Ritmo e metro:
espacialização da experiência musical
Alberto Heller*
O termo Ritmo é provavelmente um dos mais incompreendidos no âmbito musical. Costuma ser entendido como uma espécie de pulsação, ou seja, como uma ordenação da música em batidas – ou pulsos - periódicos e regulares (o que caracteriza, na verdade, a divisão métrica). Desta forma, examinaremos mais detalhadamente essa diferença, bem como suas implicações, muito mais sérias e profundas do que possa parecer num primeiro momento. Vejamos primeiramente algumas definições de ritmo no Novo Dicionário Aurélio da língua portuguesa:
ritmo
. [Do gr. rhytmós, 'movimento regrado e medido', pelo lat. rhytmu.]
S. m. 1. Movimento ou ruído que se repete, no tempo, a intervalos regulares, com
acentos fortes e fracos: o ritmo das ondas, da respiração, da oscilação
de um pêndulo, do galope de um cavalo. 2. No curso de qualquer processo,
variação que ocorre periodicamente de forma regular: o ritmo das marés,
das fases da Lua, do ciclo menstrual. 3. Sucessão de movimentos ou situações
que, embora não se processem com regularidade absoluta, constituem um conjunto
fluente e homogêneo no tempo: o ritmo de um trabalho. 4. Nas artes, na
literatura, no cinema, etc., a disposição ou o desenvolvimento harmonioso, no
espaço e/ou no tempo, de elementos expressivos e estéticos, com alternância de
valores de diferente intensidade: o ritmo de uma escultura, de uma peça
de teatro. 5. Arte Poét. Num verso ou num poema, a distribuição de sons de modo
que estes se repitam a intervalos regulares, ou a espaços sensíveis quanto à
duração e à acentuação. 6. Mús. Agrupamento de valores de tempo combinados de
maneira que marquem com regularidade uma sucessão de sons fortes e fracos, de
maior ou menor duração, conferindo a cada trecho características especiais. 7.
Mús. A marcação de tempo própria de cada forma musical: ritmo de marcha,
de valsa, de samba. 8. Mús. O conjunto de instrumentos de percussão e outros
similares que marcam o ritmo (6) na música popular; bateria. 9. Bras. O conjunto
de ritmistas [v. ritmista (1 e 2)]. Ritmo circadiano. Biol. 1. Ritmo
espontâneo, próprio de cada espécie animal ou vegetal, a partir de certa fase
evolutiva, observado em condições ambientais constantes, mas não influenciável
por iluminação, e que se manifesta de acordo com o momento do dia, por variações
periódicas das funções biológicas (respiração, circulação, digestão, secreções
endócrinas, etc.); pode ser observado até mesmo em nível celular. Ritmo de
galope. Card. 1. Desdobramento da primeira bulha cardíaca, de modo que, pela
ausculta, se ouvem três ruídos cardíacos, separados por pausas; ruído de galope.
Em ritmo de Brasília.
É preciso esclarecer primeiramente nessas definições por que à idéia original de ritmo enquanto movimento foram acrescentadas as idéias de periodicidade e de regularidade, bem como esclarecer de que forma e sob quais parâmetros esses termos devem ser compreendidos. O “movimento regrado e medido” do rhytmós pode facilmente induzir o leitor a uma concepção simétrica de tempo e de espaço, mas a possível mensurabilidade destes não implica nem numa regularidade em termos de igualdade nem numa regularidade em termos de simetria. Segundo Lorenzo Mammi,
ritmo é uma palavra grega que deriva de reo, “fluir”. No seu primeiro e mais amplo significado, o ritmo é portanto a maneira com que um evento flui no tempo. Não há nesse termo nenhuma referência necessária a regularidades periódicas ou a relações matemáticas entre intervalos. Todavia, o ritmo se torna mais interessante, para o pensamento grego de origem pitagórica ou platônica, na medida em que se descobre nele uma regularidade e uma proporção que o aproxime dos movimentos perpétuos. A teoria rítmica dos gregos será portanto um esforço contínuo para a regularização e a matematização das durações. (...) Os latinos absorveram a teoria musical grega numa fase já avançada de matematização, tanto que cometeram um erro de tradução revelador: interpretaram a palavra ritmos não como um derivado do verbo reo, “fluir”, mas como uma deformação do substantivo arítmos, “número”, e verteram no latim numerus. A conseqüência foi uma mudança de perspectiva: para os gregos, os valores numéricos eram algo que podia e devia ser extraído do fluir dos eventos, mas não era dado de antemão; para os latinos, ao contrário, são rítmicas apenas aquelas durações que já se apresentam como quantidades regulares, numéricas. Todos os movimentos irregulares ficam com isso fora do campo do conhecimento.[1]
Esse fato é de fundamental importância para que possamos compreender a dificuldade existente em relação à compreensão do ritmo, termo geralmente usado muito mais em sua concepção de regularidade (arítmos) que de fluxo (reo). No caso da música, a simetria perfeita entre a duração dos pulsos é apenas aparente. Mesmo um elemento rítmico que se repita de forma aparentemente igual nunca é exatamente igual. Como já foi apontado por Heráklito (fragmento 91),
em rio não se pode entrar duas vezes no mesmo, nem substância mortal tocar duas vezes na mesma condição; mas pela intensidade e rapidez da mudança dispersa e de novo reúne (ou melhor, nem mesmo de novo nem depois, mas ao mesmo tempo), compõe-se e desiste, aproxima-se e afasta-se.[2]
No caso da música, a ilusão de simetria é especialmente evidente na notação musical: escritos, todos os valores e durações são aparentemente iguais entre si: semibreves, mínimas, colcheias etc. Uma série de fatores intervém, porém, durante a execução, diferenciando-os mesmo que imperceptivelmente.
Uma igualação na prática entre as durações musicais consideradas teoricamente como “iguais” não é nem possível nem mesmo desejável, pois as sutis diferenciações, conscientes ou inconscientes, desejadas ou involuntárias, são na verdade responsáveis por um incalculável valor informativo e expressivo. A simetria perfeita entre as durações musicais acarretaria em total redundância e conseqüente monotonia e empobrecimento do discurso musical. Todo discurso, seja ele oral ou musical, evita sistematicamente a repetição vazia de novas informações (a não ser nos raros casos onde precisamente a falta de novas informações é a informação desejada, ou onde a repetição tem uma função estética por si, como no caso da música minimalista – ouça-se Steve Reich, por exemplo).
E realmente, durante séculos a música ocidental foi regida pelos preceitos da retórica, da ars bene loquendi, tanto que falamos em retórica musical (o ponto de partida quase sempre é a retórica de Aristóteles, assim como de Cícero, Quintiliano, Boécio e outros). A retórica num discurso busca, entre outras coisas, meios para a obtenção de um bom equilíbrio entre informação e redundância – pois, assim como a falta de informações pode incorrer em monotonia, o excesso pode acarretar confusão.
A fim de garantir tal equilíbrio, Mattheson, em sua obra Der vollkommene Capellmeister (O exímio mestre de capela), de 1739, uma das principais fontes sobre retórica musical, expõe como componentes de um discurso o inventio (o conteúdo, as idéias), a dispositio ou elaboratio (a organização das idéias), a decoratio (a ornamentação do discurso) e a pronuntiatio ou elocutio (a execução, a interpretação do discurso). Em outras palavras, também se poderia dizer que
a retórica é um conjunto de desvios suscetíveis de autocorreção, isto é, que modificam o nível normal de redundância da língua, transgredindo regras, ou inventando outras novas. O desvio criado por um autor é percebido pelo leitor graças a uma marca, e em seguida reduzido graças à presença de um invariante. O conjunto dessas operações, tanto as que se desenvolvem no produtor como as que têm lugar no consumidor, produz um efeito estético específico, que pode ser chamado ethos e que é o verdadeiro objeto da comunicação artística.[3]
É na sutil diferenciação das durações e ênfases do discurso que encontramos a expressão artística em música. O que e o como da comunicação se combinam num grande complexo informativo, no qual o como assume uma função essencialmente expressiva e qualitativa (na verdade, o que e o como fundam-se mutuamente na expressão, como veremos).
Ao falarmos em ‘diferenciação das durações’ estamos nos referindo a dilatações e contrações temporais: a expressão requer no discurso diferenciações quantitativas - ora “mais”, ora “menos” tempo – e qualitativas. É nesse sentido que podemos falar num caráter temporal do discurso.
O desafio último, tanto da identidade estrutural da função narrativa quanto da exigência da verdade de toda obra narrativa, é o caráter temporal da experiência humana. O mundo exibido por qualquer obra narrativa é sempre um mundo temporal. Ou: o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal.[4]
Repetimos: a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal. Ricoeur nos fala em experiência temporal; o tempo experienciado, o tempo vivido (expressão tão querida da fenomenologia). As variações temporais (qualitativas e quantitativas) da narrativa não são mero ornamento, mas fazem parte integrante do seu conteúdo.
Mas e quanto a esse tempo, que se vive: que tempo é esse? É o tempo do relógio, o tempo psicológico ou um terceiro tempo, algo como um tempo em si? Podemos dizer que a música se estende no tempo ou seria mais apropriado dizer que, porque a música se estende, há tempo? Perguntas delicadas, que vêm entretendo há séculos filósofos e cientistas.
Comecemos considerando a música no tempo – a música não deixa de ser uma narrativa, e, assim como esta, se estende no tempo. É por isso que podemos dizer que uma música dura sete minutos enquanto outra dura quarenta, sendo a primeira relativamente curta e a segunda relativamente longa, assim como se pode dizer o mesmo de um discurso ou de uma peça teatral ou mesmo de um filme. Nesses casos, há um tempo concreto de enunciação, um tempo mensurável - o tempo do relógio; o enunciador precisou de um tempo x para transmitir a mensagem e o observador/ouvinte precisou desse mesmo tempo para recebê-la.
O mesmo não se pode dizer do tempo psicológico, onde obviamente os sete minutos de uma peça não são igualmente “longos” para dois ou mais ouvintes/observadores: uns dirão que o tempo passou rápido, outros dirão que o tempo demorou a passar. Sobre isso a relatividade e a psicologia já nos deram numerosas análises.
A questão que nos interessa aqui não é simplesmente a constatação (óbvia) da relatividade da percepção temporal, mas sim compreender como o fenômeno temporal e o fenômeno perceptivo se relacionam. Ou ainda:
analisar o tempo não é tirar as conseqüências de uma concepção preestabelecida da subjetividade; é ter acesso, através do tempo, à sua estrutura concreta.[5]
Ao tentarmos compreender o tempo na música, precisaremos distinguir entre dois termos: ritmo e metro, o metro enquanto medida “objetiva” e mensurável do tempo, o tempo ‘do relógio’ (Kronos), e o ritmo enquanto movimento expressivo no espaço originando um tempo próprio, comumente denominado “subjetivo”, mas que, cremos, é também objetivo, e não “psicológico”, sendo sua objetividade baseada, porém, em outro tempo que não o cronológico – um tempo ao qual poderíamos talvez chamar de Aiôn.
Nome próprio, Aiôn é, na mitologia grega, filho de Kronos e Filira. Enquanto nome comum, aiôn pode assumir dois sentidos: o primeiro é o de “tempo sem idade, eternidade”, que posteriormente se associou ao aevum latino; o segundo é o de “medula espinhal, substância vital, esperma, suor”. A entidade alegórica pode, segundo José Cavalcante de Souza em sua tradução do termo tempo nos fragmentos de Heráklito[6], ser compreendida nos dois sentidos. Porém não nos interessa tentar “batizar” cada um desses tempos com algum nome, de forma que não nos utilizaremos de nenhuma espécie de contraposição entre Kronos e Aiôn, contraposição que envolveria o risco de uma simplificação perigosa. Mais útil, nos parece, é partir de nossas experiências cotidianas do tempo, talvez começando pelo tempo que nos é mais costumeiro: o tempo do relógio.
Que experienciamos nós do relógio sobre o tempo? O tempo é algo no qual um ponto-agora pode ser fixado, de tal forma que sempre há dois pontos temporais, um antes, outro depois. Nisso não estão distinguidos no tempo um ponto de agora do outro. Ele é enquanto agora o possível antes de um depois, enquanto depois o depois de um antes. (...) Medida nos dá o de-quando-até-quando. Um relógio mostra o tempo – agora são nove horas; trinta minutos desde que aquilo ocorreu. Em três horas será meio-dia. Porém o tempo agora, no qual olho para o relógio: o que é esse agora? (...) Disponho eu sobre o agora? Sou eu o agora? É qualquer outro o agora? Então seria o tempo eu mesmo, e qualquer outro seria o tempo. (...) Sou eu o tempo, ou apenas aquele que o diz?[7]
Em todas essas perguntas aparece um “eu”: o tempo “para mim”. Como bem observou Merleau-Ponty, se a metáfora de Heráklito sobre o rio funcionou até hoje, foi porque sempre colocamos um observador à margem desse rio testemunhando seu curso. O tempo supõe uma visão sobre o tempo; ele ‘não é um processo real, nem uma sucessão efetiva que eu me limitaria a registrar; ele nasce de minha relação com as coisas’[8].
A ‘sucessão efetiva que eu me limitaria a registrar’ refere-se à percepção do tempo relacionada à mudança: sei que passou o tempo porque o sol não está mais no mesmo lugar; através do movimento e da mudança é que tenho a percepção da passagem e, conseqüentemente, do tempo. Quando Aristóteles relacionou tempo com movimento, porém, não escreveu que o tempo era o movimento; ele escreveu que o tempo era uma das determinações essenciais do movimento, isto é, sua medida. Se o “mesmo movimento” acontece com durações diferentes, simplesmente ele não é mais o mesmo movimento.[9] Não pode ser o mesmo movimento, pois cada movimento envolve outra relação, outra temporalidade, outra expressão.
A expressão se dá no movimento – poderíamos talvez até dizer: ela é o movimento. Compreender o movimento é ter acesso às nossas relações espaciais, é compreender nossa vida como espacialidade expressiva. A própria vida, segundo Mário de Andrade,
se manifesta pelo movimento. O homem para compreender o movimento o organizou. O organizou de duas maneiras: uma abstrata consciente a que a gente dá o nome de tempo (minutos, horas, dias, semanas, etc.) e outra expressiva subconsciente que tem o nome de ritmo. O tempo é a organização abstrata do movimento. O ritmo é a organização expressiva do movimento.[10]
No trecho acima, Mário de Andrade diferencia ritmo de tempo, este último subentendido por ele como metro, como divisão regular, periódica, simétrica, cronológica. O metro define uma quantidade, um número. Vou de uma nota à outra, por exemplo, a cada segundo, ou a cada meio segundo. Já o ritmo implica em que eu saiba como ir de uma nota à outra: com que tensão, com que caráter, com que intensidade (com que intencionalidade!), e com que duração, pois, por motivos expressivos, algumas notas precisam de “mais tempo” que outras (em música, o termo técnico para essa flutuação do tempo é rubato, que, em italiano, significa roubado: “rouba-se” uma certa duração do tempo – provocando uma aceleração e conseqüente intensificação – e compensa-se depois desacelerando, “devolvendo” o tempo roubado. O termo rubato caracterizou-se como tal durante o século XIX, mas na prática existe, certamente, desde sempre – no período barroco, por exemplo, era denominado agógica).
É justamente no ir de uma nota à outra que reside o grande problema musical, e não no “trabalho braçal” do produzir notas. No caso do piano, mesmo um bebê tem força suficiente para abaixar as teclas. A dificuldade musical não se encontra no baixar as teclas nem nas notas isoladas, mas sim entre as notas, na relação de uma para com as outras (veremos mais detalhadamente no capítulo 4 desta dissertação a questão da relação entre o todo e as partes, tratada por Husserl na sua Terceira Investigação Lógica - Sobre a teoria do todo e das partes -, onde ele explicita seu conceito de fundação, no qual uma parte está fundada na outra, havendo uma não-independência entre as partes, à qual ele chama de relação de fundamentação ou relação de enlace necessário).
É no ir de uma nota à outra - subentende-se nesse ir um deslocamento espacial e temporal - que observamos o movimento. Aliás, é importante que ampliemos nosso conceito de movimento, não considerando como tal apenas o deslocamento físico; qualquer intenção expressiva já realiza em si um movimento. Podemos, portanto, dizer que a expressividade em música não se encontra nas notas isoladas, mas no movimento que as une. É nesse sentido que podemos falar numa espacialização da experiência musical.
Na verdade, tal espacialização já se encontra explícita no próprio movimento de uma onda sonora:
o som é o produto de uma seqüência rapidíssima (e geralmente imperceptível) de impulsões e repousos (que se representam pela ascensão da onda) e de quedas cíclicas desses impulsos, seguidas de sua reiteração. A onda sonora, vista como um microcosmo, contém sempre a partida e a contrapartida do movimento num campo praticamente sincrônico (já que o ataque e o refluxo sucessivos da onda são a própria densificação de um certo padrão do movimento, que se dá a ouvir através das camadas de ar). Não é a matéria do ar que caminha levando o som, mas sim um sinal de movimento que passa através da matéria, modificando-a e inscrevendo nela, de forma fugaz, o seu desenho.[11]
O som, enquanto sinal de movimento propagando-se no ar, pode assim ser também compreendido entre os fenômenos espaciais (muitos gostam até mesmo de ver, metafórica e poeticamente, o som como fruto da “dança”: a dança da matéria, o movimento gerando a música). E, por mais parecidos que sejam esses movimentos de onda, nunca são exatamente iguais: mesmo que vários instrumentos toquem uma mesma nota lá, cada uma apresentará diferenças (às vezes sutis, às vezes nada sutis) entre si.
O estudo da acústica nos mostra que é justamente na “imprecisão” de uma onda sonora que residem seu caráter, sua cor, seu timbre; os sinais sonoros não são simples e unidimensionais, mas complexos e sobrepostos. As diferentes freqüências se alternam e se misturam, freqüências que não escutamos como tais, mas cujo produto reconhecemos enquanto timbre. Os sons
entram em diálogo e exprimem semelhanças e diferenças na medida em que põe em jogo a complexidade da onda sonora. É o diálogo dessas complexidades que engendra as músicas.[12]
A escrita musical simplifica por razões de praticidade a real complexidade da música: uma notação absolutamente precisa, que pudesse refletir fielmente todas as sutilezas rítmicas e expressivas de uma música, seria praticamente impossível de se escrever e mais impossível ainda de se ler. Também em função da liberdade do intérprete é feita tal simplificação, pois é justamente nessa complexidade de assimetrias e “imperfeições” que se expressa o pessoal, o artístico individual e a espontaneidade do momento.
Encontramos já na antiga Babilônia tentativas de registrar de forma permanente a experiência musical, tentativas que foram sendo aperfeiçoadas pelos hebreus, pelos gregos e pelos romanos. Mas como transmitir através de símbolos num papel uma experiência tão complexa e rica como a informação musical? Pois uma informação musical envolve, como estamos vendo, um complexo informativo muito maior que a simples combinação altura/ duração/intensidade.
Uma significativa tentativa de sistematização da escrita musical foi feita na Idade Média pelo Papa Gregório, entre os anos 590 e 604, sistematização que teve o intuito de unificar a liturgia católica, dando origem ao que hoje conhecemos como canto gregoriano. Nele a notação se dá mediante neumas (em grego, sinal, gesto), que remontam à quironomia e aos signos da prosódia grega (esses signos mostravam combinações de durações maiores [--] e menores [u]; as combinações mais importantes eram: iambos: u -- ; trochaeos: -- u ; anapaest: u u -- ; dactylos: -- u u ; spondeos: -- -- ; baccheos: u -- -- ; creticos: -- u -- ; ionicos: u u -- -- ; choriambos: -- u u -- ).
Nesse tipo de notação, a diferenciação e a combinação entre durações curtas e longas era apenas aparentemente um sistema restrito de possibilidades; não nos esqueçamos que, em primeiro lugar, não havia uma definição exata de quão longo era o som longo, nem de quão curto era o som curto; em segundo lugar, a música era sempre elaborada sobre um texto, de forma que era inevitavelmente adaptada às necessidades declamatórias do cantor ou do orador. Essas necessidades podiam ser de cunho técnico (respiração), estrutural (pontuação e pausas para melhor compreensão do texto), expressivas (ênfases interpretativas) ou mesmo acidentais.
O primeiro instrumento humano foi sem dúvida alguma a voz; canto e fala provavelmente não se encontravam separados em sua origem (entre as conjecturas sobre a origem das línguas estão as onomatopéias, as imitações dos sons da natureza). Seja qual for a origem, o fato é que as línguas vão muito além das imitações, o que não as desprende dos sons e melodias naturais, pois não há língua que não contenha em si uma melodia ou uma mínima entonação que seja. Através dela reconhecemos expressões e sentimentos, reconhecemos a procedência da pessoa pelo seu sotaque, reconhecemos estados “conscientes” e “inconscientes” da pessoa que fala (geralmente é na melodia da voz que, dizemos, as pessoas se traem e revelam seus verdadeiros sentimentos).
Joachim Quantz, um dos maiores tratadistas e teóricos musicais do período barroco, fez importantes comparações entre a arte musical e a arte da declamação em seu tratado Versuch einer Anweisung, die Flöte traversière zu spielen (Ensaio de um método para se tocar a flauta transversa), de 1752:
a execução musical pode ser comparada ao discurso de um orador. Ambos, o orador e o músico, têm o mesmo objetivo: conquistar os corações, excitar ou acalmar as paixões e transportar o ouvinte ora em um, ora em outro afeto. É para os dois de grande utilidade ter conhecimento sobre os procedimentos um do outro. Exige-se do orador que ele tenha uma voz forte e clara, e uma dicção nítida, precisa e pura; que ele não confunda nem engula letras; que ele tenha uma agradável variedade na voz e na pronúncia do idioma; que ele evite monotonia no discurso; de preferência que o som das sílabas e das palavras seja ora forte e ora suave, ora rápido e ora lento; que eleve sua voz nas palavras que exijam maior intensidade e faça o contrário nas outras; que ele expresse cada afeto com outro timbre; que ele saiba diferenciar de forma apropriada o tom do seu discurso dependendo do local, dos ouvintes e do conteúdo do discurso, seja ele um discurso fúnebre, festivo, engraçado ou qualquer outro; e, finalmente, que ele assuma exteriormente uma boa postura.[13]
Em todos os conselhos de Quantz, um elemento em comum aparece: a mudança. O empenho total em evitar a repetição redundante, a repetição óbvia, ou, mesmo em não se tratando de uma repetição, em evitar a todo custo uma previsibilidade no discurso. A qualidade de cada tempo deve ser diferenciada, vivenciada de forma única, cada momento inscrevendo seu próprio tempo no tempo, expressão de um ser no tempo, expressão que, é o próprio tempo.
Nossa percepção de duração está intimamente ligada ao movimento e à mudança. Se o tempo cronológico tem suas relações estruturadas em movimentos invariáveis e determinados, os movimentos expressivos – justamente por serem expressivos – necessitam de tempos variáveis, não apenas na duração (duração no sentido quantitativo) como também na qualidade, na intensidade desses diversos tempos. Pois a relação do movimento expressivo é essencialmente com o ser, não com o relógio. O movimento expressivo pode até submeter-se a uma métrica musical, aparentando uma coincidência entre metro e ritmo, mas são sempre diferentes.
Aliás, é importante observar que o rigor da métrica musical não inibe de forma alguma a liberdade rítmica, muito pelo contrário: é graças à imposição de uma estrutura regular que a mudança pode ser reconhecida enquanto mudança e que o ethos pode ser reconhecido enquanto ethos.
A liberdade e a “imprecisão” (espontaneidade na variação dos movimentos) do ritmo não devem de forma alguma induzir-nos a uma idéia de caos; por mais paradoxal que pareça, quanto maior a limitação, maior a liberdade.
Um caso verídico do meio musical (que acabou se transformando numa anedota, mas que nos é altamente instrutivo), é o relato do compositor norte-americano John Cage, que fala do episódio no qual uma aluna lhe apareceu certo dia querendo aprender a compor. Como primeira lição, pediu então a ela que compusesse uma música utilizando apenas uma nota. Uma semana depois ela retornou sem ter feito a tarefa, alegando que apenas uma nota era demasiado pouco material para uma composição. Cage respondeu-lhe que, sendo assim, seria melhor que ela desistisse, pois se não conseguira compor com uma nota, como pretendia compor com doze?[14]
A limitação que a divisão métrica impõe ao ritmo é apenas aparente. Sua presença impede a instabilidade determinando ‘regras’, que o ritmo então ‘infringe’, infração que é percebida como mudança expressiva. Na verdade não há regras nem infrações, apenas um sistema de equilíbrio entre estrutura e liberdade, entre disciplina e espontaneidade.
Outro exemplo da relação entre estrutura e liberdade encontra-se na cerimônia do chá japonesa: trata-se de uma cerimônia com regras muito precisamente definidas, tão definidas que aparentemente não deixam margem alguma à espontaneidade. Joseph Campbell, perito em mitologias comparadas, escreve a esse respeito:
pois assim como a arte imita a ação da natureza, assim também a cerimônia do chá. A natureza gera espontaneidade, mas ao mesmo tempo também ordem. A natureza não é, em primeira linha, nenhum mero protoplasma. E quanto mais complexa a ordem, tanto mais abrangente e forte pode vir à luz a espontaneidade. A cerimônia mestra do chá é, portanto, a maestria no manuseio da liberdade (“impulso próprio”) no campo de relações de uma cultura altamente complexa, rígida e com regras claras, na qual, por tudo que a um sucede, se deveria sentir apenas gratidão, tão logo se esteja disposto a viver como ser humano[15].
Entre as mil folhas de uma árvore não encontramos duas iguais, por mais parecidas que sejam; entre as milhares de formigas de um formigueiro não encontramos duas iguais, por mais iguais que pareçam. Nossas duas orelhas não são iguais nem totalmente simétricas, o mesmo ocorrendo com nossos braços, nossas pernas, nossos olhos.
Seguindo essa lógica, constatamos que a divisão métrica exige o impossível: exige que duas notas de mesma duração tenham realmente a mesma duração. Também os professores de música exigem isso veementemente de seus alunos, obrigando-os para tanto a horas intermináveis de exercícios e treinos. Não que a insistência com o senso métrico esteja errada! Mas trata-se simplesmente de um artifício pedagógico a fim de que o aluno tenha uma consciência muito clara sobre a estrutura em que se encontra, exatamente para que possa então mudá-la, conforme suas necessidades expressivas (a liberdade rítmica pressupõe uma consciência métrica).
Dependendo do estilo musical, seja em música erudita (uma obra renascentista ou barroca, clássica ou romântica, impressionista ou expressionista), seja em música popular (uma obra de jazz ou bossa nova, uma canção folclórica ou rock), cada um desses estilos pertence a uma tradição que define parâmetros e limites para a liberdade rítmica. O que não quer dizer que tais parâmetros sejam rígidos ou definitivos! Infelizmente, vários “métodos” oferecem atualmente “receituários” perigosamente simplificados e canônicos para a interpretação dos diversos estilos (Bach se toca assim, Mozart assado). Através de tais “ensinamentos”, muitas vezes os alunos são levados a idéias errôneas, como por exemplo: que o estilo romântico permite uma flexibilidade rítmica maior que o estilo barroco – o que não é correto! Trabalha-se com clichês, perigosos para a compreensão musical, levando freqüentemente os alunos a idéias estereotipadas sobre os diferentes estilos e fazendo com que se atenham a “receitas” de como tocar, quando o processo deveria ser muito mais de pesquisa diferenciada para cada obra. Não se pode dizer “Bach se toca assim”; cada obra de Bach tem peculiaridades muito próprias que obedecem a relações internas, constituindo assim um organismo único.
Seria então desnecessário o estudo da história da música? De forma alguma! É fundamental que se conheça a fundo o estilo de cada época, bem como os costumes, a cultura, a biografia do compositor, as artes contemporâneas a ele - a literatura, a pintura, o teatro, a dança etc. Mas é uma ilusão crer que tais conhecimentos nos farão entender uma determinada obra. É como estudar o comportamento de um brasileiro e achar que se conhece a partir daí o comportamento de todos os brasileiros, pelo simples fato de que vivem no mesmo país e na mesma época.
Nesse sentido, a fenomenologia prestou-nos um enorme favor ao apresentar como método o não se contentar nunca com os conhecimentos descobertos e guardados do passado: a compreensão deve ser sempre nova e atual. Existe uma história, porém ela sempre tem que começar de novo. A fenomenologia não pode ter seguidores porque é preciso sempre chegar a novas visualizações, a novas análises do fenômeno; o fenômeno não pode ser conservado, ele tem que ser sempre revisto, sempre recriado. A literatura fenomenológica
somente pode ter um caráter de exemplificação e de ilustração do método fenomenológico; falar de um acervo de conhecimentos fenomenológicos é tão absurdo como dizer que o conhecimento das letras do alfabeto significa saber ler.[16]
Nosso contato com a coisa deve ser um contato com a coisa, não com a idéia da coisa (daí a insistência fenomenológica num ‘retorno às coisas mesmas’). Aliás, a palavra contato é uma palavra muito interessante para os propósitos deste trabalho, pois contém a idéia do sentir enquanto percepção táctil: com tato. Não se trata, portanto, de uma tentativa de compreensão mental, representacional do fenômeno, mas antes de uma intuição (ou, melhor, compreensão) física, corpórea, motriz. É preciso transcender o senso comum, ou, como Husserl costumava dizer, ‘transcender a atitude natural em relação às coisas’. De acordo com Heidegger,
esse modo de pensar, que há muito se tornou corrente, antecipa-se a toda a experiência imediata do ente. A antecipação veda a meditação sobre o ser do ente, de que cada vez se trata. É assim que os conceitos dominantes de coisa nos barram o caminho. (...) Mantendo afastadas as antecipações e os atropelos desse modo de pensar, deixar a coisa, por exemplo, repousar no seu ser-coisa. Que haverá de mais fácil do que deixar o ente ser o ente que é? Ou com esta tarefa não estaremos perante o mais difícil, sobretudo se um tal projeto – deixar ser o ente como ele é – representar exatamente o contrário da indiferença que vira as costas ao ente a favor de um conceito de ser que não foi posto à prova? Devemos voltar-nos para o ente, pensá-lo em si mesmo, no seu ser, mas, ao mesmo tempo, deixá-lo repousar em si mesmo, na sua essência. (...) O que há de mais discreto, a coisa, é o que mais obstinadamente escapa ao pensar.
(...) É necessário que caiam primeiro as barreiras do que é óbvio e que os ilusórios conceitos habituais sejam postos de lado. (...) Mas é a obra alguma vez acessível em si? Para tal se conseguir, seria preciso retirar a obra de todas as relações com aquilo que é outro que não ela, a fim de a deixar repousar por si própria em si mesma. Mas é isso que visa já o mais autêntico intento do artista. Através dele, a obra deve ser libertada para o puro estar-em-si-mesma. Justamente, na grande arte, e só ela está aqui em questão, o artista permanece algo de indiferente em relação à obra, quase como um acesso para o surgimento da obra, acesso que a si próprio se anula na criação[17].
Sobre a questão do artista permanecer ‘algo de indiferente em relação à obra’, a que se refere Heidegger no texto acima, falaremos posteriormente (não se trata de uma indiferença gerada pela passividade, mas de uma ação que visa a “não-ação”: um deixar acontecer).
‘Que caiam as barreiras do óbvio’. Como não tratar como óbvio aquilo que nos sucede continuamente? Não é óbvio que o sol se ponha diariamente? Como evitar que a presença do parceiro num casamento de vinte anos não se transforme numa presença óbvia? Como fazer para que as repetições não amorteçam nossa capacidade de percepção?
Ao deixar que as coisas repousem nelas mesmas não estamos nos rendendo ao óbvio nem à tautologia (onde a=a), mas efetuando uma redução do objeto, redução aqui pensada nos moldes fenomenológicos de acordo com Husserl.
Um dos primeiros autores a sugerir uma espécie de redução no âmbito musical foi Edward Hanslick, em seu livro Do belo musical, de 1854:
as idéias expressas pelo compositor são, antes de mais nada, puramente musicais. À sua fantasia, apresenta-se uma bela melodia determinada. Esta não deve ser nada além dela mesma.[18]
Hanslick nos mostra assim uma visão praticamente fenomenológica da música. Lembremos que a época desse escrito é ainda a época dos grandes arroubos do alto romantismo, sendo portanto compreensível o desejo do autor de “enxugar” a música dos excessos e do sentimentalismo, bem como dos clichês musicais do tipo “tonalidades menores são tristes”, “tonalidades maiores são alegres”, “escalas cromáticas descendentes representam a dor”, “ritmos que lembrem o toque do clarim são triunfais”; antes de qualquer associação, seja uma associação cultural, seja uma associação com uma tradição, sons são sons.
Pode parecer natural, principalmente após tantas audições, o tema da Quinta Sinfonia de Beethoven: sol – sol – sol – mi bemol. Tão natural que já nem nos perguntamos como devem soar essas quatro notas, ou mesmo se poderiam soar diferente. Não nos fazemos perguntas tais como: em que diferem as três notas sol?; com que intensidade devo tocar cada uma dessas notas?; existe uma hierarquia de intensidade entre elas que direcione o fraseado?; qual o gesto mais apropriado para dar-lhes o caráter apropriado?; qual a velocidade apropriada para que a frase soe dramática?; e se for feito em outras velocidades, como fica? A tendência energética do tema aumenta ou diminui em direção ao mi bemol?; acelera ou desacelera?
Perguntas como essas e muitas outras ampliam (ou amplificam, como diria C. G. Jung) as perspectivas e possibilidades de interpretação em relação a algo “tão simples” como um tema de quatro notas. O tema adquire uma profundidade e uma pluridimensionalidade antes não cogitada. Criamos um diálogo com o tema: fazemos perguntas, propomos alternativas e novas possibilidades, o olhamos de baixo, de cima e dos lados, experimentamos, inventamos. Após tal processo desenvolvemos com o tema uma familiaridade que antes não tínhamos, familiaridade que nos permite optar por uma interpretação com conhecimento de causa, e não porque foi a única possibilidade que nos ocorreu, muito menos por estarmos acostumados a ouvir a música desta ou daquela forma. Desenvolvemos assim, de forma lenta e progressiva, uma compreensão das relações expressivas, temporais e motrizes que envolvem a obra e sua execução, relações sempre abertas e flexíveis, natureza de sua liberdade.
Não nos basta, porém, afirmar simplesmente que o ritmo tem uma enorme liberdade de movimento através do qual se dissocia do metro: essa liberdade deve ser conquistada e merecida; devemos saber usar a liberdade sem abusar dela. Esse é o grande diferencial de uma interpretação profissional e madura de uma interpretação aleatória ou amadora: a compreensão e a vivência da relação entre expressão e movimento.
Por que falamos em ‘compreensão’ e não em ‘controle’, como estamos acostumados dos livros de técnica instrumental? Como veremos no capítulo 3 (Ritmo e Motricidade), controlar o movimento não significa que nossos movimentos se dão perante ordens e comandos mentais, mas sim que há uma intencionalidade e uma pré-intencionalidade que coordenam, harmônica e organicamente, esses movimentos. Ao tocar há, antes e durante a execução, uma intenção musical que guia os movimentos; a interpretação está na relação de mútua fundação entre gesto e intenção musical.
Convém relembrar aqui mais uma vez a etimologia da palavra interpretação: inter petras – entre as pedras. A música não está nas notas, mas entre as notas. Está no espaço entre elas, no vazio, campo de possibilidades, “nada” do qual emerge e se cria o ser.
Mas como devemos compreender esse ‘vazio’, esse ‘nada’? No ensaio Merleau-Ponty: obra de arte e filosofia, Marilena Chauí fala do Nada como uma
presença habitada por uma ausência que não cessa de aspirar pelo preenchimento e que, a cada plenitude, remete a um vazio sem o qual não poderia vir a ser.[19]
Ou ainda Sartre, em O ser e o nada:
é no movimento de interiorização que atravessa todo o ser que o ser surge e se organiza como mundo, sem que haja prioridade do movimento sobre o mundo ou do mundo sobre o movimento. Mas esta aparição do si-mesmo para além do mundo, quer dizer, além da totalidade do real, é uma emergência da ‘realidade humana’ no nada. É somente no nada que pode ser transcendido o ser.[20]
Causa-nos uma certa confusão tentar pensar a realidade desse vazio - se é que é um vazio. Seria o vazio um espaço sem nada dentro, pronto para ser ocupado por objetos físicos? Esbarramos aqui no problema da materialidade do espaço-tempo. Em relação a isso, Einstein
quis mostrar que o espaço-tempo não é necessariamente algo a que possamos atribuir uma existência separada e independente dos objetos da realidade física. Objetos físicos não estão no espaço. Estes objetos estão espacialmente estendidos. Assim, o conceito de “espaço vazio” perde seu significado.[21]
Também Heidegger pergunta pelo “espaço” da presença: que lugar é esse do ser-aí (Dasein)? É o aí um espaço real, material, ou apenas uma distensão da alma, com diria Agostinho? Ou o aí define antes um tempo, um ser-aí-no-tempo, nesse tempo e não noutro?
O ser-aí (Dasein), compreendido em suas máximas possibilidades de ser, é o tempo mesmo, não no tempo.[22]
O próprio Freud se ocupou desse problema – numa pequena nota escrita em 22 de agosto de 1938 (um ano antes de sua morte), ele cogita:
a espacialidade poderia ser a projeção da extensão do aparelho psíquico. Nenhuma outra derivação é provável. Em lugar do a priori kantiano, as condições de nosso aparelho psíquico. A psiquê é extensa, mas disso nada sabe.[23]
Mas por que estamos discutindo a questão da espacialidade na música? Porque queremos chegar a uma compreensão mais ampla do movimento, da motricidade, espontaneamente organizados – intencionalmente. Quando um ouvinte se diz emocionado pela música, geralmente ele está emocionado não pela música em si, mas pela intencionalidade do intérprete, que se faz ouvir junto a cada som. No inter petras, nesse “vazio” entre as notas, o que liga uma nota à outra é a intenção do intérprete (que pode ou não estar de acordo com a intenção do compositor – mas isso é outro problema). Essa intenção é ato, e o ato se atualiza através do corpo – através do movimento. O movimento
constitui o fator que a música tem em comum com os estados sentimentais e aos quais ela pode dar forma, criativamente, em milhares de gradações e contrastes. O conceito de movimento tem sido, até aqui, negligenciado de modo surpreendente nos estudos sobre a essência e o efeito da música; este conceito afigura-se-nos como o mais importante e o mais produtivo.[24]
Nos dicionários o termo movimento vem sempre ligado à idéia de mudança, de deslocamento no espaço; mas, como afirmamos anteriormente, o movimento já se inicia na intenção, não se remetendo, portanto, ao princípio de causalidade (no qual o movimento seria o efeito de uma causa, de uma intenção). O que significa que estamos sempre em movimento, sempre num agir.
Mas poderemos denominar toda ação como ato? Heidegger define ato a partir do conceito de intencionalidade, remetendo-nos a Husserl:
aos comportamentos da vida designa-se também atos: percepções, juízos, amor, ódio... Que quer dizer aqui ato? Não algo como trabalho, processo ou alguma outra força, mas o significado de ato subentende simplesmente relação intencional.[25]
É nessa relação intencional que gesto e música se fundam mutuamente, e que chamamos aqui de expressão. A expressão não se encontra, portanto (insistimos), nas notas, mas sim no movimento, que é uma ação espacialmente estendida. Essa ação não está no tempo, é ela mesma o tempo, instituindo um tempo próprio, um tempo interno e orgânico (Aiôn), diverso do tempo cronológico. Essa sensação temporal é a qualidade mesma do movimento, e caracteriza-se como ritmo.
Há pouco falávamos do espaço entre uma nota e outra. Que espaço é esse? Uma duração temporal? Sem dúvida, o tempo cronológico entre uma nota e outra pode ser medido – o que nos dá a sensação de um espaço temporal entre elas. Quando se olha uma partitura vê-se uma distância que separa uma nota da outra, o que nos dá também uma impressão visual de distância, de ‘espaço’. Mas, na prática, nenhum intérprete pode nos dizer exatamente quanto dura o intervalo entre duas notas, nem por quanto tempo esteve tocando uma peça. É freqüente seu espanto quando, após haver estudado um certo tempo com grande concentração, pensa haver passado uma hora, quando na verdade se passaram três ou quatro.
Isso ocorre porque, durante a execução de uma obra, o intérprete está entregue à expressão da música; sua percepção não é a percepção ‘de’ algo, mas confunde-se com a própria expressão. O intérprete não mede o tempo: ele o vive.
Claro, sua música está inserida (pelo menos na maior parte das músicas existentes) num contexto métrico, o qual ele tem presente e ao qual se reporta. Mas trata-se apenas de uma referência em torno da qual gravita: assim como quem vive uma experiência intensa não mede o tempo de duração de sua experiência (pois se estivesse medindo estaria tendo acesso a uma representação a posteriori, a uma lembrança, e não a uma vivência da experiência), da mesma forma o ritmo não pergunta pelo metro. Seu tempo é o tempo do movimento, e o tempo o movimento é o tempo da expressão.
Enquanto a expressão durar, durará o presente (“eterno enquanto dure”). O estar sendo é uma atividade sempre presente; quando dizemos foi, já não é mais: é um presente que vê a experiência no passado na qualidade de lembrança. A disciplina necessária ao intérprete é a de estar sempre no presente: ele é uma expressão que se transforma continuamente e que por isso nunca morre. Em sua música podem até haver pausas e respirações, mas essas pausas e respirações não serão percebidas como interrupções nem como um deixar de ser se estiverem inseridas num fluxo gestual expressivo – num ritmo. É por isso que devemos compreender o ritmo como um fenômeno expressivo temporal (o que se tornará mais claro nos próximos capítulos).
Metro e ritmo não são excludentes: simplesmente agem de formas diferentes, complementando-se. A sensação rítmica deve ser necessariamente uma vivência espontânea, não representada. Deve ser uma compreensão primeira, uma intenção anterior a qualquer verbalização, uma organização do todo em função de uma intenção musical. Pois o ritmo é uma compreensão primitiva do tempo que nós exercemos com o corpo, antes mesmo de representá-la com o pensamento.
Essa compreensão primitiva (ou Urerfahrung, experiência primeira) não é um ato deliberativo da consciência, nem é um fruto da vontade, mas uma organização espontânea. Representar-me essa compreensão (ou mesmo meu corpo) tiraria essa espontaneidade e mudaria completamente meus movimentos, de forma que não mais estaria vivenciando uma experiência rítmica, mas sua representação.
[1] MAMMI, Lorenzo. Deus Cantor. In: Artepensamento, p. 46.
[2] HERÁKLITO. Fragmentos. In: Os pensadores: Os pré-socráticos, p. 88.
[3] DUBOIS, Jacques. Retórica geral, p. 126.
[4] RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, p. 57.
[5] MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção, p. 550.
[6] HERÁKLITO. Fragmentos. In: Os pensadores: Os pré-socráticos, p. 84.
[7] HEIDEGGER, Martin. Der Bergriff de Zeit, p. 09
[8] MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção, p. 551.
[9] CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto – Vol. 3, p. 268.
[10] ANDRADE, Mário de. Introdução à estética musical, p. 78.
[11] WISNIK, José Miguel. O som e o sentido, p. 15.
[12] Idem, ibidem, p. 23.
[13] BADURA-SKODA, Paul. Bach Interpretation, p. 136.
[14] CAGE, John. De segunda a um ano, p. 145.
[15] CAMPBELL, Joseph. Die Masken Gottes, p. 578.
[16] GREUEL, Marcelo da Veiga. O problema da fundamentação do conhecimento. Uma abordagem fenomenológica, p. 12.
[17] HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo, p. 23 e 31.
[18] HANSLICK, Edward. Do belo musical, p. 146.
[19] CHAUÍ, Marilena. Experiência e pensamento - ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty, p. 156.
[20] SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada, p. 59.
[21] EINSTEIN, Albert. A teoria da relatividade especial e geral, p. 07.
[22] HEIDEGGER, Martin. Der Begriff de Zeit, p. 25.
[23] FREUD, Sigmund. Obras completas, p. 3432.
[24] HANSLICK, Edward. Do belo musical, p. 38.
[25] HEIDEGGER, Martin. Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs, p. 47.
Referências bibliográficas
ANDRADE, Mário de. Introdução à estética musical. São Paulo: Pensamento, 1983.
BADURA-SKODA, Paul. Bach Interpretation. Laaber: Laaber, 1990.
CAGE, John. De segunda a um ano. Trad. Rogério Duprat. São Paulo: Hucitec, 1985.
CAMPBELL, Joseph. Die Masken Gottes (vier Bände: 1. Mythologie der Urvölker; 2. Mythologie des Ostens; 3. Mythologie des Westens; 4. Schöpferische Mythologie). Übers. H.-Ulrich Möhring. München: Hugendubel Verlag, 1991.
CASTORIADIS, Cornelius. Para si e subjetividade. In: VEJA e NASCIMENTO (orgs). O pensar complexo. Rio de Janeiro: Garamond, 1999, p. 35-46.
CHAUÍ, Marilena. Experiência e pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
DUBOIS, Jaques (org). Retórica geral. São Paulo: Cultrix/USP, 1974.
EINSTEIN, Albert. A teoria da relatividade especial e geral. Trad. Carlos Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.
FREUD, Sigmund. Obras completas. Trad. Luis Torres. Madrid: Biblioteca Nueva, 1996.
GREUEL, Marcelo da Veiga. O problema da fundamentação do conhecimento: uma abordagem fenomenológica. Florianópolis: UFESC-DLLF-CCE, 1996.
HANSLICK, Edward. Do belo musical. Campinas: Unicamp, 1989.
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Trad. Rubens E. Frias. São Paulo: Ed. Moraes, 1991.
________. Der Begriff de Zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1995.
________. Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs. Frankfurt/Main: Vittorio Klostermann, 1988.
HERÁKLITO. Fragmentos. Trad. e comentários de José Cavalcante de Sousa. In: Os pensadores: os pré-socráticos. São Paulo: Abril, 1978.
MAMMI, Lorenzo. Deus cantor. In: Artepensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos R. de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Trad. Constança Cesar. Campinas: Papirus, 1994.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Ed. Vozes, 1998.
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
*Alberto Heller é pianista e doutorando do Curso de pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina.