Alegria, alegria:

processos de produção de sentido e construção da subjetividade

 

Álvaro Neder*

 

         A música popular é palco de permanente reordenamento das forças sociais e, principalmente, da socialização; daí sua importância nos debates acadêmicos em geral e nos estudos culturais em particular. Isto é mais verdadeiro desde o século XX, com a crescente crise das instituições tradicionalmente a cargo da socialização, como família, igreja e escola.

 

Segundo Middleton[1], vários fatores da canção intervêm na construção da subjetividade, como a estrutura sintagmática (isto é, o posicionamento dos ouvintes em um dado modo de percepção temporal pela forma da canção), emoção (processo de identificação, geralmente com o cantor, mas não restrito a ele), caracteres ou papéis (processo de identificação mais ligado à categoria social representada por um dos sujeitos da canção, como gênero, classe, etc.), e participação corporal (a estrutura rítmica e textura convidando ao seu preenchimento através de representações experienciadas do próprio corpo). No decorrer deste estudo focalizarei mecanismos especificamente musicais que exerceriam estes efeitos produtivos de subjetividade, explicitando assim a relevância de uma análise musicológica não-tradicional no âmbito da teoria crítica.

 

É evidente que não proponho afirmar aqui o que a canção em pauta é; a leitura é sempre uma questão de pertinência (contextos, necessidades e posições do sujeito ouvinte); esta visão particular implica em que o analista não mais pode apelar a uma noção científica de verdade, mas a um sentido de cumplicidade coletiva: será esta narrativa plausível? A interpretação só pode funcionar como uma forma de diálogo[2], e a análise, ela mesma, um exercício de prática significante, o fazer estimulante da imaginação crítica (o mais radicalmente liberador uso que se pode fazer da arte, a educação para o questionamento permanente do instituído), que se pode valer de uma musicologia renovada, cujo uso é virtualmente ignorado nos estudos sobre a canção popular no Brasil, e mesmo muito recente no resto do mundo.

        

O objetivo desta comunicação é explorar possíveis relações entre a canção Alegria, Alegria  de CaetanoVeloso (1968), o sujeito de sua enunciação (o cantor), o sujeito do seu enunciado (inscrito no texto), seu compositor (Caetano Veloso) e a produção da subjetividade em várias gerações de ouvintes. Justifica-se assim na análise a consideração tanto do sujeito da enunciação como do enunciado como percebidos pelos ouvintes como partes do vivente Caetano Veloso, cuja figura pública foi conscientemente construída com base nesta indistinção fundamental entre criador, criação e criatura. Como disse Silviano Santiago, em seu artigo “Caetano Veloso enquanto Superastro”:

 

O superastro é o mesmo na tela e na vida real, no palco e na sala de jantar, na TV e no bar da esquina, no disco e na praia, porque nunca é sincero, sempre representando, sempre deliciosa e naturalmente artificial, sempre espantosamente ator, sempre se escapando das leis de comportamento ditadas para os outros cidadãos (e obedecidas com receio) [3]

 

         Caetano, em seu Verdade Tropical, exprime seu desalento frente à popularidade e persistência do sucesso desta canção − “o sucesso mais amplo e mais perene entre todas as minhas composições”[4] que ele reputa abertamente como uma produção menor em seu repertório, comparável a A Banda, de Chico Buarque, que, segundo Caetano, foi menos ingênuo ao dela se descartar. Fundamental para esta análise, que busca conexões entre esta canção, a persona de Caetano vista por seus fãs como indissociada do sujeito da canção e da performance, e seu impacto na construção da subjetividade desses fãs, são as considerações de Caetano sobre a relação dos ouvintes com essa música. Relata:

 

os brasileiros ... jamais se acostumaram com o título, referindo-se a ela na maioria das vezes, não pelo primeiro verso, nem pelo último, nem mesmo pelo quase-refrão “eu vou”, mas pelo pregnante “sem lenço, sem documento”, que surge duas vezes, e em posições assimétricas, na longa letra.

 

De todo modo, “sem lenço, sem documento” corresponde à idéia do jovem desgarrado que, mais do que a canção queria criticar, homenagear ou simplesmente apresentar, a platéia estava disposta a encontrar na canção [grifo meu].[5]

 

A questão que coloco nesta comunicação é: de que maneira, se alguma, a música (falo especificamente de sons sem significado verbal, ainda que apoiados na letra e nas mediações discursivas) pode transmitir ideologias?

 

Com certeza a própria musicologia traz em seu corpo toda uma carga ideológica ligada à sua constituição histórica, que torna problemática sua utilização no contexto da canção popular. Questões como o centramento do texto, o abstracionismo, o monologismo e reificação da música pelo analista são prementes para o estudo socio-historicamente situado, mas sua abordagem não poderá ser feita aqui em virtude do espaço, sendo relevante pelo menos dizer-se que foram levadas em consideração na presente análise. Por outro lado, o uso de categorias evidentemente ideológicas (como a definição de terminações masculinas e femininas para designar as terminações em tempo forte e tempo fraco, por exemplo) serve a uma análise crítica na medida em que mostra como os textos utilizam os códigos dominantes da cultura para veicular sua ideologia, tornando-a explícita.

 

No citado livro, Caetano mostra a intencionalidade, a decisão previamente tomada de abalar as expectativas vigentes com esta canção, e com ela fazer irromper a Tropicália: “decidi que no festival de 67 nós deflagraríamos a revolução” [6]. Em face do exposto anteriormente, este é um elemento importante a ser aqui levado em conta.

 

O mérito da análise penetrante da letra e do fenômeno cultural (não da música) no calor do momento de irrupção desta canção cabe principalmente a Augusto de Campos. Em “A explosão de Alegria, Alegria”[7] , artigo escrito em 25 de novembro de 1967, seguido ao III FMPB da TV Record, onde a canção foi lançada, tendo sido classificada em 4o. lugar, Augusto situa sua importância como “desabafo-manifesto” contra o nacionalismo e o clima macartista anti-guitarra, concretizado em “desabafo-desafio” no apelo da frase “Por que não?”. Além disso, Augusto chama a atenção para a nova percepção, inscrita na letra, da existência citadina naquele momento histórico:

 

Furando a maré redundante de violas e marias, a letra de Alegria, Alegria traz o imprevisto da realidade urbana, múltipla e fragmentária, captada, isomorficamente, através de uma linguagem nova, também fragmentária, onde predominam substantivos-estilhaços da “implosão informativa” moderna: crimes, espaçonaves, guerrilhas, cardinales, caras de presidentes, beijos, dentes, pernas, bandeiras, bomba ou Brigitte Bardot. É o mundo das “bancas de revista”, o mundo de “tanta notícia”, isto é, o mundo da comunicação rápida, do “mosaico informativo” de que fala Marshall McLuhan. ... Alegria, Alegria ... se encharca de presente, se envolve diretamente no dia-a-dia da comunicação moderna, urbana, do Brasil e do mundo[8].

 

Contextualizada a canção, abordemos sua análise musicológica não-tradicional (ainda não há um nome para este procedimento). Apesar da repetição de sua forma ABA’D, e da forma narrativa adotada para analisá-la aqui, Alegria, Alegria sugere estados de espírito conflitantes e sincrônicos. Por esta razão, não parece haver uma razão especial para não considerar a repetição da música em fase com a primeira vez em que é exposta.

 

Esta canção é bastante inovadora por uma série de questões que serão levantadas adiante. Merece menção especial a prosódia: as acentuações tônicas do texto lingüístico coincidem freqüentemente com os tempos fracos da melodia, e para evitar um erro de prosódia Caetano acentua os tempos fracos (sincopa). Isto causa uma sensação de estranhamento percebida pelo ouvinte, que no entanto, não podendo especificar a origem da sensação, é posicionado irresistivelmente nesta narrativa ambígua.

 

A introdução de Alegria, Alegria já é um choque:

A análise harmônica mostra porquê: os dois primeiros acordes dos três, F e Bb, são acordes de empréstimo modal (bVII e bIII respectivamente), portanto estranhos ao tom da música, G; depois de quase 30 anos, o uso de acordes de empréstimo na MPB já se solidificou, mas na época era bastante incomum e chamou a atenção mesmo de músicos experientes. Juntando-se a irregularidade da métrica 5/4, temos um acirramento da tensão: o ouvinte está sendo levado para longe de casa (G), por assim dizer; trata-se de uma ambientação enigmática por meio da justaposição de experiências contrastantes, que busca estabelecer uma oposição com a narrativa que logo vai ter início: aqui temos três acordes que não pertencem a uma mesma tonalidade, uma métrica não-convencional,  um ritmo irregular e não-propulsivo (que não induz à dança ou ao movimento ritmado), o timbre escandaloso (para a época) de uma guitarra “distorcida”, e o resultado é uma sensação oposta à que se tem quando se reconhece firmemente o terreno onde se pisa (aonde o ouvinte é posicionado após a cadência perfeita, no 5o. compasso). Esta sensação seria adequada aos propósitos de Caetano, quando ele pensava em sacudir o que definia como o marasmo nacionalista através de uma estratégia de enfrentamento e choque. Contrastando com esta ambientação inquietante, uma sensação de apaziguamento é efetivamente convocada quando o cantor faz sua aparição:

Aqui, o ponto central é Caetano; seu canto, em uma extensão bastante curta (B2/A3), mimetiza uma fala coloquial em tessitura, andamento, timbre,  interpretação, conteúdo lírico e mesmo melodia: o ouvinte está defronte a uma pessoa que descreve uma situação cotidiana, alguém que perambula sem pressa, calmamente, pelas ruas de uma cidade. O ritmo de marchinha sugere que a cena se passa no Brasil, e confirma a sensação de familiaridade; mas todas as frases musicais da canção são irregulares (5 compassos, nesta primeira), e os timbres de uma banda de neo-rock inglês (os argentinos Beat Boys) nos dizem que os tempos são outros e que a situação não poderia estar ocorrendo nos anos 40 e 50, época em que a popularidade deste gênero foi muito explorada no cinema e no mercado fonográfico. Estes timbres do acompanhamento instrumental são no entanto suaves, e sua intensidade (volume) situada bastante abaixo da do cantor sugerem uma relação figura/fundo onde Caetano está em primeiro plano e não tem esta primazia disputada por nenhum outro evento. A tonalidade firmemente estabelecida em G com o uso exclusivo de graus tonais na harmonia não permite a mínima ambigüidade, e o efeito geral é de familiaridade: Caetano está movendo-se em um percurso que continuamente retorna ao e parte do lar (G) para outros ambientes, mas estes são reconhecíveis, parte de sua realidade cotidiana. A sucessão tônica/subdominante/dominante confirma a tonalidade e posiciona o ouvinte no modo sintagmático linear de consciência subjetiva do tempo, de acordo com o citado Middleton. O cantor caminha contra o vento (do nacionalismo/conservadorismo) sem lenço, sem documento (sem preocupar-se com as convenções sociais ou normas burocráticas): esta caracterização é tão importante que é novamente lembrada na segunda vez. O “sol de quase dezembro” é um sol quente; sua presença deve ser assinalada, pois ele é o elemento que unifica todas as diferentes “etapas” da narrativa que a canção enseja. O personagem é anticonformista como vimos, mas movimenta-se sem maiores abalos psíquicos até aqui. No entanto, “eu vou”, que ocorre no 8o/9o. compassos, já demonstra um estado de espírito peculiar, semelhante ao descrito por Augusto em relação a “Por que não”: um desafio dirigido contra as expectativas estéticas vigentes. É interessante notar que não se trata da calma e inabalável resolução de alguém que esteja seguro de seu resultado. Uma proposição afirmativa “eu vou”, de acordo com a paralingüística (o estudo semiótico das entonações da voz que fornecem um significado excedente ao conteúdo lingüístico), teria que ser descendente; o intervalo de segunda maior ascendente de “eu vou” poderia se aplicar adequadamente à entonação de uma hesitação, de uma pergunta — ou de uma ameaça insegura: o enunciador sente-se forçado a uma ação reativa, mas não está seguro de seu resultado, precisa munir-se de energia para arrostar uma força oposta considerável. Conquanto não haja uma prevalência total do discurso oral sobre o canto (de fato, muitas vezes ocorre justamente o contrário, a música impondo-se sobre as palavras cantadas, e também ocorram situações intermediárias), neste caso e em outros nesta música, em função da frase como um todo e do contexto, pode-se afirmar que esta interpretação não é temerária. Outro elemento notável da frase musical é sua terminação masculina, em termos musicológicos. Além disso, a análise mostra que a introdução foi elaborada a partir deste motivo, enquanto o motivo harmônico da introdução foi aqui utilizado por elaboração: F D; esta é uma maneira musical de comunicar a sensação de suspense angustioso sentida anteriormente. Deve-se notar também, neste trecho, uma intervenção melódica (não-harmônica) da guitarra em D4 C4 D4.

Esta bordadura inferior imita exatamente o ritmo de alguém dizendo “eu vou”; mas estando em região bem mais aguda, e aqui repetida duas vezes, com um pronunciado tensionamento rítmico, o significado de urgência é sensivelmente reforçado. Tagg[9] interpreta tais intervenções solistas de acordo com a dualidade melodia/acompanhamento (conceito básico da música ocidental desde a Renascença, e especialmente da música popular) refletindo a dualidade figura/fundo, ou a indivíduo-personagem/ambiente-setting, geralmente encenando a dialética indivíduo/sociedade. Em uma leitura bakhtiniana, pode-se pensar tais relações em termos de vozes. Assim, enquanto Caetano (a guitarra) expressa sua intencionalidade, o acompanhamento de seu grupo está estático, e ao tempo em que a guitarra emite o segundo “eu vou” todo o grupo está calado, e sua voz se sobressai. Teríamos aqui então a superposição da vontade individual ao grupo.

 

A segunda frase, semelhante à primeira em termos musicais, enumera a visão fragmentária de um morador de um centro urbano, assolado por uma carga de informação maior do que a que pode processar de forma coerente, e o resultado é a justaposição de informações díspares, como crimes, espaçonaves, guerrilhas,  Cardinales e coca-cola; e apesar de estar-se aludindo a uma etapa de grande avanço tecnológico, modernização e rapidez na troca de informações, o sujeito não deixa de constatar a permanência de antigas mentalidades através da insistência d’“ela” com relação ao casamento, o que diz respeito a uma contradição entre presente e passado; no entanto o estado de tranqüilidade psíquica do protagonista permanece, apenas perturbado pelo desejo (mesclado de angústia) de afrontar os critérios estéticos com o recorrente e hesitante “eu vou”, salientado pelo já aludido motivo melódico e harmônico lembrado na introdução. Já na terceira frase (que se inicia com “em caras de presidentes” e “por entre fotos e nomes”), observamos um grande contraste. Ocorre um tensionamento de vários aspectos da canção. O sujeito se exalta; sua “fala”, mantida anteriormente numa região que oscilava entre D3 e B2, subindo ocasionalmente até o G3, aqui sobe para B3/G3; sua interpretação vocal se torna menos coloquial, aproxima-se da veemência; o ritmo harmônico se acelera, potencializando a tensão e quebrando o padrão de movimento lânguido sugerido pela marchinha em favor de uma cinésica mais rígida; paralelamente, o conteúdo lingüístico é contínuo ao musical, com a enumeração caótica de caras de presidentes, beijos de amor, dentes, pernas, bandeiras, bomba e Brigite Bardot, e, na segunda vez, fotos, nomes, livros, fuzil, fome, telefone, coração do Brasil — o que, nesta frase, segundo Heloísa Buarque[10], é uma referência crítica aos intelectuais de esquerda. Poder-se-ia dizer que o sujeito, frente ao pressentimento concreto de que a situação do país e do mundo enfrentava radicais mudanças, exalta-se tanto com esta repentina sobrecarga sensorial quanto com a premência auto-instituída em ser parte destes novos ventos e modificar os preceitos normativos vigentes.

Com a canção vindo até o compasso 19 em um crescendo, justamente neste momento ocorre um relaxamento total, sensível em todos os níveis da canção: movendo-se descendentemente, de G4 a A3 (com uma nota de passagem G3), o canto parte do ponto culminante da canção para atingir uma nota mediana no âmbito escalar, produzindo um afrouxamento melódico (enquanto as imagens veiculadas pela letra se deslocam das cenas urbanas restritas ao visível, para o devaneio, para um espaço mental, muito mais amplo, mimetizado por este largo âmbito melódico, o maior até aqui); a interpretação vocal acompanha esta mudança de caráter na peça, tornando-se preguiçosa, distraída, frágil, dengosa; a paralingüística desta oitava descendente é compatível com a de uma frase dita durante um bocejo; o início da frase é anacrústico, evitando o tempo forte, e a terminação da frase é feminina; o ritmo melódico se afrouxa e se torna fluido, completamente não-acentuado; o afrouxamento rítmico se comunica ao ritmo harmônico, que nesta frase que vai do compasso 15 ao 20 atinge o máximo de relaxamento em toda peça; aqui também é a primeira vez em que surge um acorde menor, com suas conotações opositivas ao caráter impositivo, firme, dominante anexadas ao acorde maior; por 5 compassos suceder-se-á um monótono Im-IV7 (modo de mi dórico) com um acorde por compasso: o modo sintagmático circular de consciência subjetiva do tempo, de acordo com Middleton; os instrumentos acompanhantes também modificam totalmente o desenho realizado até então: até aqui moveram-se resolutamente para adiante, num processo narrativo de tensão e relaxamento; neste momento, o baixo permanece estático na fundamental sustentada de Em, enquanto o órgão retoma o arpejo descendente do canto com B G E B A em um calmo passo de semínimas; em A7, o baixo nem mesmo dá a fundamental, oscilando inconclusivamente em uma frase acéfala C# E C# C# E, enquanto o órgão apenas sustenta uma semibreve em A; a guitarra, quase inaudível, apenas arpeja o acorde na cabeça de cada compasso, e o pandeiro responde no contratempo a cada nota do órgão:

O que está em curso é o oposto do controle evidenciado nas seções anteriores; trata-se de um diálogo, onde cada instrumento é nitidamente ouvido pelos seus pares, embora o cantor continue dominando o espaço com seus solilóquios solipsistas; e todos os timbres aqui são totalmente suavizados e não acentuados. De maneira geral, a sensação resultante é oposta à que se teve até então, de um movimento firmemente direcionado teleologicamente; os instrumentos do acompanhamento estão desvinculados da obrigação de prover um suporte compacto, unificado, homogêneo, coeso a Caetano, e passam ou a comentá-lo ou a dialogar entre si; a fragmentação e esfacelamento do ritmo do acompanhamento, a profusão de colcheias não-acentuadas no canto, a repetição cíclica, monótona, não-variada, de todos os elementos da canção — inclusive o canto, tudo impele a uma negação de um objetivo a ser alcançado (mesmo que preservado o estatuto individual do cantor, representado pelo canto claramente discernível das “vozes” do acompanhamento e situado acima delas, o que poderia ser entendido como uma resistência inconciliável à idéia de coletivo), impele a uma obliteração do tempo medido e diferenciado, e predispõe a uma percepção alternativa, onde a passagem do tempo não se daria pelo relógio, dias, meses, anos, mas pelos ciclos de sol e lua, regidos pelo corpo e suas sensações imediatamente prazerosas, um sentimento de abandono e volúpia expresso na languidez da voz e mesmo na letra: “O sol nas bancas de revista / Me enche de alegria e preguiça”, em uma sensualidade de quem não consegue compreender “quem lê tanta notícia”. Na segunda vez, surge o único verbo situando uma ação no passado: “Ela nem sabe até pensei / Em cantar na televisão”, como se dissesse mas “O sol é tão bonito...” Logo se deduz que são duas identidades conflitantes do mesmo sujeito, provavelmente organizadas em torno de um conflito entre, em um pólo, a ambição de participar do mundo competitivo, da lógica do capital onde a iniciativa individual é valorizada, e o adiamento dos prazeres do corpo recompensada materialmente com a possibilidade de riqueza e psiquicamente com a promessa da fama; e no outro pólo, uma vivência voltada para o prazer imediato, para a libertação das constrições impostas pela sociedade da disciplina, do controle, do relógio, da satisfação postergada:

 Este conflito pode ser entendido como uma tese/antítese onde a síntese tem lugar do 4o. tempo do compasso 24 ao final do 32. Aqui ocorre um fenômeno curioso, mais uma evidência da complexidade da escrita caetaniana: a quarta frase musical termina na primeira colcheia do compasso 25, enquanto o “eu vou” lingüístico aí localizado pertence à frase seguinte. O que está ocorrendo é uma imbricação, denominação retirada da escrita estritamente polifônica para designar, aqui, a relação entre melodia e letra. O efeito é de conjunção, continuidade, localização no mesmo indivíduo de estados psíquicos contrastantes. Voltando à idéia de síntese mencionada acima, a frase que aí termina/se inicia o faz de forma inequívoca: o “eu vou” da letra (nas duas vezes) agora não é mais inseguro; o intervalo compreendido entre as notas A (“Eu”) e G (“vou”) é descendente, afirmativo: o sujeito fez sua opção, demonstra intencionalidade pela primeira vez (“Eu quero seguir vivendo”, descendente, muito diferente de “até pensei”, ascendente), está preparado para o enfrentamento, abdicou da mítica celebração imediata do corpo em favor de uma possível recompensa situada no futuro do tempo medido; o início anacrústico favorece a comunicação de impulso energético; a idéia musical básica de toda a música anterior à frase contrastante é retomada, com o implícito abandono  das proposições antitéticas — e com elas, do diálogo; esta retomada é feita através da retomada do tematismo de A, transposto uma quarta justa acima, o que produz uma sensação de maior veemência, enquanto a transposição paralela da harmonia, ou a modulação para o tom da subdominante, evidencia que o sujeito da canção pode contar com um grupo coeso sob sua liderança; a acentuação pronunciada contribui para o sentimento de empolgação crescente, que se agudiza com o ponto culminante parcial alcançado no último membro desta 5a. frase, representado por [amo]res vãos (C4 D4, compassos 28-9), enquanto temos na harmonia os mesmos acordes da introdução, F Bb e D.

O mecanismo evocado pelo uso do motivo harmônico da introdução que parece estar em curso é, em princípio, no plano retórico, a metáfora, devido à analogia entre os elementos; mas, na realidade, o que se observa é a metonímia, com a contigüidade proporcionada pelo deslizamento da energia desencadeada pela introdução para este estágio da canção, e que transfere ao ouvinte a mesma sensação. Aqui, no entanto, ela já é compreensível não mais em termos de total estranhamento. Com a reiteração do motivo harmônico e sua posição sintática, posterior à apresentação dos outros elementos da canção e finalmente entretecido [o motivo] a eles, observamos a familiarização do que era estranho: a possibilidade de massificar procedimentos de vanguarda e estabelecer um novo senso comum, uma nova normatividade estética. Com efeito, a próxima frase, já agora retornando à tranqüilizadora tonalidade de G com a cadência perfeita, inicia-se com uma novidade fundamental: Caetano se cala e o coro dos músicos reproduz as diretrizes ditadas anteriormente por ele, juntando-se em um “eu vou” em D4 agora não mais tentativo, mas abertamente entusiasmado, triunfante, conclamatório:

Tem-se a impressão de que um movimento coletivo, de apoio às mudanças sugeridas, ganha corpo na comunidade; com certeza, o ouvinte é impelido a juntar-se a ele; mais incisivamente, o coro canta o segundo e terceiro membros desta frase, atingindo o ponto culminante da canção com dois “por que não?” francamente potentes e desafiadores. Aqui, o motivo melódico da introdução foi retomado, por retrógrado-inverso e transposição.  Mas, apesar de o cantor haver se calado nesta frase, o Caetano/guitarra “distorcida” dá a última palavra, à qual o coro se cala respeitosamente, antes da superposição, na finalização da canção, do motivo harmônico da introdução, agora resolvido definitivamente, afirmativamente, descendentemente, sem nenhuma ambigüidade, com seu elemento inquietante plenamente assimilado e mesmo desejado pelo ouvinte: a canção é a narrativa empolgante de um convencimento sutilmente bem-sucedido.

        

 

[1] Middleton, R. Studying popular music, p. 251.

[2] Middleton, Richard. Reading pop, p. 13.

[3] Santiago, Silviano. “Caetano Veloso enquanto superastro”. In: Uma literatura nos trópicos, p. 141.

[4] Veloso, Caetano. Verdade tropical, p. 167.

[5] Idem, ibidem, p. 167.

[6] Idem, ibidem, p.165.

[7] Campos, Augusto. “A explosão de Alegria, Alegria”. In: Balanço da bossa, p. 151-167.

[8] Idem, ibidem, p.157.

[9] Tagg, P. Kojak – 50 seconds of television music: toward the analysis of affect in popular music, p.123.

[10] Hollanda, Heloísa Buarque. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde 60/70, p.55.

 

Referências bibliográficas

 

CAMPOS, A. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1993.

GUERRA-PEIXE, César. Melos e harmonia acústica. Rio de Janeiro: Vitale, 1988.

GUERREIRO DE FARIA Jr., A. Fraseologia, inédito [s.d.].

HOLLANDA, H. B. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde 60/70. São Paulo: Brasiliense, 1980.

MIDDLETON, R. Studying popular music. Philadelphia: Open University Press, 1997.

TAGG, P. Kojak — 50 seconds of television music: toward the analysis of affect in popular music. Gothenburg, 1979.

VELOSO, C. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

__________. Alegria, Alegria. LP Philips R 765026, 1968.

MIDDLETON, Richard (ed.) Reading pop. Approaches to textual analysis in popular music, Oxford and New York, Oxford University Press, 2000.

SANTIAGO, Silvano.Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2 ed. Rio de Janeiro: Perspectiva, 1978.

 

 

* Álvaro Neder é doutorando em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

 

Anexo 1: Letra de Alegria, Alegria

 

Caminhando contra o vento

Sem lenço, sem documento

No sol de quase dezembro

Eu vou

O sol se reparte em crimes

Espaçonaves, guerrilhas

Em Cardinales bonitas

Eu vou

Em caras de presidentes

Em grandes beijos de amor

Em dentes, pernas, bandeiras

Bomba e Brigitte Bardot

O sol nas bancas de revista

Me enche de alegria e preguiça

Quem lê tanta notícia

Eu vou

Por entre fotos e nomes

Os olhos cheios de cores

O peito cheio de amores vãos

Eu vou

Por que não, por que não

Ela pensa em casamento

E eu nunca mais fui à escola

Sem lenço, sem documento, eu vou

Eu tomo uma coca-cola

Ela pensa em casamento

E uma canção me consola

Eu vou

Por entre fotos e nomes

Sem livros e sem fuzil

Sem fome, sem telefone

No coração do Brasil

Ela nem sabe até, pensei,

Em cantar na televisão

O sol é tão bonito

Eu vou, sem lenço, sem documento

Nada no bolso ou nas mãos

Eu quero seguir vivendo, amor

Eu vou

Por que não, por que não…

 

Anexo 2: Partitura de Alegria, Alegria