Choro: enunciado e ajunstamento

 

Luis Francisco Espíndola Camargo*

 

 

 

[...] o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.

 

Michel Foucault

 

Foucault, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996. p. 10.

 

         De modo geral, este trabalho não terá como objetivo definir o Choro como um conceito ou representação, ou seja, dizer o que é o Choro. Tentar definir o Choro enquanto categoria conceitual de gênero musical significa tomar uma determinada direção por uma pergunta, que se mantém aberta constantemente no campo de pesquisa sobre a música, pergunta que se apresenta como tentativa de ser o instrumento de apreensão de objeto que, por conseqüência, tem como promessa a resposta de uma última significação.

 

Entendemos que a resposta a esta pergunta é um modo de subjetivação de um determinado discurso que tem como resultado, tradicionalmente, a produção de sujeitos [1]. Se o choro aparenta ser de tão difícil definição é porque não se trata de perguntar o que é, mas como é, pois é pelos seus efeitos de discurso que talvez possamos analisá-lo.

 

Trata-se de um significante que funciona como laço no nível musical, que remete a uma pluralidade semântica, laço sustentado pela manutenção de uma pergunta. A pergunta sobre o que é trata ao mesmo tempo de definir o objeto do discurso e, por essa via, tem, por conseguinte, a imagem de uma última significação do próprio discurso, o seu sentido, ou em outras palavras, a direção do objeto. O movimento de fechamento desta questão aberta – o que é? -, ou mesmo a manutenção da questão, é o instrumento pelo qual se procura manter a unidade, continuidade e regularidade. É o modo pelo qual se tenta localizar e construir um sentido para o lugar que não cessa de se apresentar como não-sentido.

 

Queremos dizer que definir o Choro como forma discursiva no campo da música brasileira é, por conseqüência, um modo de manutenção e operação em um lugar histórico, de inserção em outros discursos e na tradição de uma certa racionalidade, tentativa de buscar o seu próprio fim, tanto no que diz respeito aos seus limites de enunciação como no que diz respeito a seus objetivos.

 

Portanto, este trabalho não se dirige como mais uma enunciação sobre o Choro, como mais uma produção de sentido. Não se trata de sua definição, mas daquilo mesmo pelo qual ele se define, a si mesmo, das suas margens, seja por ajuntamento ou por ajustamento, ou mesmo por uma segregação; de como se dão o seu aparecimento, as suas possibilidades de enunciação, estabelecimento e afirmação.

 

Por fim, apontamos uma pesquisa do enunciado, de seus conceitos, de suas regras, suas unidades, estratégias e, principalmente, o seu modo de subjetivação e produção de sujeitos.

        

        Temos como a primeira das fontes o discurso do livro publicado em 1936 de Alexandre Gonçalves Pinto, o Animal, intitulado O Choro – Reminiscências dos chorões antigos – contendo, conforme o autor, o perfil de todos os chorões da velha guarda, e grande parte dos chorões d’agora, fatos e costumes dos antigos pagodes, este livro faz reviver grandes artistas musicistas que estavam no esquecimento. Esta obra, conforme alguns musicólogos[2], é uma das principais fontes de pesquisa sobre o choro, tendo a sua importância, visto que é o primeiro livro que se dedica a tratá-lo exclusivamente e, além do mais, é escrito por um músico de choro, por um daqueles que denominam chorão.

 

Mas do que trata a obra do Animal? Em primeiro lugar, poderíamos dizer que trata de uma estratégia de definir o que é o choro. Verificamos que essa questão aplicada sobre a obra do Animal - o que é? – se justapõe a um caminho que visa a história de seus sujeitos e personagens, enquanto a pergunta como é toca aquilo mesmo que constitui o discurso: as regras, funções e estratégias. Ao contrário do Animal, pretendemos chegar a esse termo não tratando de quem enuncia, do sujeito enunciante, de suas biografias e perfis, mas de como é enunciado o discurso, através do sujeito do enunciado.

 

[...] o sujeito do enunciado é a posição absolutamente neutra, indiferente ao tempo, ao espaço, às circunstâncias, idêntica em qualquer sistema lingüístico, em qualquer código de escrita ou de simbolização, e que pode ser ocupada por qualquer indivíduo, para afirmar tal proposição [3].

 

Trata-se de um discurso que demonstra e, ao mesmo tempo, é uma forma de laço social característica do funcionamento do Choro, ou seja, de como este discurso visa no seu horizonte um modo de promover a subjetivação e o agrupamento de sujeitos, através da produção de um modo de repetição que é estabelecido por determinadas regras, princípios de exclusão de outros discursos, aparecimento de enunciados, conceitos, sentenças, frases, motivos e estratégias específicas para se apoderar do som. Essas estratégias e modalidades são, ao mesmo tempo, aquilo que advém do discurso e que também promove o discurso musical, determinando um modo de posição subjetiva em relação ao espectro de uma determinada linguagem que, mesmo sendo carente de semântica, não deixa de produzir sentido.

 

Trata-se de definir as coordenadas da posição subjetiva que ocupa o Choro. Ou seja, não é qualquer música, é uma música denominada brasileira reproduzida por específicos instrumentos e orquestração, que se limitam a certas aplicações e determinadas origens. Além do mais, existem certas possibilidades de posições subjetivas pertencentes a um território de existência; possibilidades que determinam certas impossibilidades através da exclusão de outros enunciados, subjetivam toda descontinuidade por diferença  e pela definição do isso que não é, a marca do dessemelhante, do não-familiar, de tudo que opera como estranheza à escuta.

 

Neste contexto, queremos mostrar como uma determinada posição em relação ao discurso submete a uma subjetivação que exclui, por um princípio de unidade, toda diferença. Ou seja, que o princípio de unidade do discurso se dá por uma segregação de outros discursos. Para tratarmos desse princípio de unidade, o que se mantém por determinado traço de ligação a um ideal subjetivo, estratégia de subjetivação, utilizaremos o conceito psicanalítico de identificação, um lugar de análise que é a própria margem do discurso, naquilo que delimita seu fim e finalidade e, ao mesmo tempo, faz aparecer toda a diferença.

  

Como é o Choro?

 

Deveríamos nos perguntar sobre o que é o choro? Verificaremos o quanto este tipo de interrogação não irá nos servir para encontrar o agrupamento das regras, estratégias, sentenças, frases, mas, ao contrário, nos levaria ao encontro da produção de uma unidade de sentido e de uma representação, ou seja, situar-se subjetivamente no discurso reproduzido. Trata-se, ao contrário, do que o choro tem como função e de como se opera a reunião de estratégias que visam a formação de identidades musicais.

 

No livro O Choro, de Alexandre Gonçalves Pinto, é fácil verificar sobre o que o próprio autor nos alerta: que se trata da realização do perfil de todos os chorões – músicos de choros – da velha guarda e dos chorões de seu tempo, de definir o que é o choro e de como se constitui através da construção de um modelo de chorão, uma verdade que remonta uma tradição, uma verdade sobre um perfil do sujeito do discurso, um modo de reconhecimento do ser, como exemplo, conforme o parágrafo que inicia o livro inscrito sobre o título Os Chorôs:

 

Quem não conhece este nome? Só mesmo quem nunca deu naquelles tempos uma festa em casa. Hoje ainda este nome não perdeu de todo o seu prestígio, apesar de os chôros de hoje não serem como os de antigamente, pois os verdadeiros chôros eram constituídos de flauta, violões e cavaquinhos, entrando muitas vezes o sempre lembrado ophicleide e trombone o que constituía o verdadeiro chôro dos antigos chorões [...] Naquelles tempos existiam excellentes músicos, que ainda hoje são citados como os cometas que passam de cem em cem annos! [4].

 

Assim como toda a tradição discursiva sobre o choro, que visa colocá-lo no lugar das raízes da música popular brasileira, o seu objeto é delineado através de uma estratégia que implica em traçar um perfil de todos os chorões, ou seja, de um sujeito do discurso, e de uma verdade que já não se encontra no presente, mas na reconstituição de um discurso do passado. Neste caso, tratar-se-ia de um discurso que, na medida que é enunciado, realiza e constitui sujeitos que, entre si, mantêm alguns traços de identificação que chamamos de significantes. É assim que o Animal inicia a sua obra, por um traço unário de ligação, o nome de um pai: Callado, o primeiro chorão que o Animal irá descrever em seu livro, o Um[5].

 

Desta forma, a possibilidade do autor é realizar uma tarefa que já está de antemão determinada, a qual consistiria na configuração de um perfil e um significante da identificação, ocupando o lugar do ideal de eu. Callado é o eu ideal de Alexandre Gonçalves Pinto. Neste discurso, não se trata de diferentes perfis, delineamentos particulares e diferenças, mas daquilo que garante uma identidade, um perfil ideal, uma unidade para o discurso, que possa servir para um ajuntamento, uma atadura do laço social: o eu ideal.

 

Callado foi um flauta de primeira grandeza, e ainda hoje é lembrado e chorado pelos músicos desta época [...] Callado, tornou-se um Deus para todos que tinham a felicidade de ouvil-o [...] Callado foi o rei da música daquelle tempo [6].

        

        Callado funciona, na construção do discurso do choro, como o estratagema significante que representa o perfil ideal de todo o Chorão, enquanto o lugar que ocupa de “o pai dos chorões”. Fazemos alusão a um trabalho recentemente publicado e registrado pela gravadora Acari Records, projeto intitulado “Joaquim Callado: o pai dos chorões”, o qual é acompanhado de um pequeno livro biográfico. Observemos algumas considerações colocadas por André Diniz:

 

É grande a importância da descoberta de 55 músicas de Joaquim Antônio da Silva Callado, considerado o pai dos chorões brasileiros (foi em sua época que se chegou à formação tradicional dos regionais de chorinhos). Afinal, sua obra conhecida gira em torno de 70 composições, conforme especialistas [7] [8].

Dentro dessa realidade [só músicas estrangeiras], eis que aparece um raio de luz e de invenção, o mulato Joaquim Antônio da Silva Callado [...] que criou o primeiro grupo instrumental de caráter carioca e popular no Brasil. Era música do gênio e da criatividade dos brasileiros [...] a partir de Callado surgiu toda uma geração de chorões [...] [9].

        

        Nesse contexto, Callado ocuparia um papel fundamental na história do Choro, o qual remontaria às suas bases de formação, composição e, principalmente, o de ideal dos músicos de choros. Ele delineia toda forma.

 

Mas por que a necessidade no discurso de um ideal de eu, o chorão, e um eu ideal, Callado? É fato que não se conseguiu definir o choro sem definir o chorão, o sujeito do discurso. É sempre muito nebulosa a abordagem que se faz do termo choro, não se conseguindo delimitá-lo como um gênero, uma forma de tocar ou um modo de formação.

 

Há uma grande discussão entre os pesquisadores sobre a gênese do termo Choro. É provável que tenha surgido, na segunda metade do século XIX, a partir da “colisão cultural” entre chôro de chorar e chorus, igual a coro em latim. No início, a palavra designava o conjunto musical e as festas onde esses conjuntos se apresentavam; mas na década de 1910 já se usava o termo choro para falar de um gênero consolidado. Hoje, ele tanto pode ser usado nessa acepção como para designar um repertório de músicas que inclui vários ritmos. O choro das últimas décadas do século XIX abarcava diversos gêneros estrangeiros abrasileirados: valsas, polcas, quadrilhas schottisch passeavam pelas flautas, cavaquinhos, violões, oficleides e clarinetes dos músicos ao sabor da cultura afro-carioca. O choro era filho da polca européia com ritmos afro-brasileiros [10].

 

No parágrafo seguinte, Diniz inicia com a definição do chorão:

 

Os Chorões, nome dado aos grupos de instrumentistas populares que tocavam choro, se apresentavam em aniversários, festas populares, casamentos e batizados, nos arranca-rabos de “cabeça de porco”, nas estalagens iluminadas à lamparina de querosene, mas também nos salões da elite imperial[11].

 

Essas associações do termo choro aos sujeitos do discurso, os chorões, são comuns entre os estudiosos. Elas tratam de definir o enunciado de um discurso a partir da representação do sujeito deste discurso, ou seja, a posição do sujeito perante o discurso e os modos de subjetivação. Vejamos outro exemplo no discurso no depoimento de Jacob do Bandolim ao MIS, em 1967:

 

Primeira versão: um musicólogo afirmou que o termo deriva de chôlo, vocábulo musical, um concerto vocal com danças [...] e por contusão com o parônimo português passou-se a grafar choro. Segunda versão (dos chorões): um grupo de instrumentos (flauta, cavaquinho, violão, bandolim, etc.), ou o ato de se reunirem para tocar, por exemplo, fui num choro, ou ainda melodia de compasso 2/4 que se caracteriza por frases sentimentais ou modulações inesperadas e, se por vezes alegre deve-se ao andamento que lhe foi imprimido. Mas, na sua feitura, um dos requisitos deve ser satisfeito, ou seja, a frase sentimental ou a modulação inesperada. Da polca, dança originária da Europa originou-se o choro. Não há registro dessa época de que essas polcas eram denominadas choros, mas quem as ouvia dizia que eram músicas de choros. O primeiro divulgador foi Joaquim da Silva Callado [...] [12].

        

        Jacob continua o seu discurso com a definição do chorão:

 

O chorão: em princípio um improvisador, passa a vida planejando ensaios que nunca realiza, porque, indisciplinado e rebelde, os transforma em memoráveis reuniões onde prefere mostrar o seu talento, emotividade e capacidade improvisadora. Não faz questão de ser remunerado, mas não dispensa onde toca um bom prato ou um gostoso trago, ou ambos ao mesmo tempo, prefere o sereno ao invés do abrigo e, até mulher em suas reuniões é para o chorão apenas um incidente [13].

        

        Espero que o leitor já esteja nos calcanhares da nossa hipótese. O choro, enquanto um termo, é um significante de ligação ou um enunciado. Ele é indefinível no âmbito de uma monodia, ou seja, por uma só voz. Portanto, trata-se de um significante que é polifônico, aproximando-se mais de uma restauração da palavra chorus do latim, coro de músicos, reunião ou assembléia [14]. É inequívoca a própria ambigüidade que carrega, pois a reunião posta pelo significante confere uma pluralidade de sentido para o sujeito do enunciado, característica do deslizamento do significante na cadeia do discurso. Desta forma, podemos dizer que ele é o enunciado do discurso, que conforme Foucault:

 

À primeira vista, o enunciado aparece como um elemento último, indecomponível, suscetível de ser isolado em si mesmo e capaz de entrar em um jogo de relações com outros elementos semelhantes a ele; como um ponto sem superfície mas que pode ser demarcado em planos de repartição e em formas específicas de um tecido que é o elemento constituinte; como um átomo do discurso [15].

        

        Foucault opera o enunciado como algo que não é suscetível de definição adequada, opera como um átimo, um instante, mas que ao mesmo tempo subjetiva e faz aparecer conteúdos concretos no tempo e no espaço.

 

O enunciado é a modalidade de existência própria desse conjunto de signos: modalidade que lhe permite ser algo diferente de uma série de traços, algo diferente de uma sucessão de marcas em uma substância, algo diferente de um objeto qualquer fabricado por um ser humano; modalidade que lhe permite estar em relação com um domínio de objetos, prescrever uma posição definida a qualquer sujeito possível, estar situado entre outras performances verbais, estar dotado, enfim, de uma materialidade repetível [16].

 

Se, sob a perspectiva de Foucault, para reconhecer o enunciado é necessário suspender no exame da linguagem o ponto de vista do significado e também do significante, por outro lado, é só através de um olhar da função de significante que podemos nos aperceber do choro enquanto uma ligação que tem sentido polifônico, ponto sem superfície capaz de entrar num jogo de relações de significação, seja como objeto da sua formação discursiva, ou mesmo com os discursos que ele exclui, característica que expede o enunciado.

 

Entendemos que o choro funciona como uma modalidade de existência que determina uma posição de sujeito denominada chorão, mantém com o sujeito uma relação determinada que se deve isolar, sobretudo das relações com as quais pode ser confundida, e cuja natureza é preciso especificar. É essa relação particular do enunciado com a posição de sujeito que caracterizamos como origem de uma identificação. A identificação é uma operação de laço com o discurso, e o discurso é aquilo que faz o laço entre os sujeitos.

 

Nesse sentido, o termo chorão remete o indivíduo a tomar uma posição de sujeito do enunciado que não é o núcleo do discurso, ou ponto de partida do fenômeno da articulação discursiva. O chorão é um lugar determinado, um ideal de eu, uma função que implica em uma posição de sujeito [17] que:.

 

É um lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente ocupado por indivíduos diferentes; mas esse lugar, em vez de ser definido de uma vez por todas e de se manter uniforme ao longo de um texto, de um livro ou de uma obra, varia – ou melhor, é variável o bastante para poder continuar, idêntico a si mesmo [...] É uma dimensão que caracteriza toda formulação enquanto enunciado [...] Descrever uma formulação enquanto enunciado não consiste em analisar as relações entre o autor e o que ele disse (ou quis dizer, ou disse sem querer); mas em determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito [18].

        

        A partir da apreensão e internalização de suas regras musicais, a forma e sua reprodução (AABBAACCA), que podem variar numa estrutura composicional de três ou duas partes, o fraseado específico da melodia, a instrumentação, as aplicações e colocações do improviso, as determinadas acentuações rítmicas, modelos de escrituras de polcas, maxixes, choros-canção, choros-samba, valsas, mazurcas, schottisch, etc. É por todas estas vias que irá se reconhecer o chorão, na medida que o sujeito reproduz as regras do jogo, se insere, subjetiva a si e a outros, neste caso, subitamente no interior daquilo que constitui o seu território, a roda de choro, que concerne o estabelecimento da música mas que também é um modo de subjetivação dos indivíduos qualificando certos caracteres psicológicos do grupo.

 

O indivíduo candidato à posição de chorão se reconhece enquanto sujeito do enunciado, sujeito das regras da linguagem e do discurso. Sendo assim, é na repetição da materialidade do discurso, na disposição dos sons que se dá toda e qualquer articulação e, principalmente, o esvaecimento da necessidade de definição do enunciado choro. Em outras palavras, não será mais necessário definir o termo choro pois, enquanto sujeito do discurso, representado, constitui signo e sentido, sendo o choro o isso que nos causa. É esta representação do ser que é o traço da identificação e marca as margens discursivas.

 

Um enunciado, conforme Foucault, tem sempre as margens povoadas de outros enunciados. Elas se distinguem do conjunto de elementos de situação e de linguagem, daquilo que se entende por contexto, que motivam uma formulação e determinam o sentido.

        

        Nossa hipótese se ajusta a uma tese de Pêcheux. O sujeito se produz nesse significante que ocupa a posição do sujeito. Por exemplo, neste caso, Callado que é uma representação do ideal de eu; ele é um eu ideal e um significante. Pêcheux chama a atenção para essa divisão que se dá no elemento do significante, ele não é nem representação de coisa nem representação de palavra, diferentemente do signo que representa uma coisa para alguém, o significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante.

 

A tese principal é a de que a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se realiza pela identificação do sujeito com a formação discursiva que o domina, identificação na qual o sentido é produzido como evidência pelo sujeito e, simultaneamente, o sujeito é “produzido como causa de si” [19].

 

Essa tese acarreta duas conseqüências. A primeira conseqüência: que o significante, que não é signo e não tem sentido, determina a constituição do signo e do sentido. Conforme Lacan, ele é efeito de uma relação metafórica, uma palavra pela outra: vemos que a metáfora se coloca no ponto exato em que o sentido se produz no não-senso [...] [20]. A segunda conseqüência: que o significante toma parte na interpelação-identificação do indivíduo em sujeito. A definição de significante – aquilo que representa o um sujeito para outro significante – acarreta que o significante não representa nada, mas sim que ele opera sobre o sujeito.

 

Também o sujeito, se pode parecer servo da linguagem, o é ainda mais de um discurso em cujo movimento universal seu lugar já está inscrito em seu nascimento, nem que seja sob a forma de seu nome próprio [21].

        

        O nome próprio Callado pode ser substituído por qualquer outro nome próprio no lugar do ideal de chorão, por exemplo, Pixinguinha, Albertino Pimentel, Jacob do Bandolim, Ernesto Nazareth. Desta forma, este nome próprio é um significante que representa o sujeito para outro significante, o chorão, enquanto um ideal de eu.

 

A centelha criadora da metáfora não brota da presentificação de duas imagens, isto é, de dois significantes igualmente atualizados. Ela brota entre dois significantes dos quais um substitui o outro, assumindo seu lugar na cadeia significante, enquanto o significante oculto permanece presente em sua conexão (metonímica) com o resto da cadeia. Uma palavra por outra, eis a fórmula da metáfora [...] [22].

 

O sujeito do discurso do choro está localizado entre dois significantes o ideal de eu e aquele o qual acolheu como sendo o significante que representa o eu ideal, um nome próprio, figura histórica do discurso do choro. É a metáfora que proporciona uma posição de sujeito, pois ela possibilita essa operação de substituição do significante, um nome acolhido pelos indivíduos que necessariamente não precisa ser o mesmo.

 

O choro como ajunstamento

 

         Como havíamos dito anteriormente, o termo choro se aproxima da palavra chorus do latim, uma reunião de músicos, de sujeitos do discurso, uma reunião de significantes. E um significante é o que representa um sujeito para outro significante. Ser sujeito do discurso é adentrar no deslizamento da cadeia subjetivando-se, ou seja, tornando-se um efeito do discurso.

        

        O termo choro apresenta essa dupla face do chorus, a de reunião de indivíduos, por uma operação comum de laço, a identificação, e a de produção de sujeitos, por um processo de representação no nível significante. Desta forma, o termo choro só pode ajuntar indivíduos ajustando-os em sujeitos do discurso. Para isso, se faz uso de uma posição de sujeito do enunciado, o termo chorão. As regras, estratégias, jogos do discurso, são os traços de identificação entre os indivíduos no nível vertical, no campo da sintaxe, enquanto os significantes são os traços de identificação no nível horizontal, no campo do léxico [23].

 

Um grupo primário desse tipo é um certo número de indivíduos que colocaram um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal do eu e, conseqüentemente, se identificaram uns com os outros em seu eu [24].

        

        Portanto, o choro é como um ajunstamento, é um enunciado que só pode ajuntar indivíduos por uma operação de ajuste, tornar indivíduos sujeitos do discurso. É por este eclipse, pela conjunção do termo ajustamento com ajuntamento, ou seja, por essa palavra ajunstamento que podemos definir como o choro opera, resposta àquilo que podemos dizer dele como sendo o enunciado de um discurso. O ajunstamento é conseqüência de uma convergência do olhar para se reconhecer o enunciado.

 

Por mais que o enunciado não seja oculto, nem por isso é visível; ele não se oferece à percepção como portador manifesto de seus limites e caracteres. É necessária uma certa conversão do olhar e da atitude para poder reconhecê-lo e considerá-lo em si mesmo [25].

        

        O enunciado é aquilo que determina toda a série de relações de regras, estratégias, modos e jogos do discurso. O choro enquanto discurso, é a forma que determina as regras e o conteúdo. Forma e conteúdo não deixam de ser a mesma coisa[26]: o repertório, a instrumentação (flauta, cavaquinho, violão de 6 cordas, violão de 7 cordas, clarinete, pandeiro e etc.), os ritmos e levadas (polcas, maxixes, choro-canção, mazurcas, schottisch, etc.), as frases melódicas, a estrutura harmônica (tonalismo), as progressões harmônicas, as modulações nas partes e entre as partes, o modo de repetição (AABBAACCA) e o discurso sobre mestres e eus ideais.

 

A forma do choro

 

         A forma é uma espécie de ajunstamento, pois coincide com o conteúdo. Ela é a coerência e organização do conteúdo sonoro, ou seja, produz um efeito de sentido para o conteúdo. É a coordenada de encontro da harmonia, melodia, ponto, contra-ponto, ritmo, andamento e outros elementos musicais. Deste modo, é que também mantém a relação entre os sons por ajunstamento, tendo em vista que o conteúdo deve ser ajuntado, ou seja escolhido pois não pode ser qualquer um, e ajustado, ou seja, organizado e disposto numa determinada ordem discursiva. A seguir, apontaremos algumas regras de organização que dão forma ao choro.

        

        Em relação ao repertório, o choro se constitui por milhares de músicas compostas por sujeitos subjetivados neste discurso ao longo de um período que vai de Callado aos compositores da nossa época. Não exclui músicas de compositores classificados em outra ordem discursiva, desde que estas músicas possuam elementos semelhantes às músicas de choros. Como exemplo dessa inclusão e adaptação, citamos as gravações realizadas dos “Clássicos em choro” pelo flautista Altamiro Carrilho e os trabalhos realizados pela Camerata Carioca nos anos oitenta que incluem gravações de concertos de Vivaldi, peças de J.S. Bach e outros compositores aparentemente estranhos a essa ordem, como Astor Piazzolla. Estas gravações pretendem marcar, de certa forma, o quanto essas músicas se aproxima do Choro, o qual pode ser qualificado como música de câmara ou de concerto, apesar de ser tocada por uma instrumentação de conjuntos de regionais (violões, cavaquinhos e bandolins). De forma inversa, Villa-Lobos ajusta elementos do choro a uma ordem discursiva da música erudita ou de concerto, através de uma adaptação as grandes orquestras, ambientação, pela extensão da forma e do seu conteúdo. Como exemplo, podemos citar as Bachianas Brasileiras e os choros de Villa-Lobos.

        

        Mas quais são as marcas para que uma determinada composição possa ser qualificada como música de choro? Em primeiro lugar, sua sintaxe deve estar regulada pela ordem tonal. Ou seja, a disposição melódica é extraída das escalas tonais onde há um centro, determinado pelo tom e a sua tonalidade. Em segundo lugar,  as cadências harmônicas devem ser orientadas por um princípio de modulação interna e externa (entre as partes), através de acordes de empréstimo modal e cadências II – V – I. Para as aberturas das modulações é comum utilizar-se de ciclos de quintas, retardando assim as resoluções no I grau e no II grau. Já entre as partes da música de choros, tradicionalmente composta por três, as modulações são externas e orientadas através das seguintes relações entre os tons: 1) Tons relativos: geralmente na relação entre o tom da segunda parte com o tom da primeira parte da música. Caracterizado pela passagem de um tom maior para outro menor, ou vice-versa, numa mesma armadura de clave. O menor relativo parte do VI grau do maior e o maior relativo parte do III grau do menor. Por exemplo, dó maior com lá menor. 2) Tons vizinhos diretos: geralmente na relação da terceira parte com a primeira parte da música. Caracterizado pela passagem de um tom maior para outro maior ou de um tom menor para outro menor através de uma progressão dominante no ciclo das quintas. A diferença entre eles é de um acidente na clave. Por exemplo, dó maior com fá maior. 3) Tons vizinhos indiretos: caracterizado pela passagem de um tom maior para outro menor, e vice-versa, onde o segundo mantém com o primeiro uma posição de relativo do tom vizinho direto. A diferença entre eles é de um acidente na clave. Por exemplo, dó maior com mi menor. 4) Tons homônimos: ocorre tanto na relação entre o tom da segunda com a primeira parte, como na relação do tom da terceira parte com a primeira parte. É caracterizado pela passagem da tonalidade maior do tom para a tonalidade menor do tom, tendo, portanto, a diferença de três acidentes na clave. Por exemplo, dó maior com dó menor. Essas relações entre partes, denominadas modulações, também acontecem no interior de uma mesma parte, entretanto, mantendo-se a armadura de clave.

        

        Pela relação de mudança na armadura de clave podemos notar que as modulações no choro progridem sempre por aproximação do tom ou da tonalidade, através de um deslocamento de semitom em uma das notas das escalas do tom, ou seja, um discurso que mantém uma certa regularidade, continuidade e linearidade, características da ordem tonal.

        

        Outra característica de sua forma está na apresentação das partes. Geralmente é apresentado como uma pequena peça composta por três ou duas partes, reproduzida na forma-rondó. Quando composto de duas partes é apresentado pela forma AA’BB’A e a coda ou final quando houver. No caso de três partes será apresentado pela forma AA’BB’CC’A e a coda ou final (quando houver). A repetição A’, B’ ou C’ é uma recapitulação das partes A, B ou C, respectivamente, conduzidas por um acorde anacrúzico. Este acorde é sempre dominante, como na música clássica. Esta recapitulação pode ser uma repetição, mas, em geral, ela é modificada, variada ou improvisada pelos próprios intérpretes. É uma regra não estabelecida na partitura. É um saber constituído na subjetivação do músico à ordem do discurso, assim como a regra que sugere variações e alterações de andamento, métrica e divisão rítmica, não determinadas nas partituras. Desta forma, um choro nunca deverá ser tocado como foi escrito. Ou seja, no nível da enunciação nunca é a reprodução do enunciado e sim a sua variação, comentário ou reinvenção que, por conseguinte, ocasionará uma nova partitura ou um novo escrito.

        

        Há, ainda, choros compostos nas grandes formas rondó-sonata como as suítes e as quadrilhas. Por exemplo, a suíte “Retratos” de Radamés Gnatalli dedicada a Jacob do Bandolim composta por quatro movimentos. Ou a quadrilha “Um Baile em Villa Boa” de Maurício Carrilho composta por cinco movimentos. Nessa quadrilha, o primeiro movimento possui ritmo de valsa na pequena forma AA’B; o segundo movimento possui ritmo de polca na forma ABB’ACC’A; o terceiro movimento possui ritmo de valsa na forma AA’BB’CC’; o quarto movimento possui ritmo de schottisch na forma ABB’A; e o quinto movimento possui ritmo de choro-canção e maxixe na forma AA’BB’A.

        

        Outra característica do choro é a existência de um motivo que produza uma coerência, lógica e fluência do discurso. Geralmente o motivo é apresentado como uma frase melódica aliada ao título da música. Por exemplo, no choro 1 x O de Pixinguinha onde a frase melódica pretende ser a citação do som da gaita de boca de Ary Barroso durante a comemoração de um gol numa partida de futebol. Este motivo aparece durante a obra através de variações do original para não gerar monotonia. Nesse sentido, o motivo é um enunciado do discurso considerado como série.

 

Existem outras regras, mas com essa pequena apresentação quisemos exemplificar que tudo aquilo que difere delas, enquanto forma e conteúdo, está para além da margem discursiva do choro. Ou seja, que é através do reconhecimento do que não se ajunsta ou se subjetiva na ordem do discurso que se pode dizer que não é do discurso. Para além dos limites da ordem do discurso estariam toda a diferença e segregação.

 

Resta concluir do ponto em que começamos o trabalho, pela citação em epígrafe de Foucault. Este discurso do qual, segundo Foucault, queremos nos apoderar é aquilo mesmo que nos toma como sujeitos. Para nos apoderar de um determinado discurso, neste caso o discurso musical do choro, é necessário, em primeiro lugar, ceder a uma espécie de subjetivação, a um modo de ser significante no discurso, ou seja, ocupar uma determinada posição de sujeito e cessão às regras do discurso. Nesse sentido, não é o indivíduo que toma o discurso, mas o discurso que toma o indivíduo na medida que produz um sujeito do discurso. Fazendo uma analogia com o poder, não são os indivíduos que tomam o poder, mas é o poder que toma os indivíduos enquanto sendo o próprio discurso a origem que causa o ser. Por esta operação de ajunstamento do discurso que os indivíduos ao mesmo tempo se ajuntam, promovendo o laço social, e se ajustam, se modelando numa determinada posição de sujeito do enunciado.

  

[1] Conforme Solange Ribeiro de Oliveira, “Difícil de definir, o choro é mais um modo de tocar que um gênero. Um jeito, um jeitinho, brejeiro, buliçoso, provocante. O nome, como sua variante carinhosa, chorinho, remete à forma lamentosa de execução, que não exclui uma aliciante extroversão. Com graça despretensiosa, seduz o ouvinte menos sofisticado e desarma o inimigo mais exigente” p.179..

[2] cf.Tinhorão, José Ramos. História social da música popular brasileira.

[3] Foucault, Michel. A arqueologia do saber, p.107.

[4] Pinto, Alexandre Gonçalves. O choro, p.11

[5] Idem, ibidem. O livro de Alexandre Gonçalves Pinto trata de descrever o perfil de uma centena de chorões da velha guarda.

[6] Pinto, Alexandre Gonçalves. O choro, p. 12

[7] Trecho de uma matéria publicada no Jornal do Brasil em 1983.

[8] Diniz, André. Joaquim Callado, o pai dos chorões, p. 56.

[9] Abin, 1997, p.2. In: Diniz, 2002, p.56.

[10] Diniz, André. Joaquim Callado, o pai dos chorões, p.20.

[11] Idem, ibidem.

[12] Jacob do Bandolim: depoimento ao MIS/RJ, 1967.

[13] Idem, ibidem.

[14] Cf. Busarello, R. Dicionário Básico Latino-Português, p. 53.

[15] Foucault, Michel. A ordem do discurso, p. 90.

[16] Idem, ibidem, p.124.

[17] Há uma diferença entre o ideal de eu e o eu ideal que podemos entender da seguinte forma, o ideal de eu é o lugar do eu ideal. O eu ideal é o discurso sobre o ideal de eu, discurso este que pode ser alterado, discurso representado pelo significante, que carrega a marca metafórica e metonímica. Por exemplo, a definição de chorão por Jacob do Bandolim é um discurso sobre o ideal de eu, é um eu ideal, assim como a descrição de Callado é também um eu ideal que ocupa o lugar do ideal de eu. Esses nomes próprios, Callado e Jacob do Bandolim, são significantes.

[18] Foucault, Michel. A ordem do discurso, p. 109.

[19] Pêcheux, Michel. Semântica e discurso, p.261.

[20] Lacan, Jacques. Escritos, p. 512.

[21] Idem, ibidem. p. 498.

[22] Idem, ibidem. p. 510.

[23] Esquema gráfico de Freud para a identificação

:

 

[24] Freud, Sigmund. Psicologia de grupo e análise do ego, p. 126.

[25] Foucault, Michel. A arqueologia do saber,  p. 128.

[26]Numa passagem que já citei em outro local, Lévi-Strauss escreve: “Forma e conteúdo são da mesma natureza, apreensíveis pela mesma análise. O conteúdo recebe da sua estrutura a sua realidade, e aquilo que chamamos forma é a ‘estruturação’ de estruturas locais de que se constitui o conteúdo”. cf. Boulez, Pierre. A música hoje 2 , p. 95.

 

 

Referências bibliográficas

 

Boulez, Pierre. A música hoje 2.  São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.

Oliveira, Solange Ribeiro de. Literatura e música. Debates. São Paulo: perspectiva, 2002.

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Freud, Sigmund. Psicologia de grupo e análise do ego (1921). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

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Lacan, Jaques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

Paes, Ana & Rabello, Luciana. Cadernos de Choro. Vol. II. Rio de Janeiro: Acari Records, 2001.

Pêcheux, Michel. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. 3º edição. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.

Pinto, Alexandre Gonçalves. O choro. Rio de Janeiro: Funarte, 1978. Fac-símile de O choro: reminiscências dos chorões antigos. Typ. Glória, 1936.

Roitman, Ari (organização). As identificações na clínica e na teoria psicanalítica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

Schoenberg, Arnold. Fundamentos da composição musical. São Paulo: Edusp, 1996.

Tinhorão, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998.

 

 

* Luiz Francisco Camargo Espíndola é mestre em Lingüística pela Universidade Federal de Santa Catarina.