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Concretização
de um projeto iniciado no ano de 1999, quando ainda se chamava
Peito Vazio e que seria dirigido por Lírio
Ferreira e Paulo Caldas (parceiro do primeiro no longa metragem Baile Perfumado), Cartola – Música para os olhos só veio
a ter sua primeira exibição no Festival do Rio em 2006. Durante a
sua extensa trajetória de produção, entre as inúmeras questões que
surgiam na construção da biografia, uma ganhava certo destaque. Uma
questão que, na verdade, se referia mais aos seus realizadores do
que ao personagem retratado: seriam os diretores, jovens e criados
geograficamente longe do universo do samba, autores legítimos para
construir uma cinebiografia a altura do grande Cartola? |
No entanto, para além dos
diretores, a questão acima revelava (e ainda revela), sobretudo, a situação
em que não raro encontramos alguns símbolos e expressões da cultura popular
brasileira, submetidos constantemente aos ditames de autoridades sedentas
por capital simbólico - não por acaso, quase sempre as mesmas que são aversas
aos experimentalismos e/ou novas poéticas. Por outro lado, ela também nos
serve, mesmo a contrapelo, de alerta para o real sentido das criações populares:
o de que elas sempre prescindirão de donos,
seus bastões nunca deixarão de ser passados. Tal como fez e tal como é o
mestre Cartola, em seu legado e nas livres interpretações que podemos fazer
dele.
Nesta entrevista, o diretor e roteirista Hilton
Lacerda comenta o assunto. “Foi lançado um véu poderoso que distancia curiosos
que agora têm como antagonista uma poderosa indústria cultural, que agradece
esse gesto gentil por parte dos guardiões dos segredos e da poesia que vem
do povo”, ironiza. Além do tema, fala da importância de Cartola na sua vida
e para a cultura brasileira.
Pergunta - Quando e como entrou
no projeto do filme Cartola – Musica
para os olhos?
Hilton Lacerda - Na verdade
eu participo do projeto do Cartola
desde o início, mas eu tinha sido convidado para roteirizar o projeto, que
nasceu de um convite do Itaú Cultural, em sua primeira edição do Rumos Cultural.
Neste momento houve um convite e não uma seleção. Paulo Caldas e Lírio tinham
acabado de lançar o Baile Perfumado e estavam em bastante evidência
no cenário nacional. Naquele ano, o instituto tinha estabelecido como tema
o olhar estrangeiro. Mais especificamente: artistas de determinado Estado
observando a cultura do outro. E assim foi iniciado o Cartola, que tinha por meta a entrega de um roteiro de pernambucanos
observando a cultura carioca.
Naquele momento, Paulo Caldas estava bastante
envolvido com seu filme O Rap do Pequeno
Príncipe contra as Almas Sebosas e terminou se afastando do projeto.
E aí, eu fui convidado por Lírio Ferreira e Clélia Bessa (produtora
da Raccord Produções Cinematográficas) a participar do Cartola
também como diretor. Clélia é a produtora do filme desde o primeiro momento.
P - Qual a sua relação com Cartola?
Como tomou contato com sua obra e qual a importância dela na sua vida?
HL - Cartola, desde muito
cedo, fez parte de minha vida. Primeiro por uma questão de uma educação
bastante eclética. Nunca houve um parâmetro muito claro de conduta em relação
à cultura na minha infância. Não por uma decisão intelectual da família,
mas por certa liberdade e desleixo (o que faz bastante bem).
Filho de uma classe média
bastante típica nas décadas de sessenta e setenta, Cartola entrou em minha
vida a partir de reuniões familiares que envolviam samba, seresta e muita
cachaça. Além disso, na época do lançamento do primeiro disco do compositor,
foi alimentado (coisa sazonal no Brasil) o modismo pelo samba-canção (que
já vinha desde o início da década de sessenta). Existiam pessoas mais velhas
que passaram a cultuar Cartola, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus...
Resumindo, a entrada de Cartola em minha vida veio da cumplicidade entre
uma educação bastante aberta e um
lance de mercado que surtia seus resultados. No mais, foi permanecer bastante
livre, para, já na adolescência, poder ouvir com o mesmo interesse coisas
realizadas em tempos distintos. E isso ia do punk rock até as narrativas
de Lupcínio Rodrigues. Dos sucessos fáceis da rádio (o fenômeno de massas
é sempre interessante) às árias mais diletas. E é assim até hoje.
E acredito que em minha vida o Cartola terminou
se firmando como algo definitivo ao desembocar em nosso documentário. Do
flerte contínuo à paixão da pesquisa. E aí já foi Cartola desdobrando-se
em possibilidades de leitura, e revelando mais que sua música: farol numa
possível leitura do Brasil.
P - Como você pensa Cartola no panorama
cultural brasileiro?
HL - Acredito que Cartola
não pode ser observado em sua individualidade. Porque assim estaríamos fazendo
apenas uma leitura poética do músico. Não que exista aí um erro, mas é uma
questão de relevância para uma geração inteira e para a formação de uma
cultura popular urbana extremamente importante.
Acredito que o compositor fez parte de uma
geração que marcou de forma muito forte as matizes da nossa cultura. Ali,
no início do século vinte, existia um projeto embrionário da formação do
Brasil. Ou pelo menos essa formação sendo popularizada. Então, quando falo
de Cartola enquanto importância cultural, estou falando de um momento de
reconhecimento das classes que estavam fora do jogo social. E essas classes
marcando posição e produzindo cultura de primeira linha, que terminou transbordando
e fugindo do recipiente limitado e bombástico da época.
P - Qual o significado do seu centenário
para a cultura nacional?
HL - Num país onde a memória
vive por um fio, é muito importante você conseguir comemorar o centenário
de um personagem tão importante como Cartola. Mas, a homenagem em si (extremamente
necessária) não está à altura das discussões que podem e devem ser alimentadas.
E isso vai desde a posição da cultura como porta voz de um povo, como a
questão do negro na formação do Brasil. E até, e não seria ruim, aproximar
a experiência marginal da vida do compositor com experiências atuais: de
que forma essas discussões e leituras podem trazer novas interpretações
sobre aquilo que somos ou sobre aquilo que podemos ser.
P - “Seriam os diretores, criados
geograficamente longe do universo do samba, autores legítimos para construir
uma cinebiografia a altura do grande Cartola?”
HL - Essa pergunta já
foi feita e refeita muitas vezes durante o período de lançamento e produção
do nosso filme. O engraçado é que acho ela completamente boba, magra. Quase
raquítica. Isso porque ela não leva em consideração o fenômeno cultural,
que nos dá direito a interpretar mundos distintos a partir de óticas muito
próprias, através de pontos de vistas muito particulares. Mas compreendo
a pergunta, pois ela nos dá o direito de ver certo preconceito com relação
aos eixos ali representados. Claro que o universo do samba não é restrito
a um Rio de Janeiro que algumas pessoas tentam transformar num lugar provinciano,
ensimesmado. Pelo menos o Rio da época de Cartola era um centro aglutinador
de referência e regiões, e que fazia borbulhar a cultura brasileira. E isso
estava na literatura, na música, no cinema... Na vida do Brasil. E mesmo
que não o fosse, porque estaríamos algemados na visão e na opinião sobre
espaços e culturas geograficamente compartimentadas? Ninguém acusou Nelson
Pereira dos Santos de não ser um sertanejo para realizar Vidas
Secas. O tivessem feito, seria uma pena, além de um erro.
E além do mais, a nossa leitura não é uma
visão definitiva. É uma leitura que busca na criatividade narrativa uma
visão de um país a partir de um de seus ícones. Assim, os nobres guardiões
da “verdadeira brasilidade” nem precisavam se alterar. Queríamos abrir portas
e não cerrá-las.
P - Como você percebe essa relação
entre autoridade e cultura popular no Brasil?
HL - O
mundo corporativo se transformou numa espécie de praga que bane a discussão
do centro das coisas. E isso não acontece apenas com relação à cultura popular.
No meio acadêmico isso está cheio. Quantos donos têm Machado de Assis, Mário
de Andrade, Manuel Bandeira, Graciliano Ramos... O mundo acadêmico sofre
bastante com isso. E é esse mundo acadêmico que municiou os donos da cultura
popular. Os verdadeiros descobridores da alma genuína e lírica do povo.
Os grandes projetores. Os tradutores
que vieram para explicar para o povo o que eles eram e o que eles representavam.
E o tomaram de tal forma que engessam a compreensão dos fenômenos populares.
Não que eles tenham parado sua produção (cultura é corpo em eterno movimento),
mas foi lançado um véu poderoso que distancia curiosos que agora têm como
antagonista uma poderosa indústria cultural, que agradece esse gesto gentil
por parte dos guardiões dos segredos e da poesia que vem do povo. Sendo
mais direto, além de maior gentileza com o acesso a documentos e aos bens
culturais populares, os guardiões poderiam ser mais atuantes no sentido
de alimentar embates menos conservadores. Poderiam ficar com os ouvidos
mais abertos para o outro. Claro que essa crítica não generaliza, mas cobre
uma boa parte dos donos da cultura no Brasil, espécies de guardas de trânsito
cultural.
Bibliografia
MÁXIMO, João. Um divórcio entre
músicas e imagens. In: O Globo, 07/04/2007.