O fato de nossa música popular não fazer parte dos currículos regulares do ensino básico e médio me parece absolutamente surpreendente. Sei, no entanto, que há esforços individuais de alguns professores que, cônscios de que a transmissão do conhecimento não se dá por mera repetição de conteúdos preestabelecidos, muitas vezes “requentados”, mas pela criatividade e absorção de novos métodos e recursos, ainda mais hoje, quando a transformação do saber se dá em velocidade vertiginosa, aqui e acolá utilizam o cancioneiro popular como instrumento didático. Mas isso é insuficiente. Não é possível esquecer que, junto com o futebol, as diferentes formas de celebração do carnaval, a música popular é um dos elementos mais representativos da nossa identidade tanto em nível nacional quanto internacional. É, sem dúvida, um dos mananciais mais ricos de nossa cultura. Por meio dela, podemos nos perceber como cidadãos em uma outra dimensão, a que história oficial não contempla, não grafa. Ela nos singulariza no mundo, nos dá a medida de nossa criatividade múltipla, do calor de nossa afetividade, do sabor de nossos ritmos e do encanto melódico das palavras de nossa língua.

Quem entre nós não tem o calendário afetivo da vida pontuado por canções? Os acalantos da primeira infância, os sons da adolescência, a nossa música, como referência específica de uma relação amorosa, as canções que nos fazem recordar momentos especiais, aqueles versos que despertam percepções desconhecidas montam a trilha sonora de nossa existência e ficarão, para sempre, gravados em nossa memória auditiva.

Acredito piamente que saber ler não se restringe ao exercício de juntar letras e formar palavras. Ler é dar significado ao que nos cerca, é ter uma posição crítica diante da vida, isto é, ter discernimento e estabelecer critérios que norteiem a existência. Ler é, enfim, iluminar a escuridão, metáfora concretizada no anel da normalista com o brilhante incrustado no ônix.

A cada dia, me certifico que não devemos ficar desatentos aos sinais que se nos apresentam cotidianamente. Um acontecimento recente é um bom exemplo a ser decodificado como sinal de que novas perspectivas se vão delineando com relação ou que se entende por cultura em nosso país. Refiro-me à nomeação de Gilberto Gil para o Ministério da Cultura em um governo que representa um divisor de águas na história republicana brasileira, já que, pela primeira vez, um operário ocupa a presidência no lugar de um representante da elite como acontecera até então. Um cantor e compositor popular negro como Ministro da Cultura significa, minimamente, um avanço substancial da concepção de patrimônio cultural entre nós.A música popular, ao estar representada na figura do ministro compositor-cantor, passa a ser oficialmente considerada como um bem cultural relevante.

Para que não haja dúvida sobre o segmento aqui tratado e com o intuito de sublinhar a imensidão do universo da música brasileira, recorro à classificação da etno-musicóloga Oneida Alvarenga [ 1 ], discípula dileta de Mário de Andrade, que a divide em sete categorias: danças dramáticas, danças não-dramáticas, música religiosa, cantos de trabalho, danças infantis e jogos, cantos puros e música popular urbana. É, portanto, esta última categoria o foco de interesse do presente ensaio.

Somos uma gente musical por excelência. Nossa fina mistura étnica recria e amalgama a musicalidade do colonizador português, do escravo africano e do aborígine. Não nos esqueçamos que os colonizadores em pouco tempo perceberam a importância da música no contexto cotidiano dos índios e, rapidamente, tiraram proveito dela, associada a jogos dramáticos, para catequizá-los, impondo-lhes sua ideologia. Dos índios herdamos uma série de instrumentos musicais como chocalhos, tambores e diferentes modalidades de flautas. Quem primeiro registrou a música indígena brasileira foi Jean de Léry (1534-1611), pastor calvinista e escritor francês que veio na tripulação de Villegaingon e aqui viveu entre os anos de 1557 e 1558.

Ary Vasconcelos [ 2 ] observa que, de Portugal, recebemos todo o sistema harmônico tonal que é o próprio fundamento de toda a música do Ocidente. A maioria esmagadora dos textos e temas literários veio igualmente da Corte, tal como uma infinidade de cantos tradicionais lusitanos. A sincopa (ou síncope) também é contribuição portuguesa que aqui foi aprimorada com a ajuda dos negros. Vieram também muitas danças como a roda infantil, as danças dramáticas como o Reisado, Pastoris, a Nau Catarineta e até mesmo as danças do boi que aqui se aclimataram, ganhando feição brasileiríssima. As formas líricas como a moda, o acalanto e o fado são também de origem lusitana. Entretanto, esta relação de contribuições não estaria completa sem os instrumentos que os portugueses aqui introduziram. Com os colonizadores vieram o violão, o cavaquinho, o bandolim, violino e os outros instrumentos de corda. Vieram também o piano, o cravo, a sanfona,o triangulo, o pandeiro e toda série de instrumentos de sopro.

Os negros, chegados ao Brasil em 1538, para o trabalho escravo nos engenhos da capitania de São Vicente, hoje São Paulo, não só trouxeram sua riquíssima contribuição musical por via direta da África, como também via Portugal, uma vez que o colonizador já os escravizava desde meados do século XV.Portanto, não é absurda a hipótese de que tenhamos herdado um segmento da música negra um tanto aportuguesada. A variedade de tribos e nações escravizadas não nos permite estabelecer com precisão de que parte do continente africano é esta ou aquela contribuição. Para ficar num pequeno exemplo, basta lembrar aleatoriamente, que entre dezenas de danças africanas, incorporamos em nosso repertório o jongo, o coco, o batuque, o caxambu, o lundu, o maracatu, o quebra-bunda, a umbigada (depois semba ou samba), o sorongo e por aí vai. A questão da dança ganha importância em nossa música na medida em que o elemento coreográfico, a manifestação corporal, revela de forma substancial a influência negra.Quando nossas danças populares não denunciam diretamente sua origem africana, por terem sido importadas da Europa e de outras regiões, passam a ter, em contato com o nosso negro, um outro caráter, de marcante sensualidade.

Quanto ao instrumental, é imensa a contribuição africana, especialmente no que se refere aos instrumentos percussivos tais como chocalhos, tambores e outras formas instrumentais que só de pronunciar o nome já nos dá a sensação de estar “levando um som”: agogô, reco-reco, caxixi, marimba, atabaque, zabumba, cuíca, cucumbi, berimbau, rum, rumpi, zambelô.
Não é necessário ser um ás da criatividade para com o material até aqui apresentado se preparar algumas aulas com “temperos” diferenciadores. Basta propor a pesquisa de alguns dos instrumentos citados, propor a reconstrução deles com material reciclável, ou mesmo sugerir que cada membro do grupo mimetize o som do instrumento, reproduzindo-o vocalmente. Pode ser extremamente estimulante, através da música, propor ao grupo de estudantes a construção de uma cena do Brasil colonial em que participem brancos, negros e índios. Tenho certeza que não haverá melhor oportunidade de observar e trabalhar os conceitos e preconceitos ideológicos existentes sobre o relacionamento das três raças nos primeiros momentos de formação do país.

Sabe-se que, nos dois primeiros séculos de colonização, a música tocada ou cantada no Brasil era importada ou já em franco processo de caldeamento, sendo anônima ou folclórica. Ainda que se diga que o Padre José de Anchieta, no século XVI, tenha composto alguns cateretês, é o poeta satírico Gregório de Matos Guerra (BA, 1623-95) que se pode denominar de o primeiro letrista-compositor popular brasileiro. Conhecido como o Boca do Inferno, em virtude de seus versos críticos e malcriados, as partituras de seus lundus e modinhas não chegaram até nós. Porém, pela estrutura dos textos, pela presença das repetições, até mesmo pelo tamanho dos poemas (letras) se pode observar tratarem-se de versos para serem acompanhados por música. Junte-se a esse dado o fato do poeta ser um bom tocador de viola.

É a partir de 1780 que começa a surgir um número representativo de compositores de lundus e modinhas, sendo esse, portanto, o período que os estudiosos identificam como do nascimento da música popular. Adverte-nos, ainda uma vez Ary Vasconcelos [ 3 ], “não passemos, entretanto, adiante, sem anotar que, já a partir de meados do século XVIII, existia a “música dos barbeiros”, verdadeiros conjuntos instrumentais integrados por negros escravos que tinham aprendido música e o ofício de barbeiro”. É dessa formação que se vai originar, mais tarde, um movimento musical de grande importância entre nós: o choro.

Domingo Caldas Barbosa é o primeiro nome de alguém que fez, comprovadamente, música popular brasileira. Éramos ainda colônia e Caldas Barbosa [ 4 ] destacava-se como compositor de belas modinhas e lundus. Por volta de 1763, ele vai morar em Portugal, onde se tornou padre, passando, em pouco tempo, a deliciar a nobreza do Reino com suas canções. Enquanto Caldas Barbosa diverte a corte além mar, aqui se dançam e se cantam também lundus e modinhas e outras danças como a cachucha e a fofa.

Com a vinda da corte no início do século XIX, houve um grande desenvolvimento na colônia em todos os campos, a música não ficaria de fora, como se pode comprovar lendo, por exemplo, as deliciosas páginas de Memórias de um Sargento de Milícias, romance de Manuel Antônio de Almeida [ 5 ] , que retrata de forma primorosa o dia-a-dia do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX. Há algumas passagens da obra, publicada na forma de folhetim no Correio Mercantil, entre 1852/53, antes de sua publicação em livro em 1854, em que são descritas detalhadamente tanto a presença do fado quanto a de ranchos de baianas que caminhavam adiante das procissões e “dançavam nos intervalos dos Deo-gratias uma dança lá a seu capricho”, revelando a tenuidade das fronteiras entre o sagrado e o profano e os diferentes segmentos sociais nas festas religiosas coloniais.

É importante registrar que, na bagagem da corte real, vieram os primeiros pianos para o Brasil. Em 1811, desembarca em nossas terras o mais prestigiado compositor do reino, Marcos Portugal que aqui encontrará o grande rival de sua vida, o Padre José Maurício, o maior músico brasileiro de sua época, que produziu imensa obra sacra e deixou como legado para música popular a modinha Beija a Mão que me Condena, publicada pelo editor Pierre Laforge em 1837. Não esqueçamos que data de 1831, nove anos após a independência, a canção patriótica de Francisco Manuel da Silva, com versos de Osório Duque Estrada, que foi alçada à categoria de Hino Nacional Brasileiro.

A segunda metade do século XIX é de suma importância para a música popular. É o período em se fixam ritmos como o maxixe e o lundu, destacando-se o compositor Xisto de Paula Bahia como um grande representante do último gênero; em que se sobressai no cenário musical a figura de Carlos Gomes, compositor de óperas como O Guarani e de inúmeras modinhas de grande aceitação popular. Na década de 70 do século XIX, nasce “ainda como um jeito brasileiro dos conjuntos à base de violões e cavaquinhos tocarem os gêneros dançantes europeus em voga na época, o choro que acabaria por se impor como um fascinante gênero musical” [ 6 ] , desfrutando, desde logo, da colaboração de sucessivas gerações de músicos exponenciais do nosso cancioneiro. Da fase de fixação do gênero, ou seja, da primeira geração de chorões, são representativos o flautista Joaquim Antônio da Silva Calado Júnior, conhecido como Calado Júnior, Viriato Figueira da Silva e Francisca Hedwiges Gonzaga, a popularíssima maestrina Chiquinha Gonzaga. É de sua safra o choro imortal, composto em 1897, O Corta-jaca, e a composição considerada como a primeira música do carnaval brasileiro, Ô Abre Alas, encomenda do Cordão Rosa de Ouro para o carnaval de 1899.

Quanto à origem do termo choro, há controvérsias. Câmara Cascudo defende a versão divulgada por Jacques Raimundo de que a palavra teria sido grafada com ch quando o gênero chegou à cidade, estando sua origem nos bailes realizados pelos negros nas fazendas, em épocas como São João, chamados xolo, e por confusão com a parônima portuguesa, passou-se a dizer xoro e posteriormente passou-se a nova grafia. José Ramos Tinhorão defende a teoria de Lúcio Rangel que entende que a expressão vem da impressão de melancolia que a repetição de esquemas modulatórios nos tons graves do violão, as baixarias, seriam as responsáveis. Já Ary Vasconcelos sustenta a tese que a designação deriva de choromeleiros, corporação de músicos de importante atuação no período colonial. Eram músicos que além de executarem a charamela, faziam uso de outros instrumentos de sopro.

Outro compositor que não podemos deixar de mencionar como destaque na passagem do século XIX para o XX é Ernesto Nazaré que, além de choros, compôs valsas, tangos, polcas, deixando um patrimônio musical de duas centenas de belas canções.
O século XX é próspero em chorões como Anacleto Medeiros, Patápio Silva, João Pernambuco, Zequinha de Abreu e aquele que deixaria sua marca para as gerações vindouras: Alfredo da Rocha Viana, o mestre Pixinguinha.

A partir do choro, pode-se traçar um verdadeiro mapa histórico de nossas origens e da forma como a cultura brasileira guarda em sua estrutura a marca da miscigenação que nos caracteriza. Em última análise, o choro é uma forma de tocar instrumentos que se transformou num gênero musical eminentemente brasileiro, em que as sonoridades eruditas dialogam de igual para igual com as populares.

Um campo fertilíssimo para estudo e que desperta grande interesse é o carnaval. Devido a imensidão que o tema abarca, limito-me a pontuar alguns aspectos que julgo provocantes. Em primeiro lugar, é mister lembrar que a festa tem origem em tempos imemoriais se quisermos considerar no âmbito das celebrações carnavalescas as comemorações de fertilidade, plantio, etc. As celebrações da fartura, das colheitas, remontam aos nossos antepassados primitivos. Sabe-se que o ritual fazia parte da cultura egípcia, que entre os gregos eram as festas dionisíacas, entre os romanos as bacanais e lupercais, e que entre nós, antes de ser o carnaval que conhecemos hoje, a festa chamava-se entrudo. Foram os imigrantes ilhéus da Madeira, Açores e Cabo Verde que o introduziram aqui no século XVII. Esse tipo de comemoração se dava tanto nas ruas, quanto domesticamente. Era mais uma guerra que uma festa. Jogavam-se limões de cheiro, espargiam líquidos, nem sempre perfumados, de grandes bisnagas de flandres, além de talco e pó de mico. Durante esse período, que vai até o início do século XX, não havia música no carnaval. Executam-se as músicas de sucesso do teatro de revista e as canções mais populares. Havia também as batucadas dos blocos e cucumbis de origem africana e os bumbos ensurdecedores dos Zé Pereira de origem portuguesa. Havia também o desfile das Grandes Sociedades com seus carros alegóricos e o desfile do corso em automóveis abertos e dos ranchos, agremiações que deram origem as hoje internacionalmente conhecidas escolas de samba.

É a partir de 1917, com a gravação de Pelo Telefone, composição coletiva registrada por Donga, como de sua autoria e sendo o primeiro registro do gênero samba, que se começa a compor regularmente para o carnaval.

No Brasil a festa ganha caráter plural apresentando formas diferenciadas como o frevo pernambucano e o trio elétrico baiano.

O que o segmento carnavalesco de nossa música popular registra de forma primorosa é toda uma crônica política, social e cultural que, muitas vezes não está contemplada pela literatura. Isso se dá especialmente nas marchinhas, gênero em voga até os finais dos anos 60 do século XX. No livro de Edgar de Alencar [ 7 ] sobre a música do carnaval carioca há centenas de exemplos de crônicas, sociais e políticas que retratam de forma primorosa o cotidiano do Rio de Janeiro, a capital federal de então.

A história da nossa música popular se confunde com a da radiodifusão entre nós. A primeira estação de rádio foi inaugurada no Brasil em 1922, por ocasião das comemorações do centenário da independência. A radiodifusão comercial se inicia em 1923, com a fundação da Rádio Clube de Pernambuco e toma impulso com a inauguração da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. O projeto inicial era educar pelo rádio. Efetivamente, com nossa musicalidade inerente, tornamo-nos uma gente que “aprendeu de ouvido” e, posteriormente, com o advento da televisão, tornamo-nos uma gente áudio-visual por excelência. Com o desenvolvimento da radiodifusão aliado aos novos processos de gravação fonográfica, a música popular atinge todas as camadas da população. Com o passar dos anos, até meados de década 60 do século passado, havia uma nítida divisão entre a música de meio de ano (os diferentes ritmos executados no rádio) e a música carnavalesca; marchinhas e sambas que reinavam absolutos a partir do mês de novembro, divulgando os sucessos do carnaval vindouro.

Nas duas primeiras décadas do século XX, o samba vai ganhando feição própria nas regiões da Saúde, da Gamboa, da Cidade Nova, e Praça Onze, centro do Rio de Janeiro, para onde migravam as famosas tias baianas quituteiras e festeiras que reuniam em suas casas tanto músicos quanto devotos praticantes dos rituais religiosos afro-brasileiros, sendo Hilária Batista de Almeida, conhecida como Tia Ciata, a mais renomada delas. Desnecessário dizer que as reuniões promovidas pelas tias não desfrutavam da simpatia das autoridades, o que fazia com que fossem, muitas vezes realizadas clandestinamente. Esse aspecto, aliás, talvez até lhes conferisse maior sabor e poder de sedução. Foi nesse ambiente que surgiu Pelo Telefone, cujos versos iniciais evidenciam a necessidade da autorização policial para a promoção dos encontros musicais: “O Chefe da polícia/ pelo telefone/ manda me avisar”. Foram músicos do calibre de Pixinguinha, Donga, Heitor dos Prazeres e Sinhô os responsáveis pela fixação do samba como gênero, um híbrido do maxixe, do lundu, da polca. A partir daí, o samba ganharia fisionomia própria em sua multiplicidade de expressões como samba enredo, samba exaltação, samba de embalo, samba canção, partido alto, bossa nova, pagode, etc. Os responsáveis por essa variedade de formas são compositores como Ismael Silva, Marçal, Noel Rosa, Cartola, Ary Barroso, Dorival Caymmi, Wilson Batista, Geraldo Pereira, Ataulfo Alves, Zé Keti, Chico Buarque, Tom Jobim e tantos outros que, se fosse enumerar a totalidade não conseguiria terminar esse texto.

A proposta de um trabalho que envolva a vida e a obra de nossos compositores pode render resultados surpreendentes. Vejamos por exemplo Noel Rosa. Quem melhor que ele retratou o Rio de Janeiro ou fez a crônica da cidade dos anos 30 do século XX? Nossa crônica literária, no sentido canônico,do período, se enriquece quando se incorpora a voz do poeta da Vila. Ele é o responsável pelas imagens poéticas da cidade que começa a se verticalizar, a se industrializar, a ganhar ares de metrópole moderna, onde se ouve o “apito da fábrica de tecidos”. Quem melhor que Caymmi constrói o cenário mulato praieiro e indolente da Bahia, transformando-a numa espécie de paraíso idealizado do cancioneiro popular? Quem melhor que Wilson Batista e Geraldo Pereira esboça o perfil do malandro, do morro e da vida boemia carioca? Quem melhor que Ary Barroso exalta as riquezas e a exuberância do Brasil em sambas do período da era Vargas? Quem melhor que a parceria Tom Jobim e Vinícius de Moraes foi capaz de eternizar a beleza da mulher brasileira metonimizada na figura da Garota de Ipanema “num doce balanço a caminho do mar”?

Mas nem só de samba se faz nosso cancioneiro. Os diversos ritmos nortistas e nordestinos que tem em Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, como maior referência, retratam a vida dura do sertanejo, da população marginalizada na forma de xotes, xaxados, marcatus, emboladas, calangos, carimbos, cateretês, maracatus, etc. Inúmeros compositores trabalharam essas sonoridades como Catulo da Paixão Cearense, Jackson do Pandeiro, Zé Dantas, Humberto Teixeira, João do Vale, Hervê Cordovil. Capiba eterniza o frevo, gênero urbano, nascido nas corporações de trabalhadores do Recife (Vassourinhas, Carvoeiros), até os contemporâneos Chico Science, com seu Mangue Beat, que faz a ponte entre a tradição da sonoridade do maracatu com a música eletrônica, ou o Grupo Cordel do Fogo Encantado que, com um acompanhamento percussivo de peso, mistura a lírica dos poetas de cordel com a força da voz dos cegos cantadores das feiras, sempre em tom profético.

Uma coisa é certa, para crianças e adolescentes serem convocados a desfrutar dos “en-cantos” da lírica, o professor tem que estar atento ao que acontece no mundo. Não pode se posicionar de forma preconceituosa, achando que seus valores musicais é que são os corretos. Esta é a postura dos que chamei de analfabetos no início desse texto. Se a realidade dos meninos é o funck e o hip-hop que se vá buscar nesse contexto elementos para trabalhar, analisar, discutir. Existe material mais rico para se discutir a violência urbana que essas letras que falam de exclusão, marginalização, falta de oportunidade no mercado de trabalho competitivo? Vale lembrar que essas expressões musicais nada mais são que a forma contemporânea do que se chamou nos idos dos anos 70 do século XX de música de protesto e elas são crônicas também.. Em plena ditadura militar, em que uma censura impiedosa cortava versos de canções, textos teatrais, e proibia a circulação de livros, as canções, lançadas nos festivais televisivos, representavam, para a juventude da época, a tábua de salvação, o oxigênio libertário que faltava por toda parte, liam-se entrelinhas, decodificavam-se metáforas com a curiosidade de quem caça tesouros.

Certamente que trabalhar as letras de protesto pode dar ao jovem estudante uma nova perspectiva do período da ditadura militar, especialmente se for estabelecida uma comparação com o que se canta hoje no funck e no hip-hop. Por meio do estudo comparativo o jovem poderá chegar a suas próprias conclusões sobre temas como regime democrático e ditatorial, formas diversificadas de violência, abuso de poder, paz, respeito ao próximo, vida em sociedade, etc.
Um bom exemplo de música de protesto, do tempo dos festivais a ser estudada com os alunos é o Sabiá de Tom Jobim e Chico Buarque. Ela é exemplar na medida em que estabelece o diálogo com a tradição lírica literária, isto é, os parceiros, Tom Jobim e Chico Buarque, fazem uma paráfrase do famoso poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias. Lendo-se os dois textos e comparando-os pode-se perceber a visão romântica de exílio do poeta maranhense que canta as belezas de sua terra do estrangeiro e a dura realidade dos parceiros que, da terra, se vêem em permanente ameaça de se exilarem para não serem presos. Com o gancho da Canção do Exílio matriz, o professor pode fazer um longo caminho pela poesia brasileira, mostrando como o poema foi sendo re-trabalhado por inúmeros poetas em diferentes períodos, ora sendo parafraseado, ora parodiado, como fizeram Oswald de Andrade, Mario Quintana, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade e tantos outros.

Já é chegada a hora de trazer à luz se as letras da canção popular brasileira podem ser ou não ser incluídas no nosso cânon lírico. Em minha opinião, não á dúvida. Temos não só uma vasta produção tanto em qualidade quanto em quantidade. Não é o fato de estar impresso na página de um livro que garante que um poema é superior que uma letra de canção. Costumo dizer que um poema e uma letra são formas líricas específicas. O poema seria uma partitura para os olhos, enquanto a letra é uma partitura para os ouvidos. Além de tudo, antes de terem vida própria, isto é, independerem da música, os poemas se faziam acompanhar dela. Não é por outra razão que chamamos de lírico o gênero poético. Desde a antiguidade a poesia era musicada e o foi até o desenvolvimento da imprensa do final da Idade Média. Basta lembrar que deste período, a mais forte referência poética que temos é a dos trovadores, poetas que perambulavam pelas cidades, vilas e burgos cantando versos de amor, acompanhados de seus alaúdes.

A melhor prova do elo entre a tradição letrada e a canção popular me parece estar na opinião do grande poeta modernista Manuel Bandeira que, perguntado por um repórter qual era o mais belo verso da poesia brasileira, respondeu sem hesitar: “tu pisavas os astros distraída”, verso da canção Chão de Estrelas de Orestes Barbosa.

Ainda da época dos festivais, mais precisamente, no Festival da Record de 21 de outubro de 1967, em São Paulo, são apresentadas, pela primeira vez, ao grande público, as duas canções inaugurais do que mais tarde denominou-se Tropicalismo. As canções são Alegria, alegria de Caetano Veloso e Domingo no Parque, de Gilberto Gil.

Cabe ressaltar que a realização dos festivais incendiou a gélida mídia televisiva. Os remanescentes da bossa nova e seus seguidores, já acantonados no espaçoso rótulo de MPM (Música Popular Moderna), tinham o programa apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, O Fino da Bossa, título retirado de um show de teatro e depois encurtado para O Fino. As tardes de domingo ganharam a Jovem Guarda, programa pilotado pelo Rei (Roberto Carlos), pelo Tremendâo (Erasmo Carlos) e pela Ternurinha (Vanderleia). Era o espaço do então chamado iê-iê-iê, que aclimatava na nossa cultura o rock e o pop internacionais. Enquanto a turma da MPM tinha como audiência a “estudantada do protesto e das passeatas”, a Jovem Guarda fazia delirar os jovens das camadas de pequeno poder aquisitivo: “a juventude alegre e sadia”, segundo a visão do governo militar de então.

É precisamente na fissura entre esses dois públicos que surgirá, no II Festival da Record, o grupo dos tropicalistas. Para eles as arenas eram todas, preferivelmente o programa do Chacrinha, o Velho Guerreiro, que muito antes dos rótulos, era um tropicalista pré-histórico: transformava o estúdio televisivo em um autêntico picadeiro circense, de onde atira melancias e bacalhaus no público presente, vestido nas mais inusitadas fantasias.

Os jovens baianos Caetano Veloso, Gilberto Gil, José Carlos Capinam e Tom Zé, junto com o piauiense Torquato Neto, vivenciaram a radicalidade das transformações, no âmbito da cultura e do comportamento, provocada por fatos como a inauguração de Brasília, a guerrilha cubana – simbolizada pela emblemática figura de Che Guevara -, o assassinato de John Kennedy e de Luther King, a guerra do Vietnam, a explosão musical dos Beatles, os movimentos negro, feminista e hippie, o cinema de Jean Luc Godard e o Cinema Novo, Woodstock, o zen-budismo, drogas-sexo-rock and roll, a queda de Salvador Allende, todas as ditaduras militares latino-americanas, AI-5, milagre brasileiro, censura, desbunde e muita, muita repressão.

Pode-se afirmar que são os tropicalistas que sinalizam pela primeira vez, e de forma impactante, os pressupostos estéticos que viriam a ser identificados como característicos do contemporâneo ou pós-modernismo. Como em um caleidoscópio, as imagens por eles produzidas iam-se misturando e remontando em combinações aparentemente aleatórias: passado e presente misturavam-se; tudo o que um dia existira poderia ressurgir em um novo contexto. É o que se sente, de imediato, nos estilhaços de informação de Alegria, alegria, de Caetano Veloso, um mosaico pop concebido não segundo a linearidade gutemberguiana, mas disperso como um fliperama ou as imagens da TV:

O sol se reparte em crimes
Espaçonaves guerrilhas
Em cardinales bonitas
Eu vou /.../
Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome sem telefone
No coração do Brasil

O grupo lançava mão de uma linguagem pulverizadora, da aproximação da problemática cotidiana com a nacional ou a internacional, da enumeração caótica. Caracterizava, assim, um processo de desconstrução, mostrado na visão alegórica do país através de contrastes e assincronias (arcaico / contemporâneo; local / universal; cosmopolita / regional; urbano / agrário), bem como a recuperação de sentimentos atávicos que filtravam os acontecimentos do período.
A associação com Julio Medaglia e Rogério Duprat, maestros eruditos de vanguarda, fez do movimento uma ponte entre dois universos até então distantes no âmbito musical brasileiro: o popular e o erudito. A música passa a misturar elementos tão díspares como guitarra elétrica, berimbau, instrumentos acústicos e percussivos tradicionais, além de introduzir ruídos como sonoridade musical, como se observa na introdução de Domingo no Parque.

Nos figurinos, no comportamento e movimentação cênicos, na distorção dos sons eletrificados, nas palavras e versos aparentemente sem nexo, nas sonoridades e estruturas melódicas incomuns na música popular, estava presente a visão irônica e crítica. Um país subdesenvolvido, tentando engolir a tecnologia e a contracultura dos países desenvolvidos e, ao mesmo tempo, não podendo encobrir a fome, a doença e o analfabetismo crônicos de um povo descamisado.
Os tropicalistas tanto estabelecem relações com o Cinema Novo de Glauber Rocha, de onde buscam inspiração visual, quanto da leitura de José Celso Martinez Corrêa, com sua encenação de Rei da Vela, de Oswald de Andrade. Absorvem a expressão corporal introduzida no Brasil pelo dançarino e coreógrafo americano Lennie Dale. Outro campo de expressão artística que o tropicalismo busca associação é das artes plásticas, especialmente, através das obras de Hélio Oiticica e Rubens Gerchman. Escusado é dizer a influência dos poetas concretos, em especial, Augusto de Campo, avalista do movimento, no calor da hora.

Este é um campo fértil para todo o tipo de associação e proposta de trabalho em sala e de pesquisa em bibliotecas ou em casa. Afinal, o tropicalismo é o último grande movimento de vanguarda ocorrido entre nós, trazendo como novidade o fato de ter como espaço de apresentação os meios de massa e de reunir diferentes expressões artísticas em sua produção. A partir do estudo da produção do grupo, todos os caminhos se abrem, na medida em que, no âmbito de nossa musica popular, foram eles que abriram passagem para os que os sucederam com o Os Novos Baianos que misturaram samba de regional com roque; a vertente chamada de “Roque Brasil”;os “Sertanejos Pop”, os timbais de Carlinhos Brown, e a moderna música baiana. O que é fundamental ter em mente é que todo o tipo de música que despertar o interesse dos alunos é a chave do caminho. É atiçando a curiosidade deles que o professor chega aos seus objetivos, basta não se satisfazer em ser um mero repetidor, como um papagaio, de conteúdos programáticos “bolorentos”, mas alguém que imprime uma marca pessoal na sua atividade. Talvez o melhor ponto de partida seja se perguntar quais são as canções que constroem o seu próprio calendário afetivo e o que essas canções trazem de recordação. Quando a gente se conhece é capaz de transmitir experiências, basta se disponibilizar para isso.

[ 1 ] ALVARENGA,Oneida. Música popular brasileira. Porto Alegre: Ed. Globo, 1950.

 

 

 

 

 

 

[ 2 ] VASCONCELOS, Ary. Raízes da Nossa Música. Brasil Musical: viagem pelos sons e ritmos populares. Rio de Janeiro: Art Bureau s/d p.22-42

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[ 3 ] Op.cit. p.48

 

 

[ 4 ] Domingos Caldas Barbosa era conhecido também como Lereno (Lereno Selinuntino) nome recebido na Arcádia de Roma de que fazia parte. Ele foi um dos fundadores e presidente da Academia de Belas Artes de Lisboa. Sua obra reunida sob o título de Viola de Lereno encontra-se em edição da Civilização Brasileira em convênio com o INL Rio/Brasília, 1980.

[ 5 ] Manuel Antônio de Almeida foi , além de médico, escritor, poeta, jornalista e professor de geometria, diretor da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional. Um dado curioso de sua biografia é ter sido, junto com José de Alencar e outros intelectuais, fundador da primeira Grande Sociedade que se tem notícia no carnaval carioca, em 1855. O nome do préstito revela a pompa da folia: Congresso das Sumidades Carnavalescas.

 

 

 

 

[ 6 ] Op.cit. p.98

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[ 7 ] ALENCAR, Edgar de. O Carnaval Carioca Através da Música. Rio de Janeiro/Brasília: Francisco Alves/INL-MEC, 1979.

No Beabá da Canção: Ensino e Música Popular
Fred Góes

Professor Doutor junto ao Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. Compositor-letrista e Membro do Conselho de Cultura do Estado do Rio de Janeiro.