediação do trabalho acústico na construção da identidade coletiva. Tese de Doutorado em Psicologia Social. São Paulo: PUC –SP, 2001.
NAPOLITANO, Marcos. História & Música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
TELES, José. Do frevo ao mangue beat. São Paulo: Editora 34, 2000.