2008 é um ano emblemático para a cultura brasileira. Nele comemoramos dois centenários de grande importância para nossas artes: o de morte do escritor Machado de Assis e o de nascimento do sambista Angenor de Oliveira, o mestre Cartola. Para os discursos de nossa representação cultural, o ano, portanto, sugere um marco cronológico no ambiente artístico nacional ao simbolizar uma “passagem de bastão” da cultura letrada, sintetizada aqui na figura do fundador da Academia Brasileira de Letras, para a cultura popular, amalgamada no compositor mangueirense. É nesta perspectiva que, por sinal, podemos ler/ver o início de Cartola – Música para os olhos, documentário dos diretores pernambucanos Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, ao mostrar a cena de um microfone percorrendo uma caveira, não por acaso retirada do filme Brás Cubas de Júlio Bressane. 
Concretização de um projeto iniciado no ano de 1999, quando ainda se chamava Peito Vazio e que seria dirigido por Lírio Ferreira e Paulo Caldas (parceiro do primeiro no longa metragem Baile Perfumado), Cartola – Música para os olhos só veio a ter sua primeira exibição no Festival do Rio em 2006. Durante a sua extensa trajetória de produção, entre as inúmeras questões que surgiam na construção da biografia, uma ganhava certo destaque. Uma questão que, na verdade, se referia mais aos seus realizadores do que ao personagem retratado: seriam os diretores, jovens e criados geograficamente longe do universo do samba, autores legítimos para construir uma cinebiografia a altura do grande Cartola?

Com a exibição regular da película nos cinemas do país em 2007, esta suspeita balizou algumas críticas como, por exemplo, a do crítico musical João Máximo que considerou o documentário uma sucessão de equívocos, afirmando que “os dois moços que assinam direção e roteiro” talvez não conhecessem a história do sambista [1] (ao se referir aos diretores de forma impessoal como “os dois moços”, Máximo os desautoriza a falar sobre Cartola, numa atitude que conota paternalismo em relação ao compositor).

No entanto, para além dos diretores, a questão acima revelava (e ainda revela), sobretudo, a situação em que não raro encontramos alguns símbolos e expressões da cultura popular brasileira, submetidos constantemente aos ditames de autoridades sedentas por capital simbólico - não por acaso, quase sempre as mesmas que são aversas aos experimentalismos e/ou novas poéticas. Por outro lado, ela também nos serve, mesmo a contrapelo, de alerta para o real sentido das criações populares: o de que elas sempre prescindirão de donos, seus bastões nunca deixarão de ser passados. Tal como fez e tal como é o mestre Cartola, em seu legado e nas livres interpretações que podemos fazer dele.

 Nesta entrevista, o diretor e roteirista Hilton Lacerda comenta o assunto. “Foi lançado um véu poderoso que distancia curiosos que agora têm como antagonista uma poderosa indústria cultural, que agradece esse gesto gentil por parte dos guardiões dos segredos e da poesia que vem do povo”, ironiza. Além do tema, fala da importância de Cartola na sua vida e para a cultura brasileira.

Pergunta - Quando e como entrou no projeto do filme Cartola – Musica para os olhos?

Hilton Lacerda - Na verdade eu participo do projeto do Cartola desde o início, mas eu tinha sido convidado para roteirizar o projeto, que nasceu de um convite do Itaú Cultural, em sua primeira edição do Rumos Cultural. Neste momento houve um convite e não uma seleção. Paulo Caldas e Lírio tinham acabado de lançar o Baile Perfumado e estavam em bastante evidência no cenário nacional. Naquele ano, o instituto tinha estabelecido como tema o olhar estrangeiro. Mais especificamente: artistas de determinado Estado observando a cultura do outro. E assim foi iniciado o Cartola, que tinha por meta a entrega de um roteiro de pernambucanos observando a cultura carioca.

Naquele momento, Paulo Caldas estava bastante envolvido com seu filme O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas e terminou se afastando do projeto.  E aí, eu fui convidado por Lírio Ferreira e Clélia Bessa (produtora da Raccord Produções Cinematográficas) a participar do Cartola também como diretor. Clélia é a produtora do filme desde o primeiro momento.  

P - Qual a sua relação com Cartola? Como tomou contato com sua obra e qual a importância dela na sua vida? 

HL - Cartola, desde muito cedo, fez parte de minha vida. Primeiro por uma questão de uma educação bastante eclética. Nunca houve um parâmetro muito claro de conduta em relação à cultura na minha infância. Não por uma decisão intelectual da família, mas por certa liberdade e desleixo (o que faz bastante bem).

Filho de uma classe média bastante típica nas décadas de sessenta e setenta, Cartola entrou em minha vida a partir de reuniões familiares que envolviam samba, seresta e muita cachaça. Além disso, na época do lançamento do primeiro disco do compositor, foi alimentado (coisa sazonal no Brasil) o modismo pelo samba-canção (que já vinha desde o início da década de sessenta). Existiam pessoas mais velhas que passaram a cultuar Cartola, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus... Resumindo, a entrada de Cartola em minha vida veio da cumplicidade entre uma educação bastante aberta e  um lance de mercado que surtia seus resultados. No mais, foi permanecer bastante livre, para, já na adolescência, poder ouvir com o mesmo interesse coisas realizadas em tempos distintos. E isso ia do punk rock até as narrativas de Lupcínio Rodrigues. Dos sucessos fáceis da rádio (o fenômeno de massas é sempre interessante) às árias mais diletas. E é assim até hoje.

E acredito que em minha vida o Cartola terminou se firmando como algo definitivo ao desembocar em nosso documentário. Do flerte contínuo à paixão da pesquisa. E aí já foi Cartola desdobrando-se em possibilidades de leitura, e revelando mais que sua música: farol numa possível leitura do Brasil.

P - Como você pensa Cartola no panorama cultural brasileiro?

HL - Acredito que Cartola não pode ser observado em sua individualidade. Porque assim estaríamos fazendo apenas uma leitura poética do músico. Não que exista aí um erro, mas é uma questão de relevância para uma geração inteira e para a formação de uma cultura popular urbana extremamente importante.

Acredito que o compositor fez parte de uma geração que marcou de forma muito forte as matizes da nossa cultura. Ali, no início do século vinte, existia um projeto embrionário da formação do Brasil. Ou pelo menos essa formação sendo popularizada. Então, quando falo de Cartola enquanto importância cultural, estou falando de um momento de reconhecimento das classes que estavam fora do jogo social. E essas classes marcando posição e produzindo cultura de primeira linha, que terminou transbordando e fugindo do recipiente limitado e bombástico da época.

P - Qual o significado do seu centenário para a cultura nacional?

HL - Num país onde a memória vive por um fio, é muito importante você conseguir comemorar o centenário de um personagem tão importante como Cartola. Mas, a homenagem em si (extremamente necessária) não está à altura das discussões que podem e devem ser alimentadas. E isso vai desde a posição da cultura como porta voz de um povo, como a questão do negro na formação do Brasil. E até, e não seria ruim, aproximar a experiência marginal da vida do compositor com experiências atuais: de que forma essas discussões e leituras podem trazer novas interpretações sobre aquilo que somos ou sobre aquilo que podemos ser.

P - “Seriam os diretores, criados geograficamente longe do universo do samba, autores legítimos para construir uma cinebiografia a altura do grande Cartola?”

HL - Essa pergunta já foi feita e refeita muitas vezes durante o período de lançamento e produção do nosso filme. O engraçado é que acho ela completamente boba, magra. Quase raquítica. Isso porque ela não leva em consideração o fenômeno cultural, que nos dá direito a interpretar mundos distintos a partir de óticas muito próprias, através de pontos de vistas muito particulares. Mas compreendo a pergunta, pois ela nos dá o direito de ver certo preconceito com relação aos eixos ali representados. Claro que o universo do samba não é restrito a um Rio de Janeiro que algumas pessoas tentam transformar num lugar provinciano, ensimesmado. Pelo menos o Rio da época de Cartola era um centro aglutinador de referência e regiões, e que fazia borbulhar a cultura brasileira. E isso estava na literatura, na música, no cinema... Na vida do Brasil. E mesmo que não o fosse, porque estaríamos algemados na visão e na opinião sobre espaços e culturas geograficamente compartimentadas? Ninguém acusou Nelson Pereira dos Santos de não ser um sertanejo para realizar Vidas Secas. O tivessem feito, seria uma pena, além de um erro.

E além do mais, a nossa leitura não é uma visão definitiva. É uma leitura que busca na criatividade narrativa uma visão de um país a partir de um de seus ícones. Assim, os nobres guardiões da “verdadeira brasilidade” nem precisavam se alterar. Queríamos abrir portas e não cerrá-las.  

P - Como você percebe essa relação entre autoridade e cultura popular no Brasil?

HL - O mundo corporativo se transformou numa espécie de praga que bane a discussão do centro das coisas. E isso não acontece apenas com relação à cultura popular. No meio acadêmico isso está cheio. Quantos donos têm Machado de Assis, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Graciliano Ramos... O mundo acadêmico sofre bastante com isso. E é esse mundo acadêmico que municiou os donos da cultura popular. Os verdadeiros descobridores da alma genuína e lírica do povo. Os grandes projetores.  Os tradutores que vieram para explicar para o povo o que eles eram e o que eles representavam. E o tomaram de tal forma que engessam a compreensão dos fenômenos populares. Não que eles tenham parado sua produção (cultura é corpo em eterno movimento), mas foi lançado um véu poderoso que distancia curiosos que agora têm como antagonista uma poderosa indústria cultural, que agradece esse gesto gentil por parte dos guardiões dos segredos e da poesia que vem do povo. Sendo mais direto, além de maior gentileza com o acesso a documentos e aos bens culturais populares, os guardiões poderiam ser mais atuantes no sentido de alimentar embates menos conservadores. Poderiam ficar com os ouvidos mais abertos para o outro. Claro que essa crítica não generaliza, mas cobre uma boa parte dos donos da cultura no Brasil, espécies de guardas de trânsito cultural.

Bibliografia

MÁXIMO, João. Um divórcio entre músicas e imagens. In: O Globo, 07/04/2007.


Cartola e os guardiões da cultura nacional:
entrevista com Hilton Lacerda, diretor do documentário Cartola – Música para os Olhos

Roberto Azoubel da M. Silveira
Doutor em Literatura Brasileira pela PUC-Rio

[1] MÁXIMO, João. Um divórcio entre músicas e imagens. In: O Globo, 07/04/2007.

Hilton Lacerda. Foto: Filipe Redondo