![]() Tom Zé. Danç-Êh-Sá - Dança dos Herdeiros do Sacrifício, 2006. |
“De vez em quando todos os olhos se voltam pra mim. Eu não sei de nada, eu não sei de nada...” (Todos os Olhos – Tom Zé)
“Eu falo, eu minto” (Foucault) |
Tom Zé, em 2006, completou o seu septuagésimo aniversário, e como uma espécie
de “comemoração” a esta data lançou o disco Danç-Êh-Sá - Dança dos Herdeiros do Sacrifício.
Nada de uma, digamos, (simples) coletânea com as melhores músicas do artista
que procurasse
resumir ou condensar sua carreira. Pelo contrário, mais uma obra pulsante que transborda
as fronteiras da discussão musical. Um disco, literalmente, sem palavras -
em que as palavras são substituídas por ruídos de fala, chiados, meros balbucios
que funcionam como instrumentos, e em vários
momentos, sobrepõem-se
às melodias e criam uma massa musical disforme.
Um disco que, segundo Tom Zé, vem para marcar o “fim da canção”; quem sabe
poderíamos resumir este momento como um retorno à pré-história da canção,
brechas que se abrem no conceituado universo musical e descobrem sítios arqueológicos
(musicais) perdidos no tempo, que foram pouco explorados, fendas que se abrem,
em terrenos pantanosos, para fazer aflorar possibilidades.
Torna-se possível, ainda, pensar
Tom Zé, neste disco, a partir da idéia de Literatura Menor – desenvolvida
por Deleuze e Guattari, no livro Kafka: por uma Literatura
Menor –, cavando espaços na música popular brasileira para poder vir a
ser cantor, para ultrapassar aquilo que o próprio artista considera (e considerava)
como suas limitações. [ 1 ] Se o ponto de partida do artista é o interior da Bahia,
sertão nordestino – muito próximo d’Os Sertões de Euclides da Cunha -, com características arcaizantes, o choque deste mundo
arcaico com o civilizado parece inevitável. É como se Tom Zé, ao cavar
esses espaços, reencarnasse a figura do Antonio Conselheiro e operasse em
um outro ponto, em um ponto em que o dito cujo “mundo civilizado” não consegue
compreender: como se o bárbaro, assim tratado pelo homem que se diz civilizado,
entrasse na sala de estar deste e mostrasse as barbaridades que este cometeu
para validar a civilização.
Antes de aprofundarmos a discussão em torno da idéia da “morte da canção”, que é o que me interessa aqui, gostaria de discutir outras peculiaridades que envolvem o projeto: o “click” que deflagra o disco Danç-Êh-Sá - Dança dos Herdeiros do Sacrifício surge quando Tom Zé se depara com uma pesquisa realizada pelo setor de marketing da MTV em 2005. A pesquisa revelava, na juventude do início do século XXI, uma “inesperada tendência para o hedonismo, o consumismo e a irresponsabilidade social”. Uma outra coisa que chamou a atenção de Tom Zé foi o desinteresse quase total dos jovens entrevistados para com as letras das músicas, como se estes jovens de hoje, bem diferente dos jovens de outrora, tivessem perdido o interesse por aquilo que as canções teriam para dizer. Isso se reflete na escolha do repertório feita por Tom Zé, nos arranjos e na forma com que trabalha os ruídos vocais: quiçá a canção, da forma como o artista opera - neste disco repleto de ruídos animalescos - muito mais do que uma simples representação deste animal chamado homem – que, sem delicadeza alguma, parece se aproximar novamente com força de sua origem selvagem –, é uma tentativa de fuga, uma desterritorialização.
Outra coisa interessante de ser apontada é que Tom Zé, no subtítulo do disco, utiliza o termo “Herdeiros
do Sacrifício”, fazendo referência (velada) à
contribuição que a comunidade negra deu para o continente americano (as três
Américas); no caso específico da música, só para citarmos alguns exemplos
apontados por Tom Zé, fazem-se presentes: o jazz, o samba,
a bossa-nova, a Tropicália, o rock, o hip-hop e o reggae. Como vocês devem
ter percebido, Tom Zé utiliza o termo Tropicália como se fosse um ritmo, ou
seja, com uma força de relação diferente a de um “movimento”, como algo que
continua pulsando e, de certa forma, sendo feito (praticado) – situação apontada
pelo artista também, de saída, no título do livro “Tropicalista Lenta Luta”,
lançado em 2003 (Publifolha).
O
Fim da Canção |
![]() Com defeito de Fabricação ( Luaka Bop/WEA, 1998) |
Quando Tom Zé fala em o “fim da canção”, de certa forma, retoma uma discussão que havia sugerido no encarte do CD Com defeito de Fabricação – lançado, primeiramente, fora do Brasil, pela gravadora Luaka Bop/WEA, em 1998, e, no ano seguinte, em 1999, lançado no Brasil pela gravadora Trama, sob o título “Estética do Plágio”. No texto, Tom Zé nos revela o seguinte:
A estética de Com Defeito de Fabricação
re-utiliza a sinfonia cotidiana do lixo civilizado, orquestrada por instrumentos
convencionais ou não: brinquedos, carros, apitos, serras, orquestra de hertz,
ruídos das ruas, etc., unidos a um alfabeto sonoro de emoções, contidas nas
canções e símbolos musicais que marcaram cada passo da nossa vida afetiva.
A forma é dançável, rítmica, quase sempre A-B-A . Com coros. Refrões e dentro
dos parâmetros da música popular. O aproveitamento desse alfabeto se dá em
pequenas células, citações e plágios deslavados. Hoje, também pelo esgotamento
das combinações dos sete graus da escala diatônica [mesmo acrescentando alterações
e tons vizinhos] esta prática desencadeia, sobre o universo da música tradicional,
uma estética do plágio, uma estética do arrastão. Podemos concluir portanto,
que terminou a era do compositor, a era autoral, inaugurando-se a era do plagicombinador,
processando-se uma entropia acelerada.[ 2 ]
Tom Zé procura associar o mundo autoral (assim como o conhecemos) ao arrastão urbano (ao estilo dos arrastões que ficaram populares nas praias do Rio de Janeiro), quando o compositor passa pelo trabalho de outros e se apropria, muitas vezes inconscientemente, de fragmentos (coisas); e, a partir destas apropriações, associadas a outras, terá condições de produzir seu repertório. Um Plagicombinador. Através dessa idéia de Plagicombinação, a que se refere Tom Zé, podemos retomar uma discussão apontada no início do texto, isto é, a de cavar espaços na música brasileira para que possa continuar operando neste universo, como se buscassem alternativas para que a música se desdobrasse em potências (se re-potencializasse) para continuar produzindo brechas, rasgos, fendas, possibilidades.
Podemos pensar, ainda, que o texto no encarte do CD aponte para
um cenário multifacetado, sem referenciais. Não que as referências não existam,
estão presentes, todavia, em boa parte das vezes, camufladas. A Estética do
Plágio, ou Estética do Arrastão, nem sempre permite que essas referências
sejam reveladas, pois, muitas vezes, como já citado, esse jogo ocorre inconscientemente. [ 3
Não poderíamos deixar de sinalizar que Tom Zé, quem sabe sem ter lido o
filósofo francês, isso é o que menos importa, está pensando o corpo-cancional
pelo mesmo viés que Roland Barthes pensa o texto, em especial quando este
se refere à morte do autor-deus: “Sabemos agora que um texto não é feito de
uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico,
que seria a ‘mensagem’ do Autor-Deus, mas um espaço de dimensões múltiplas,
onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original:
o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura”.
[ 4
]
A música, para Tom Zé, é esse mesmo “tecido de citações” de que nos fala Barthes, citações oriundas de “mil focos da cultura”. Os termos utilizados por Tom Zé – Estética do Plágio, Estética do Arrastão, Plagicombinação – talvez resumam a fala de Barthes, sendo, claro que, da forma como Tom Zé opera (quando da utilização de palavras que apresentam um tom forte de provocação aos poderes musicais constituídos, o “plágio, por exemplo), causa de imediato um certo impacto. O que não impede de pensarmos que esses campos se encontram em intenso diálogo, que o “escritor”, na forma como nos apresenta Barthes, dialoga com o Plagicombinador. [ 5 ]
Agora, se Nietzsche sugere a morte de Deus, Barthes, a morte do Autor-Deus e Tom Zé sugere a morte do compositor-Deus, talvez isso ocorra porque ele (deus, o autor, o compositor) nunca tivesse existido. Deleuze e Guattari, ao se referirem à morte de Deus, sinalizam de forma interessante para pensarmos a discussão: “Deus, tal como o pai, nunca existiu (ou então foi há tanto tempo, talvez no paleolítico...). Só se matou o que desde sempre esteve morto. Os frutos da notícia da morte de Deus suprimem tanto a flor da morte como o rebento da vida”.[ 6 ] Tanto em Tom Zé, como em Deleuze e Guattari, em Barthes e em Nietzsche, o que ocorre é que este ser com características divinas é substituído por um outro que se encontra em constante movimento com seus pares.
Este plágio deliberado nos revela um universo no qual as relações de poder parecem ter sido desconstruídas, e aquilo que a sociedade convencionou chamar de “compositor” (autor, deus, dentre várias possibilidades de pensarmos esse mundo verticalizado) parece ter perdido as forças, necessita (re)carregar as baterias, ou quem sabe, não faz mais sentido existir da forma como foi “concebido” inicialmente. Afinal de contas – voltando-me para a forma como o mundo celebra essas figuras (esses personagens) –, o que é um compositor? Qual a função de um compositor? Para que serve um compositor? Para perguntas como essas, é possível obter respostas no famigerado mundo da indústria fonográfica (da indústria do livro e, por que não, da indústria religiosa), que faz questão de manter o “status” do mundo autoral. É claro que não deixaremos de obter respostas, provavelmente como ponto de apoio, nos próprios nomes que assumem o papel de “compositores-deus”, em especial estes que tiveram seus nomes construídos pela opinião pública (com o apoio da indústria fonográfica) para serem endeusados, venerados, paparicados.
Com isso, se o que Tom Zé sugere, polidamente, é um descentramento das formas de produzir e, conseqüentemente, de pensar a música, buscando formas para desterritorializar os espaços que se concentram dentro do campo da uniformidade (do lugar-comum), de uma outra maneira, o que Tom Zé (também) quer dizer (ou, para não deixá-lo em maus lençóis, aquilo que estou lendo e acho que Tom Zé queira dizer) é que não existe mais motivo para que determinados críticos musicais continuem a endeusar tantos “plagiadores-compositores-deus” que há por aí, que da noite para o dia passam a ser considerados (uma espécie de) “monstros-sagrados-da-música-popular-brasileira”.
Mas a discussão, no trabalho de Tom Zé, ainda tem outros desdobramentos (que não deixam de se repotencializarem). Vejamos. Se no disco de 1998 o artista sugere a Estética do Plágio, Estética do Arrastão, Plagicombinação, no disco imediatamente seguinte, de 2001, refiro-me ao CD Jogos de Armar ou Faça Você Mesmo, Tom Zé, além do disco em seu formato “tradicional” – com quatorze faixas em que apresenta vários instrumentos construídos por ele durante a década de 70, aos quais chama de Hertzé (o Buzinório, o Enceroscópio, a Serroteria, entre outros), um sampler tupiniquim ou, como diz o próprio artista (em entrevista que faz parte do acervo particular) “o hertzé é um sampler feito antes do sampler” –, traz um segundo CD: um “CD Auxiliar” que leva o nome de “Cartilha de Parceiros”. Mas o que é uma cartilha de Parceiros?
É um CD com vários fragmentos musicais, pequenas células que ficam à disposição
do público para futuras possíveis parcerias: “neste, cada célula ou entrecho
é apresentado separadamente, para permitir reelaborações e remontagens”. [
7
] Se isso não bastasse, no encarte do CD, há vários fragmentos de letras com
o mesmo objetivo: parcerias com qualquer um que se interessar pelo trabalho
e der seqüência na operação (independente
destes terem os seus nomes reconhecidos ou não). E os nomes das músicas, de
certa forma, denunciam as fontes com que Tom Zé se propõe a dialogar (ao mesmo
tempo se apresentam como fontes para outros “plágios”); por exemplo, a faixa
número 10, O PIB da PIB (prostituir) Tom Zé/Sérgio Molina/Ale Siqueira – gênero:
Bloco de Turistas Europeus para o cordão das Meninas do Nordeste – Arrastão
de Rossini – O Barbeiro de Sevilha. É como se Tom Zé, na prática, operasse
com as argumentações sugeridas no encarte do cd anterior.
Tom Zé e o Brasil |
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No penúltimo disco, Estudando o Pagode, lançado em 2005, Tom Zé buscou um pequeno grupo de adolescentes – que morava no mesmo prédio que ele, em São Paulo – para funcionar como uma espécie de “primeira censura” antes do material ser considerado pronto, antes do material ir para as lojas. Talvez, Tom Zé procurasse na opinião dos adolescentes – por mais que essa opinião se resumisse a adolescentes de seu prédio - a possibilidade de transpor uma barreira, buscava na opinião destes uma aproximação para, quem sabe, ter pontos de seu trabalho em sintonia com aquilo que o “jovem” estivesse pensando hoje, com as suas preocupações. Por sua vez, no último disco, Danç-Êh-Sá - Dança dos Herdeiros do Sacrifício [ 8 ], Tom Zé faz um movimento muito parecido ao do disco “Estudando o Pagode” – por mais que, nos dois casos, em se tratando de Tom Zé, isso possa ser visto como uma grande ironia –, procura no público jovem maneiras de tentar manter contato, e vê no desinteresse destes mesmos adolescentes uma outra possibilidade de aproximação. Isto é, se o adolescente de hoje não está preocupado com o que as letras das músicas têm para dizer, Tom Zé faz um disco em que, simplificando, a música (o ritmo) é o carro chefe.
Todavia, essa aproximação acontece até um determinado ponto, poderíamos dizer, de forma comedida; normalmente limitada a pequenos núcleos, a pequenos universos, mesmo que consideremos que o público de Tom Zé também se constitui de gente jovem. No entanto, esta situação traz à tona uma outra questão, mesmo com a repercussão (externa e interna) recente de seu trabalho, mesmo com tantos materiais, no conjunto de sua carreira, responsáveis por consideráveis revoluções na forma de se pensar a música (o universo cancional), não bastando isso, executados como tais, potencializando comentários em vários cantos do mundo em que o nome dele é citado como uma das maiores referências musicais em atividade – só para citar alguns nomes, David Byrne, Stockhausen, Sean Lennon, Beck... –; shows em outros países, tocando em lugares que brasileiros não têm o costume de se apresentar (no MOMA, por exemplo), pois são reservados a um seleto time de artistas da música mundial; tendo seus discos relacionados nas listas dos melhores do ano nas principais revistas e jornais ligados à música (e aqui pode parecer um paradoxo, pois a opinião da indústria fonográfica também se faz presente), Rolling Stone (norte-americana) The New York Times, Village Voice, Le Monde, Le Nouvel Observateur, para citar a cobertura da imprensa fora do Brasil, isso sem contar os constantes espaços na imprensa brasileira especializada (e não especializada também), o mais assustador é pensar que o Brasil (adolescente ou não) ainda não conhece Tom Zé!
E vejam que essa situação não é
uma novidade e não desmotiva o artista. Em nenhum momento se apresenta como
um empecilho para ele continuar tentando se aproximar de um público maior,
mas isso, é claro, sem deixar de lado um certo “rebuscamento” da linguagem
estético-musical; e talvez a frase a seguir, em entrevista
para a Folha de S.Paulo, que saiu no dia de seu aniversário (11 de outubro
de 2006), dia em que completava 70 anos, resuma um pouco o espírito do artista:
"Eu, quando setento, não me sento".
Não pára, não desiste, mesmo diante das adversidades; mesmo que procure aproximações
para tentar fazer-se entender, Tom Zé continua se esforçando e dando o máximo
de si para fazer aquilo que sempre se propôs a fazer, sem deixar de lado o
espírito provocativo, seja quando esta provocação se apresenta através da
música ou da letra:
"Eu tô te explicando pra te confundir Tô te confundindo pra te esclarecer” |
![]() Show "Divino Maravilhoso" |
Mas, afinal de contas, quem
é Tom Zé?
Tom Zé nasceu em Irará, interior
da Bahia, muito próximo da região de Canudos (da Canudos de António Conselheiro),
em uma cidade, como a maioria das cidades do interior (bem interior) brasileiro
da época, sem luz elétrica e sem água encanada. Tanto a água como a luz, da
forma como conhecemos, dentre tantas outras coisas, na vida do artista, tiveram
um momento inaugural. Um momento com hora e lugar marcado, que o artista guarda
na memória como se fosse um grande acontecimento em sua vida; todos eles narrados
(em entrevistas, programa de TV, shows...) como se Tom Zé fosse um velho contador
de histórias que pega um banquinho, senta-se e, com a sua fala simples, hipnotiza
o público presente.
Migrou para Salvador para estudar e junto levou o violão, com
algumas canções que havia composto em sua terra natal. Sua primeira experiência
foi em um programa de televisão chamado “Escada Para o Sucesso”, na TV Itapoã,
em que Tom Zé, no dia da apresentação, parodiou com a canção “Rampa Para o
Fracasso”. A canção, podemos dizer, era uma bricolagem feita a partir de várias
manchetes de jornais que circulavam em Salvador. A técnica, é bem provável
que Tom Zé a havia desenvolvido em sua cidade natal, em uma canção que teve
um sucesso repentino no vilarejo – refiro-me a “Maria Bago Mole” (ou “os Doidos
de Irará”), uma letra a partir daqueles personagens folclóricos que eram reconhecidos
por todos na cidade por suas, digamos, “manias nada comuns”. Segue um pedaço
da letra “Maria Bago Mole” ou “Os Doidos de Irará”.[ 9
:
“Guilherme se requebra
Rufino bota pó
Euclides morde o braço
Das Dores fala só
João ré diz que é vivo
Em dom do e é dado
Germino o curador
Por Dalva foi surrado
Lucinha sobe e desce
Tiririca bole bole
Mas todos passam bem
Com Maria Bago Mole
Maria Bago Maria Bago
Maria Bago, Bago, Bago”
A música apresentada por Tom Zé no programa de TV da Bahia repercutiu
e aos poucos Tom Zé passa a ser conhecido no meio musical soteropolitano,
no início da década de 60, época em que conhece Caetano Veloso, Gilberto Gil,
Gal Costa, Maria Bethânia, Augusto Boal, Glauber Rocha, só para citar alguns
nomes.
O passo seguinte foi o meio acadêmico.
A Universidade Federal da Bahia, na época sob o comando do reitor Edgar
Santos,[10] fez
desembarcar em Salvador o maestro Koellreutter, para coordenar o curso de
música. Segundo Antonio Risério:
Koellreutter trouxe, para uma cidade extraordinariamente
musical, em termos populares, o repertório erudito, re-visto pela ótica da
vanguarda, num exercício de estética sincrônica. Uma injeção de Bach e de
Schoenberg, e de um Bach relido pela semiótica serial, na terra do samba de
roda de extração negroafricana (e das claras e refinadas canções praieiras
de Dorival Caymmi) que então começava a se mover ao som do violão de João
Gilberto.[11]
Tom Zé se formou em História da Música, Composição, Violoncelo, Contraponto, Harmonia, Estruturação, Piano e Violão e foi aluno dos professores que projetaram e deram notoriedade ao curso: H. J. Koellreutter, Walter Smetak, Ernest Widmer, Piero Bastianelli, Yulo Brandão, Jamary Oliveira, Ainda Zolinguer e Edy Cajueiro. E, na mesma época, foi membro fundador do Grupo de Compositores da Bahia (música erudita), ao lado de Milton Gomes, Lindebergue Cardoso, Rinaldo Rossi, Nicolau Kokron e Ernest Widmer. Em relação ao curso de música, vale lembrar que não era reconhecido pelo MEC, pois não seguia em nada os pré-requisitos exigidos pelo Ministério da Educação e Cultura. “(...) O prof. Koellreutter só aceitou ir para a Bahia com a liberdade de ignorar completamente o currículo oficial de ensino de música do Ministério da Educação, independência que praticou com cuidado e perseverança. Tanto que, quando o alcançamos, nossos diplomas oficialmente não valiam nada, mas todas as escolas do Brasil lutavam para nos contratar”.[12]
Koellreutter havia aportado no Brasil durante a década de 30, fugindo da ascensão nazista, e trazia na bagagem as informações das vanguardas musicais européias. Isso pode ser considerado uma das razões da efervescência cultural que ocorria na cidade de Salvador. Lembrando que Koellreutter desembarca em São Paulo e permanece por muito tempo perambulando em solo brasileiro, para só depois ter condições (em Salvador) de trabalhar de acordo com o método que, muito mais do que desenvolvido, era de seu interesse.
Tom
Zé, até então, trazia na bagagem as experiências musicais de um artista que,
até aquele momento, utilizava-se das sonoridades do interior do Brasil, ricas
em cantos e festas religiosas, uma cultura oral passada de geração para geração,
que dava base para o universo folclórico de cada região. Essa cultura oral
interiorana aparecia confrontando-se à música popular brasileira (já com características
radiofônicas), em especial as transformações que ocorriam naquele momento,
como o surgimento da bossa-nova e todo o requinte desse novo estilo ganhando
força na voz inconfundível de João Gilberto. Esses dois universos musicais
completamente distintos, o folclore brasileiro e o surgimento da bossa-nova,
promoviam, na cabeça do artista, transformações consideráveis. A essa constante
ebulição, após o ingresso na universidade, choca-se a atonalidade proposta
por Shöemberg em obras como “Pierrot Lunaire”, as mudanças rítmicas propostas
por Stravinski, leia-se “A Sagração da Primavera”, bem como a obra de outros
nomes como Erik Satie, Varése, Debussy...
O
passo seguinte de Tom Zé, logo após deixar a universidade, foi migrar para
São Paulo a convite de Caetano Veloso e se incorporar ao grupo que passou
a ser chamado de Tropicalista. O grupo era composto por Gal Costa, Rogério
Duprat, Torquato Neto, Nara Leão, Capinan, Os Mutantes (Arnaldo Batista,
Sergio Dias e Rita Lee), Tom Zé, Caetano Veloso e Gilberto Gil. O grupo Tropicalista
está entre os mais representativos da cultura brasileira da segunda década
do século XX e até hoje continua a influenciar músicos e compositores espalhados
pelo mundo.
A participação (primeira) de Tom Zé no grupo se deu com a gravação de “Made in Brazil” (de sua autoria, com arranjos e regência do maestro Rogério Duprat) para o CD Tropicália ou Panis et Circencis (a música conta com a participação de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Os Mutantes).
![]() Tropicália ou Panis et Circencis (Philips, 1968) |
“Retocai o céu de anil Bandeirolas no cordão Grande festa em toda a nação O avanço industrial |
Tem garotas-propaganda
Aeromoças e ternura no cartaz
Basta olhar na parede
Minha alegria num instante se
refaz
Pois temos
o sorriso engarrafado
Já vem pronto e tabelado
É somente requentar
E usar
É somente requentar
E usar
Porque é made, made, made
Made in Brazil
Retocai o
céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção
A revista
moralista
Traz uma lista dos pecados da
vedete
E tem jornal popular
Que nunca se espreme
Porque pode derramar
É um banco
de sangue encadernado
Já vem pronto e tabelado
É somente folhear
E usar
É somente folhear
E usar
Porque é made, made, made
Made in Brazil”[13]
Mas
o grande momento se dá no Festival da Record de 1968. Tom Zé encerra a noite
em alta, a canção “São São Paulo Meu Amor” (por ele composta e interpretada)
é a vencedora do festival; além dessa, a canção “2001”, letra de Tom Zé e
música de Rita Lee, no festival interpretada por Gilberto Gil e Os Mutantes,
chega em terceiro lugar [14]. Em 1968 sai, pela gravadora Rozemblit,
o primeiro disco solo com algumas pérolas do artista, dentre elas, “Não Buzine
Que Eu Estou Paquerando”, “Catecismo, Creme Dental e Eu” e Curso Intensivo
de Boas Maneiras”.
Após
o AI5, a prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil e, conseqüentemente, o exílio
dos dois artistas, o movimento chega ao seu final. Começa e termina sem datas
precisas, sem ter sido inaugurado e sem haver despedidas. Tom Zé permanece
no Brasil e, durante a década de 70, desenvolve vários projetos. Em 1970,
lança o disco Tom Zé, em 1972, Se o Caso é Chorar e, em 1973,
Todos os Olhos. Se os discos de 70 e de 72 tiveram repercussão radiofônica,
a repercussão do disco de 73 foi outra. Um disco que, no auge da censura do
regime militar, traz uma provocação e tanto na capa: uma bola de gude (bolita)
sobre um ânus, criando um desdobramento estético que burla a censura a ponto
de a façanha não ser descoberta – revelada anos mais tarde (1990), no encarte
do disco The Best Of Tom Zé, uma coletânea (que tem como base o disco
Estudando o Samba) lançada por David Byrne (pelo selo Luaka Bop)
no cenário internacional. O disco Todos os Olhos traz ainda um poema
visual de Augusto de Campos, que assina também, em parceria com Tom Zé, a
canção Cademar.
![]() Todos os Olhos (Continental, 1973) |
![]() Estudando o Samba (Gel Continental, 1976) |
Depois do disco de 76 vem o disco de 78, Correio da Estação do Brás
e Nave Maria, de 1984 – dois discos que repercutiram sem fazer muito
barulho, como se as portas dessem sinais de estarem se fechando. Só em 1992,
após a redescoberta feita por David Byrne, que culminou com o lançamento de
The Best Of Tom Zé como uma forma de apresentação do artista para
a cena musical internacional - Tom Zé na época já estava praticamente desistindo
da carreira de músico/compositor para virar frentista de posto em sua cidade
natal –, sai o disco The Hips Of Tradition, também pela Luaka
Bop, um disco de canções inéditas, lançado apenas no mercado externo.
Destaco deste disco a letra da canção
Multiplicar-se única (Tom Zé):
“Canta por nós
cordas vocais
sem cais
cordas
ou nós.”
Outros Discos em Destaque
Parabelo,
lançado em 1997, com Zé Miguel Wisnik, uma trilha para o grupo de dança Corpo
em que as músicas dialogam sonora e esteticamente com o sertão nordestino.
Tom Zé fala que a Fonte das Nações, local em que as pessoas da cidade de Irará
buscavam água e a transportavam em grandes vasilhames no lombo dos burros,
foi um dos pontos de apoio para a composição deste trabalho. A Fonte das Nações
era o local de encontro das mulheres da cidade, ponto em que juntas cantavam,
juntas lavavam as roupas que depois seriam estendidas na beira do rio. É naquele
agrupamento de vozes nasaladas que provocavam encantamento aos ouvidos, junto
com aquelas roupas que se estendiam pelo chão formando uma grande colcha de
retalhos que provocava o encantamento aos olhos, que Tom Zé busca a inspiração
para a realização deste disco.[15]
“No jardim da Política”,[16] de 1998, é um disco atípico, gravação
de um show de 1984, no Lira Paulistano, um show da fase em que Tom Zé sobrevivia
fazendo apresentações (violão e voz) no circuito universitário, basicamente,
paulista – shows em que, em função dos recursos musicais se limitarem a um
violão (no máximo dois) e a voz, a ironia do artista parece amplificada. O
disco surge para suprir uma falta de material de divulgação nos shows realizados
em solo brasileiro, visto que os discos recém gravados, até aquele dado momento,
estavam sendo lançados apenas em solo europeu e norte-americano.
Imprensa
Cantada, de 2003, é um disco em que Tom Zé funciona como um editor chefe
de um jornal, neste caso representado por um disco, distribuindo quatorze
matérias (canções) para serem editadas (mixadas) por um seleto contingente
de oito jornalistas (produtores musicais). Os produtores musicais que ficaram
responsáveis pelas canções do disco são: José Miguel Wisnik, Max de Castro,
Jair de Oliveira, João Marcelo, Carlos Rennó, Décio Matos Jr., Paulo Lapetit
e Alê Siqueira. Em uma das faixas, quem sabe o editorial, o próprio Tom Zé
assume a produção. Ainda se referindo à produção,
três destes oito jornalistas (produtores) ficaram responsáveis por mais do
que uma matéria (canção). Sempre trabalhadas sob o olhar (ouvido) atento de
Tom Zé.
E o disco Estudando o Pagode Segregamulher e Amor,
de 2005 (produção e arranjos de Jair Oliveira e participações especiais de
Zélia Duncan, Édson Cordeiro, Suzana Salles, Patrícia Marx, Luciana Mello
e Jair Oliveira), é, de certa forma, uma retomada da proposta do disco Estudando
o Samba, de 1976: se o disco Estudando o Samba traz na capa
uma fileira de arame-farpado, em uma associação quase que direta ao cerceamento
proposto pelas fileiras do regime militar, o arame-farpado não abandona a
capa do disco Estudando o Pagode, só que, desta vez, cerceando o
corpo de uma mulher, que não se aproxima dos padrões estéticos atuais, em
uma clara alusão ao cerceamento em torno desta, que não é novidade alguma.
Se
o disco de 76 propõe uma discussão acerca do ritmo – o samba e seus aprisionamentos
– que carrega no título, em que as letras se apóiam na poesia concreta e discorrem
sobre “a felicidade” (única música que não é de Tom Zé, de autoria de Tom
Jobim e Vinicius de Moraes) passageira e acabam por cair na solidão dos versos
monossilábicos, “Estudando o Pagode”, por sua vez, também não se contenta
com uma discussão musical e com uma tentativa de elevar o “status” do ritmo
– pagode – para além das fronteiras musicais que o limita. Reflete e procura
fazer com que as pessoas reflitam sobre a condição social da mulher através
dos séculos por meio de uma opereta inacabada, "Segregamulher e Amor”,
em três atos.
Tom
Zé procura um outro espaço para olhar a mulher, não o espaço – quase comum
– da exploração reforçada pelo machismo e, muitas vezes, apoiada pela complacência
da própria mulher. Da mesma forma, desloca o olhar e procura um outro ângulo
para observar o pagode – procurando retirá-lo deste lugar-comum também associado,
em vários momentos, a “comercialização do corpo” nas suas várias formas -,
acabando por dar um refinamento único a este. No entanto, não perde de vista
o amor, através de um olhar, porque não, perdido no tempo: um olhar bem diferente
do olhar das gravadoras, em especial, diferente da forma como este “amor”
se transformou em algo produzido em série pelo mercado fonográfico: uma espécie
de filho bastardo dos versos de Vinicius de Moraes, filho que parece eternizado
em algo descartável, consumível.
Como
o texto já está se alongando demais, chegamos ao fim, como
não poderia deixar de ser, com o próprio Tom Zé, num trecho extraído
de um artigo do artista para a Folha de São Paulo (09.06.2001), em uma pequena
manifestação na qual Tom Zé parece refletir um pouco sobre a idéia de arte
e, de certa forma, não deixa de ser a maneira como procura pensar o próprio
trabalho: “A arte que se arrisca no desconhecido, no ignoto, para caminhar
nesse fio de navalha, entre o ridículo e o brilhante, precisa de leveza, de
espartana economia. Mesmo que seu referente seja a imensidão do apocalipse.
Isso a faz arte”.[17]
Até mais!
Referências bibliográficas
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