Em 2000, quando completava vinte e cinco anos de fundação, o Grupo Corpo, companhia mineira de dança contemporânea, estreou em São Paulo o espetáculo de mesmo nome: O Corpo.

O Corpo apresentou dois aspectos inéditos em sua constituição: o primeiro estaria referindo-se à presença de letra na maioria das canções de sua trilha sonora, elemento até então predominantemente ausente nas composições musicais de seus espetáculos, e o segundo seria a abordagem da temática urbana, pela primeira vez, mote de uma produção do grupo.

Como ocorre nos trabalhos mais recentes da companhia, o espetáculo é composto por diferentes linguagens artísticas — a linguagem poética, a musical, a coreográfica, a cenográfica, o figurino e a iluminação — que apresentam a mesma relevância em sua constituição e que se inter-relacionam de maneira estreita e intensa para gerá-lo. Estas linguagens estabelecem entre si um percurso de muitos envios, voltas e reenvios que relaciono à imagem de um campo de forças no qual O Corpo está suspenso. As diferentes artes formam uma teia criadora, em que cada elemento, ou arte, ou fio remete a outro e completam-se neste contato.

Neste texto, quero deter-me mais especialmente na sonoridade deste espetáculo, mantendo, contudo, o diálogo constante com as outras artes componentes d’O Corpo, conforme ocorre em sua própria estrutura.

Creio que a trilha sonora do espetáculo sugere que atentemos de maneira especial para três questões que, penso eu, ela traz à cena. A primeira problemática abordada seria aquela que enfoca a concomitância do aspecto material e da capacidade de produção de significado apresentada pelas diversas manifestações artísticas existentes e trazida ao palco por meio d’O próprio Corpo que dança. O diálogo que este Corpo estabelece com as demais linguagens do espetáculo reafirma esta simultaneidade e, nesta discussão, focalizo especialmente sua relação com os elementos melódicos e verbais das canções, que, igualmente, apresentam e reafirmam no espetáculo sua materialidade e capacidade significativa, simultaneamente. A segunda, questão mostra como este Corpo que se inscreve no palco, sofre um auto-apagamento no tempo, estabelecendo-lhe uma condição plural sine qua non para sua existência. Por fim, na relação que se estabelece entre O Corpo que dança e a palavra cantada da trilha musical, procuro mostrar como o espetáculo aborda a problemática do corpo físico individual como elemento pertencente a um discurso hegemônico que lhe determina, mas que, por meio de suas particularidades e de sua criatividade, pode, na dança ou em outras artes, inscrever-se neste contexto maior.

Para que o leitor possa acompanhar melhor minha reflexão, penso ser pertinente descrever, primeiramente, alguns elementos que compõem o espetáculo.

O Corpo no palco

O Corpo movimenta-se num espaço constituído por um número mínimo de elementos. À primeira vista, o cenário compõe-se unicamente da própria estrutura plana do palco, que tem o formato do interior de uma caixa. Porém, atentando-se para ele um pouco mais demoradamente para o espetáculo, percebe-se que este espaço é, na verdade, formado por dois elementos não comumente considerados como pertencentes ao conjunto cenográfico: a iluminação e os bailarinos. O painel que fica ao fundo do tablado constitui-se por spots que se acendem e apagam ao longo de toda a apresentação, enquanto que as cores do espetáculo, por vezes, projetadas sobre o palco, compõem igualmente este conjunto: vermelho, preto e branco, praticamente sem matizes, caracterizam fortemente este Corpo. Nesta medida, a luz transforma-se em cenário e este, em luz.

Os bailarinos em negro são, por sua vez, os únicos elementos tridimensionais em cena. Mostram-se como alicerces cinéticos de uma estrutura cenográfica que é também dinâmica, e que exibe o movimento como um conceito fundamental para o espetáculo. Este modelo cinético configura o espetáculo como uma rede, na qual não se consegue definir o final de uma linguagem artística e o começo de outra, na qual todas se superpõem, interagem e recorrem uma a outra constantemente para conceber O Corpo.

Esta dinâmica, que se caracteriza pela rarefação de fronteiras, evidencia-se, de forma metonímica, igualmente na trilha sonora. A própria estrutura da música d’O Corpo sugere a ausência de separações: são quarenta e dois minutos desenvolvidos como uma peça sinfônica constituída por oito movimentos interligados, que “vão se transformando sem que a gente perceba”, conforme diz o compositor no encarte do CD. (Arnaldo Antunes. O Corpo). De maneira análoga, a trilha musical composta por Arnaldo Antunes mescla, ao longo do espetáculo, influências tão diversas como o rock, o baião, o funk, o techno, a marcha, a balada, o reggae, o samba de roda, a música árabe e a música indígena, para o que se utiliza dos timbres de violão, guitarra, sons processados, percussão, baixo e teclado. Em diálogo com esta diversidade sonora, a coreografia de Rodrigo Pederneiras intercala posturas do balé clássico com movimentos que vão do robótico ao malemolente, reafirmando que a rigidez e a exclusão são procedimentos estranhos a’O Corpo.

A capacidade significativa e a materialidade d’O Corpo que dança

Creio que O Corpo aborda a questão da concomitância da existência da materialidade e da inteligência em si e na sua dança de diferentes maneiras, mas diria que aquela que se apresentaria como mais evidente seria a presença (quase) inédita da palavra em seus espetáculos.

Quando O Corpo põe em cena também a palavra, afirma que a dança não é uma arte muda, como o quer a maioria de suas definições mais tradicionais. O elemento verbal é parte integrante de sua trilha musical. Arnaldo Antunes criou quatro composições especialmente para este espetáculo. A elas, adicionou dois outros poemas de sua autoria, publicados em dois de seus primeiros livros [ 1 ], além de citar um fragmento de Alice através do espelho de Lewis Carroll, cuja tradução foi feita por Sebastião Uchôa Leite. Creio ser interessante lembrar que Antunes já foi descrito como um “homem de palavras” (89 a revista rock), visto que o signo verbal é ponto de partida e fundamento de seu trabalho. No entanto, a palavra não se apresenta apenas como um elemento portador de significado em suas composições, mas como um componente que também destaca e potencializa sua própria materialidade. Nas canções d’O Corpo, a reafirmação desta concretude não se efetiva apenas pela existência de ruídos orgânicos na trilha sonora, que aludiria à possibilidade do próprio corpo que dança produzir significado, como comentarei mais ao final deste texto, mas igualmente pela transformação das palavras e seus fonemas em células rítmica e sonora por meio da qual dançam os corpos dos bailarinos. Como reafirmações, talvez, mais veementes, de sua propriedade material, em três canções da trilha musical, a palavra dissolve-se, dando lugar ao registro sonoro instrumental ou à vocalise. Poder-se-ia dizer que Antunes sugere que não há no signo verbal um elemento apenas semântico, mas que ele também pode dar lugar à indizibilidade, e reiterar suas propriedades materiais.

Ao longo de toda a trilha musical d’O Corpo, a materialidade do signo verbal e, paralelamente a ela, a fisicalidade corporal são intensamente evidenciadas por meio de um processo que se amplia e estabelece uma simultaneidade de referências, reunindo, igualmente, elementos coreográficos, cenográficos, acústicos e semânticos. Nas canções “Momento II”, “Momento IV” e “Momento V”, por exemplo, a respiração constitui-se em célula sonora e forte unidade rítmica que, em certos instantes, conduz a gestualidade dos bailarinos. Ao final do quinto momento, o som das expirações é o elemento que provê a sonoridade por meio da qual se movem os corpos autômatos. No “Momento III” do espetáculo, por sua vez, gritos, golpes de glote e ruídos produzidos por recursos anatômicos da boca são as unidades sonoras que embalam os diferentes solos coreográficos simultâneos executados por cinco bailarinos homens.

A constante reafirmação da materialidade sonora das canções e das palavras que elas apresentam está estreitamente ligada à questão da materialidade d’O Corpo. Creio ser interessante retomar, aqui, leituras de Paul Zumthor e sua referência aos escritos de Giovanni Fontana, que publica no mesmo livro em que Zumthor o cita, Poesia Sonora [ 2 ]. Segundo ele, Fontana, ao discutir o texto sonoro, afirma que a poesia não está somente na palavra articulada pela voz, ou com a voz e na voz, mas igualmente atrás da voz, dentro do próprio corpo, de onde vêm “o canto, os suspiros, os sopros, os arquejos...”. Os ruídos produzidos pela respiração em sua trajetória, gerados pela anatomia deste percurso capaz de prover recursos acústicos ao corpo, são diretamente ligados à vida. Citando a língua dos "Inuit", falado no Canadá, Zumthor explica que uma mesma palavra significa tanto "respirar" quanto "compor um canto" [ 3 ]. A poesia cantada nesta trilha musical, ao apresentar os ruídos do corpo como unidade sonora, reporta-se, simultaneamente, às noções de pulso musical e pulso corpóreo, reafirmando a materialidade que quer dar a ver n’O Corpo do espetáculo.

Poder-se-ia pensar, portanto, com Hans Ulrich Gumbrecht, que há uma nostalgia e um desejo da presença de um corpo tangível e palpável na experiência estética contemporânea [ 4 ] que se ratifica neste espetáculo. Ao retomar, por exemplo, a sugestão de Ângela de Almeida em relação ao painel que fica ao fundo do palco, percebo que, nos primeiros dois momentos do espetáculo, o elemento sonoro reúne-se ao cenográfico para confirmar esta idéia: ele remete primeiramente à imagem da microscopia sangüínea, construída pelos spots que se acendem e apagam continuamente por trás de seu painel. Movimento que simultaneamente reportaria, segundo Almeida, à conformação de um equalizador. [ 5 ] Imagem(ns) que envia(m) à idéia de pulso, aqui, tanto musical quanto sangüíneo, cardíaco que, no palco, como na canção, sob nosso olhar, “ainda pulsa” [ 6 ]. A presença física d’O Corpo exibe-se e reafirma-se no palco continuamente.

Para Gumbrecht, que desenvolve suas reflexões partindo da literatura, a poesia seria uma das linguagens em que estaria mais evidente a nostalgia e o desejo da presença a que me referi acima. Esta vontade ou busca pela tangibilidade da arte está igualmente em questão em todo O Corpo e especialmente em sua trilha sonora, que reforça a materialidade da palavra e da poesia. Seqüências fônicas não lexicais, palavras pronunciadas de maneira ininteligível ou cumulativamente repetidas, (quase) esgotando sua capacidade semântica tornam-se concretude musical. Na canção “Momento III”, o registro da letra pelo ouvinte realiza-se mais eficientemente pela repetição alternada dos finais de versos “de costas”/ “de bruços”, que constroem um padrão rítmico, do que pelas informações semânticas providas pelas outras palavras da composição. Remeto-me igualmente aos “Momentos I” e “II”, nos quais “como”, “antes” e “sim” são vocábulos praticamente indiscerníveis na enunciação do poema e constituem-se em referência sonora para a execução de movimentos. Retomo, especialmente, a palavra “umbigo” que ecoa ao longo do segundo momento do espetáculo, tornando-se destacado elemento rítmico. Exaltação, portanto, igualmente da materialidade da palavra e reafirmação de sua potência sonora.

No entanto, como ocorre na linguagem poética, n’O Corpo, esta materialidade dos vocábulos e, mais especificamente, sua sonoridade, dialogam constantemente com a sua capacidade significativa. Ao referir-se ao painel do fundo do palco, na defesa de minha tese, a Professora Sônia Weidner Maluf sugeriu a imagem do código Braile. Os spots corresponderiam aos pontos que formam as letras desse alfabeto, que só pode ser lido pelo tato, pelo contato físico dos dedos com a textura do papel e pelas marcas de suas diferenças sobre a página. Estas marcas apresentam significado, quando arranjados de determinada maneira, como ocorre com o vocabulário da dança, linguagem que também se constitui como articulada. Se atento, por exemplo, para o primeiro poema apresentado no espetáculo e às palavras que nele se enunciam, encontro uma listagem de quatorze substantivos concretos e dois advérbios que formam, cada um, um verso. No primeiro grupo, destacam-se os componentes do corpo, que constituem um grupo de cinco vocábulos. Talvez por serem os primeiros a serem enunciados, talvez pela repetitividade e veemência com que se pronunciam, são eles que, dentre os outros, fixaram-se mais intensamente em minha memória, remetendo-me, à sua constituição morfológica corporal. Se não considero, neste exato instante de minha análise, os versos que não se reportam às partes constituintes do corpo — “pneu/ pedra/ carro/ ferramenta/ óculos...” —, que poderiam ser lidos como elementos que sugerem uma noção de corpo também como um local em que se registra a experiência cultural, e, muito especialmente, se não considero a tensão que, neste sentido, estabelece vocábulo/ verso “palavra”, localizado na última linha do poema, com os versos que citam elementos anatômicos, o que se percebe imediatamente, numa primeira leitura ou audição, é, mais uma vez, a reafirmação, agora semântica, da fisicalidade deste corpo. Capacidade significativa e materialidade são, portanto, simultaneamente reforçadas nesta canção, quando, as diversas palavras-verso são enunciadas em diferentes canais, em ritmos e tons diversos, de maneira não ordenada, compondo uma trama polifônica. Esta trama ressalta a concomitância dos elementos verbais e das referências semânticas que eles propõem bem como a de suas propriedades físicas — e da fisicalidade do corpo que dança —, na medida em que reafirma a materialidade rítmica e sonora destas palavras-verso.

Como comento nos primeiros instantes deste texto, O Corpo tem movimento e, quando se reflete sobre e se busca seguir o percurso das questões que ele apresenta no palco, segue-se, inevitavelmente, um caminho que apresenta muitas circularidades e muitas dobras, presentes também na estrutura deste texto. Creio que este fato propõe e ressalta a inconsistência de conceitos fechados e estanques. Diria que este espetáculo questiona especialmente a possibilidade de duração d’O Corpo que dança no tempo, por meio de uma noção que permeia as artes performáticas como um todo: impermanência.

A impermanência d’O Corpo que dança

Toda a arte performática traz à cena a problemática da impermanência. O Corpo que afirma e reafirma sua materialidade no espaço, apaga-se no tempo de sua dança.

A certeza da não durabilidade da presença d’O Corpo que dança no tempo, traduz-se, entre tantos elementos, pelo jogo de adensamento e esvaziamento da sonoridade de suas canções. Na mesma medida que diversos movimentos podem ser simultaneamente executados no palco, a música pode apresentar-se constituída por um amontoamento de sons verbais e não-verbais. Ou, de modo contrário, por exemplo, a canção pode esvaziar-se de palavras, que, depois de apresentarem-se de forma abundante e superposta, anunciadas simultaneamente por diferentes canais, ausentam-se de sua execução. No “Momento I”, por exemplo, depois de instantes iniciais em que a palavra encontra-se enunciada por meio de múltiplos canais, caracterizando um amontoamento sonoro na canção, sua superposição passa a ser mais branda a um minuto e quarenta segundos de sua execução até que, aos dois minutos e nove segundos, elas se retiram de cena. Retornam, cinqüenta segundos mais tarde, com intensidade menor e maior afastamento, para, no início do segundo momento, serem substituídas pela sonoridade da respiração e das vocalises femininas, interrompidas, no entanto, pela enunciação de marcada de “umbigo”, cuja audição altera-se pelo incremento eletrônico. A presença e a ausência da palavra na canção tensionam-se, no início do espetáculo, analogamente à presença e à ausência do corpo que dança.

Diria que esta propriedade é também ressaltada pelo sétimo momento do espetáculo, em que três bailarinas dançam em frente a um quadrado branco de luz projetado no painel do fundo do palco e acompanham seu deslocamento sobre ele. Esta projeção compõe uma cena de intenso contraste visual na qual o vermelho em volta do branco apresenta-se, diria eu, mais vivo do que em qualquer outro momento do espetáculo, e em que o negro, nesta única vez, mostra-se sobre o branco. A vivacidade das cores, no entanto, detém-se na área que circunda o quadrado, não se estendendo ao resto do tablado. Neste momento, enquanto a cena propõe uma imagem radiográfica, segundo Ângela de Almeida [ 7 ], a sonoridade da canção é bastante peculiar, com uma característica que, diria eu, poderia ser chamada de “líquida”. Enquanto esta característica reforça uma propriedade fluida, de algo que escorre e esvai-se, junto com o movimento das bailarinas e com seu figurino, neste momento, coberto de franjas, apresenta-se igualmente a vontade ou a necessidade de reter — algo que na dança acontece pela busca do registro — de controlar, possuir a imagem do movimento que se esvai. Se penso na entrada de três casais que ocorre neste sétimo momento do espetáculo, lembro de como os homens entram arrastados, agarrados às pernas das bailarinas. Esta cena poderia sugerir ou pretender a ação de fixar ou prender: fixar no tempo, prender o que é palpável, concreto, não permitir que o movimento (da dança, da vida) siga seu curso. Controlar. Neste momento do espetáculo, fixidez e mutabilidade, que, na dança, encontram-se produtivamente tensionadas, mostram-se claramente como partes integrantes de um mesmo processo.

A busca pela retenção do momento do passo de dança e a necessidade de deter seu fluxo revelam-se igualmente, ao longo do espetáculo, pela repetição tanto de seqüências coreográficas quanto de seqüências sonoras. Neste “Momento VII”, a fluidez do movimento contrasta com a repetição de dois grupos de passos executados pelas bailarinas bem como pela vocalise feminina que se repete por toda a execução da canção. As seqüências melódicas recorrentes, por meio da enunciação vocal ou instrumental, bem como a repetição de padrões rítmicos, acústicos (voz, sons de respiração, instrumentos acústicos) ou eletrônicos, reportam-se à problemática da (im)permanência. Destacaria, especialmente, dentre os elementos acústicos que abordam esta problemática, os elementos verbais. A canção do primeiro momento do espetáculo, por exemplo, apresenta as palavras/ verso “mão”, “pé”, “umbigo”, “pedra”, “carro”, “sim”, continuamente enunciadas, de maneira que as quatro últimas, pela repetição e quase ininteligibilidade, transformam-se em elemento concreto, ou, como discuto anteriormente, sua célula rítmica. Processo similar ocorre com as expressões “de bruços”, “de costas”, repetidas cada uma vinte e três vezes no poema de “Momento III” e enunciadas continuamente ao final de cada verso, o que lhes permite criar um padrão rítmico ou uma expectativa auditiva de seu regresso à vocalização da canção. No último momento do espetáculo, igualmente, a repetição de “o corpo, o corpo, o corpo, o corpo... ” além de instituir a concretude sonora, reafirma a materialidade do significado e quase que solicita a possibilidade de permanência deste corpo que dança.

Esta possibilidade, no entanto, jamais se efetiva e é esta condição que determina a dança como tal. Sua pluralidade poderia propor uma metáfora para a fugacidade e a relatividade dos conceitos.

A dança entre O Corpo e a palavra

Palavra e corpo formam, neste espetáculo, um duo que apresenta uma coreografia com circularidades e retornos e intervêm entre si como se fossem um par de espelhos postos frente a frente, refletindo-se mutuamente.

O Corpo que dança, considerado, durante muito tempo, como uma arte muda e vista por seus próprios teóricos como um elemento não passível de descrição, apresenta-se, aqui, igual e ironicamente embalado pelos vocábulos da trilha musical. Quando se instala uma relação entre a dança d’O Corpo e a palavra poética diferentes tipos de questões e seus desdobramentos vem à cena.

A primeira delas estabelece-se quando o elemento verbal é desmembrado e reagrupado por um sampler ou quando é superposto a outros vocábulos, gerando um efeito polifônico e afastando a possibilidade de constituir-se num componente portador de significado. Ele transforma-se, nestes momentos do espetáculo, em concretude sonora. Como teria sugerido Paul Zumthor [ 8 ], os morfemas transformam-se em “vocemas”, que seriam a “emanação da própria matéria de que somos feitos” [ 9 ]. A palavra, unidade da literatura, considerada pela tradição logocêntrica, em contraste com a dança, como a menos corpórea das artes, tem sua materialidade destacada e valorizada na mesma medida que sua capacidade significativa no espetáculo. Ela se transforma em célula rítmica e sonora e penetra no corpo do bailarino, acompanhando seus passos e tornando-se concreta nos movimentos destes corpos que dançam partindo de sua enunciação.

A citação de Lewis Carrol, traduzida por Sebastião Uchoa Leite, seria um bom exemplo da cirucularidade desta (meta)ironia que se propõe:

“- QUANDO EU DIGO UMA PALAVRA, ELA SIGNIFICA
EXATAMENTE AQUILO QUE EU QUERO QUE ELA
SIGNIFIQUE. NEM MAIS, NEM MENOS.”


Superposto à enunciação do sexto momento d’O Corpo, fragmentado, quase diluído na canção, este fragmento de texto somente se tornará inteligível quando o lermos no programa do espetáculo ou no encarte do CD. Componente que, no palco, apresenta-se como rítmico-musical, mostra-se também como elemento semântico, quando presente sobre o papel, é passível de leitura e compreensão. Nesta medida, enquanto evidencia a materialidade de seus signos verbais, que são células da estrutura sonora de “Momento VI”, do qual esta citação faz parte, ela lhes ressalta o potencial significativo quando se registra na página, ainda que a mensagem lida ironize seu próprio componente semântico.

Quando a integridade da palavra é preservada, os corpos dos bailarinos poderão gesticular em direção aos significados enunciados pelas palavras das canções, apresentando, por breves momentos uma sintaxe mimética, sem que a sintaxe predominante deixe de ser a paratática, na qual o foco coreográfico volta-se para a própria mobilidade e articulabilidade de seus corpos. Seria interessante comentar o terceiro momento do espetáculo, em que se estabelece uma tensão entre a possibilidade dos movimentos coreográficos reportarem-se mimeticamente aos significados das palavras enunciadas na canção e a relação antitética que pode estabelecer com elas. Esta canção fala de um movimento constante do corpo apresentado por versos que variam na alternância de sua finalização, como já dito — “de costas”, “de bruços”. Em determinado instante de “Momento III” da canção, três bailarinas deitadas no chão, durante a enunciação de seis versos, simultaneamente, acompanham e suspendem o que eles dizem: elas se encontram “de costas”, quando este verso é cantado. Nos dois versos subseqüentes, “de bruços” e “de costas”, estão na posição contrária. Nesta oscilação, O Corpo que dança aceita e não aceita remeter-nos a um significado externo e aceita e não aceita ser descrito pelas palavras da canção. Este movimento oscilatório é igualmente reforçado pela linha melódica sobre a qual se enunciam os versos e que se repete em frases similares, cuja característica circular reforçará a idéia de que um elemento remete a outro.

Observando-se mais passo executado pelo dueto Corpo e palavra, creio que seja interessante lembrar que os textos das canções de Antunes parecem ser feitos de carne: ao serem cantados, deixam-nos perceber seu pulso e sentir sua respiração. Igualmente, como ocorre no primeiro e no último segmento do espetáculo, suas palavras constituem-se novamente em elementos semânticos, na medida em que dissecam e descrevem o corpo. Veja-se “Momento I”:

MÃO

PERNA
BRAÇO
UMBIGO
PNEU
PEDRA
CARRO
FERRAMENTA
ANTES
SIM
ÓCULOS
CAMISA
COMIDA
ESPUMA
PALAVRA

A “palavra” aqui, como base da coluna que o poema forma, listando, em grande número, componentes do corpo humano, poderia sugerir que a construção do corpo começa no discurso. Esta problemática, no espetáculo, apresenta alguns desdobramentos, dentre os quais quero comentar dois.

O primeiro dialoga com concepções foucaultianas e refere-se à questão que aborda a formatação dos indivíduos por meio da imposição de um comportamento padrão e disciplinado que determina o corpo individual de acordo com as conveniências do macro corpo social [10]. A crítica da dança, dialogando com e indo além das proposições de Michel Foucault sugere igualmente um processo reverso em que o corpo individual (que dança), dentro mesmo desta estrutura, (re)inventa-se. Penso em momentos do espetáculo nos quais fica claramente exposta tensão estabelecida entre o corpo individual e o corpo coletivo.

O figurino todo em negro do espetáculo reporta-me à idéia de um macro Corpo matriz, de um elemento único maior no qual o corpo individual dilui-se, como se fosse “óleo” — já usado porque escuro — “pra por na máquina do Estado” [11]. Os elementos que compõem este negro corpo coletivo apresentam uma predominância de características comuns que poderiam estar sendo ditadas pela urbanidade à que o espetáculo alude. No oitavo momento, a homogeneidade do grupo de bailarinos é destacada, fato que se determina, dentre outros aspectos, pelo figurino com que estes bailarinos se apresentam: todos os elementos mostram uma formatação uniforme. Vestem simplesmente uma malha preta, sem os adereços que os destacam e diferenciam individualmente em outros instantes do espetáculo.

Os primeiros instantes deste oitavo momento são marcados por um ritmo binário, sonoridade predominante em todo O Corpo. Susan Walker sugere que este ritmo pode aludir ao liga/ desliga ou ao par 0/ 1 da lógica eletrônica do computador [12]. Porém, ele se instala aqui para, logo após, nesta oitava canção, subverter-se com a introdução do ritmo sincopado. Na mesma medida do que se percebe no figurino, na apoteose do espetáculo, há a ruptura da regularidade sonora — o ritmo binário — e um encaminhamento para contrametricidade. O ritmo contramétrico também tensionará a uniformidade imposta pelo grande Corpo matriz. Na verdade, a marcação binária é desafiada, ao longo do espetáculo, em outros momentos em que a música de Antunes inscreve a síncope, cuja origem está na música africana (Neste sentido, é importante sublinhar a reflexão efetuada por Carlos Sandroni acerca da importância da síncope na cultura brasileira, que o musicólogo aborda a partir do termo “paradigma do tresillo”. Este ritmo inscreve-se em toda a música das Américas que tem origem na música africana, caracterizada por uma complexidade rítmica bem maior que a da música de tradição ocidental). [13]

Em outros instantes, a uniformidade do corpo coletivo é desafiada por meio da coreografia e da sonoridade concomitantemente. Retomo, aqui, o quinto momento, no qual bailarinos executam movimentos robóticos uniformes acompanhando a cadência mais lenta determinada por sons de respiração. Pequenas seqüências coreográficas individuais intercalam-se com a do grande grupo, seguindo sempre o ritmo mais acelerado, determinado pela percussão acústica. Desta maneira, os bailarinos marcam sua diversidade em relação ao movimento predominante apresentado pelo conjunto maior e sugerem novamente a tensão que se estabelece entre o corpo individual e o macro corpo coletivo.

No entanto, a impossibilidade de um corpo social homogêneo é afirmada também de outras maneiras e refiro-me muito especialmente à inscrição de uma mescla de referências culturais que se pode ler na gestualidade e na música d’O Corpo. A mistura musical instala-se com fluidez e sem fricção e o espetáculo não somente a apresenta, mas estabelece-na como um elemento fundamental à sua geração. Quando se refere à trilha sonora que compôs, Antunes declara ter buscado uma fusão de ritmos que une “tambor e sampler”, “tribo e urbe”. Combinam-se, nas suas composições, influências vindas das mais variadas sonoridades, como comentei no início deste texto, que são servidas à platéia para serem degustadas à moda típica da antropofagia brasileira. Um ritual antropofágico que estaria se realizando no perímetro urbano, com toda a característica polifônica que apresentam as grandes cidades.

Retomo, por fim, a pressuposição de que o corpo é construído pelo discurso para abordar a questão do gênero no espetáculo e mostrar como O Corpo, mais uma vez, problematiza e subverte as imposições contextuais sofridas pelos corpos individuais. É claro que poderia discutir aqui os duetos apresentados na coreografia e que são de grande interesse para este tópico. Mas como me propus a abordar com especial atenção a sonoridade do espetáculo, será no “Momento VI” que focalizarei minha reflexão. Esta canção, marcada pelo refrão “SEXO CÉREBRO 0 X 0” traz as presenças concomitantes do signo verbal, de vocalises e de uma diversidade de vocemas. No que tange ao próprio signo, apresenta-se novamente a simultaneidade de sua materialidade com sua capacidade significativa, num amontoamento de possibilidades que lembra a imagem da série de quatro poemas caligráficos com (quase) mesmo nome que o refrão da canção — “Cérebro sexo 1”, “2”, “3” e “4” — [14], compostos por Antunes, nos quais as palavras superpõem-se na página.

“Momento VI” é introduzido pela respiração ofegante masculina, acompanhando forte marcação rítmica. A voz masculina, logo a seguir, começa a enunciar o poema da canção. Ela será tanto seguida quanto antecedida pela voz feminina, estabelecendo uma sonoridade que poderia sugerir àquela do diálogo. A, aproximadamente, um minuto e meio da enunciação da composição, as vozes vão tornando-se mais intensas e agudas, bem como mais sobrepostas, até que, trinta segundos mais tarde, a voz masculina apresenta-se por meio de vários canais, para, aos três minutos e trinta segundos mostrar-se totalmente superposta. A voz feminina repete uma palavra não registrada na página, “buceta”. Vocábulos do poema da primeira canção são enunciados concomitantemente às palavras de Momento “VI” e, ao fundo, a voz masculina grita “eu eu eu eu eu eu eu eu eu...” continuamente, num jorro verbal e orgástico, tal qual aquele impresso na página que apresenta os poemas caligráficos que cito acima. A voz feminina, por sua vez, continua a sussurrar “buceta”. Um minuto e meio depois, a sonoridade da canção abranda-se. As palavras se calam, o ritmo desacelera pelo enfraquecimento da marcação binária e pela predominância da síncope, que a seguir se faz acompanhar por sons distorcidos e relaxados do violão acústico. Aos cinco minutos e vinte segundos, então, pode-se ouvir novamente a suavidade da voz feminina num vocalise delicado — quase gemido — que poderia expressar seu gozo, dissincronizado do masculino. A repetição contínua de “buceta” contrasta com a da de outras partes do corpo pronunciadas pela voz masculina, dentre as quais destaco “cérebro”.

Se retomo, então, o refrão da canção, “SEXO CÉREBRO 0 X 0”, leio uma proposição em que o primeiro, aludindo à sexualidade e, portanto, relacionando-se com “buceta”, teria a mesma relevância que “cérebro”, provedor da lógica que dá ao ser humano a capacidade verbal, a palavra, unidade fundamental da tradição logocêntrica e ocidental, na qual “Cristo é Verbo”, e a capacidade da linguagem articulada. O “0 X 0” sugeriria a abolição de hierarquias. Creio que a voz feminina parece reivindicar para si — e este “si” poderia ser tanto a sexualidade como tal quanto também a sexualidade feminina — um estatuto tão digno quanto o de cérebro, suposto órgão onde se guarda a racionalidade, no glossário de nossa cultura.

Penso que O Corpo apresenta-se, portanto, como um espetáculo em que predominam superposições, circularidades e rarefação de fronteiras. Conceitos estanques, rigorosamente separados, sofrem transbordamentos e são igualmente suspensos na teia criadora que gera este espetáculo. A trilha musical traz ao palco esta mesma problemática. Ela estabelece com o campo de forças que concebe O Corpo uma relação metonímica, na medida em que seu componente semântico e sua materialidade sonora tecem entre si uma multiplicidade de percursos e que, como as outras linguagens do espetáculo, inscrevem também n’O Corpo sua condição plural.

Bibliografia

ANTUNES, Arnaldo. Psia. São Paulo: Iluminuras, 1991.

________. As coisas. São Paulo: Iluminuras, 1997.

FOUCAULT, Michel. Discipline and punish — the birth of the prison. New York: Vintage Books. Tradução de Alan Sheridan, 1995.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Production of presence : what meaning cannot convey. Stanford University Press, 2004.

SANDRONI, Carlos. “Premissas musicais”. In: Feitiço decente — transformações no samba do Rio de Janeiro (1917 — 1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, UFRJ, 2001. p. 19 — 37.

ZUMTHOR, Paul. Poesia do espaço — novos territórios para uma nova oralidade”. In: MENEZES, Philadelpho. (Org). Poesia sonora. São Paulo: EDUC, 1992.

________. Introdução à poesia oral. São Paulo: HUCITEC/EDUC. Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Maria Inês de Almeida e Maria Lúcia Diniz Pochat, 1997.

CDs

ANTUNES, Arnaldo. O Corpo. Rosa Celeste, São Paulo: 1998, 1999.

________. Jesus não tem dentes no país dos banguelas. WEA M255878-2, São Paulo: s/d.

TITÃS. Õ blésq blom. BMG 670.9075-A, São Paulo: 1989.

DVD

GRUPO CORPO. Dance theatre from Brazil Grupo Corpo Companhia de Dança. Kultur D2913, New Jersey, 2001.

[ 1 ] Psia, 1986; As coisas, 1992

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[ 2 ] ZUMTHOR, Paul. “Poesia do espaço — novos territórios para uma nova oralidade” In: Poesia sonora — poéticas experimentais da voz no século XX, p. 141

[ 3 ] ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral, p.86

 

 

 

[ 4 ] Proposição apresentada por Gumbrecht no minicurso por ele proferido na PUC do Rio Grande do Sul em outubro de 2005

[ 5 ] ALMEIDA, Ângela. www.grupocorpo.com.br/pt/releases.php

[ 6 ] ANTUNES, Arnaldo. “O Pulso”. In: TITÃS. Ô blésq blom, faixa número 9

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[ 7 ] Op. cit.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[ 8 ] ZUMTHOR, Paul. Op. cit., p.139

[ 9 ] Idem, ibidem. p. 144

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[10] FOUCAULT, Michel. Discipline and punish, p. 128

 

 

 

[11] Palavras de “Desordem”, canção de Marcelo Fromer, Sérgio Britto e Charles Gavin, dos Titãs, gravada no CD Jesus não tem dentes no país dos banguelas WEA M255878-2, São Paulo: 1987

 

 

[12] WALKER, Susan. “Warm flow from Brazil”. In: Toronto Star, 05/ 03/ 2003. Informação retirada da página eletrônica do Grupo Corpo

[13] In: SANDRONI, Carlos. “Premissas musicais”. Feitiço decente. p. 19 — 37

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[14] Os poemas da série Cérebro sexo (1, 2, 3 e 4), de 1998, encontram-se na página eletrônica do autor.

Sonoridades d'O Corpo
Adriane Rodrigues de Oliveira Grey

Doutoranda em Literatura UFSC.
Desenvolveu sua tese sobre o espetáculo O Corpo, produzido e apresentado pelo grupo mineiro homônimo de dança contemporânea. Publicou na REPOM n. 1 o artigo de nome “Folhas Secas: uma análise semiótica”, e no livro de ensaios Poesia e contemporaneidade – leituras do presente (Chapecó: Argos, 2001), o artigo “‘Acordo’: movimento e circularidade na poesia de Arnaldo Antunes”. Publicou também a introdução de sua tese na revista eletrônica Idança.

Grupo O Corpo.