Folhas secas: uma leitura semiótica
Adriane Rodrigues*
Folhas Secas
(Nélson Cavaquinho & Guilherme de Brito)
Quando eu piso em folhas secas
Caídas de uma mangueira
Penso na minha escola
E nos poetas da minha
Estação primeira
Não sei quantas vezes
Subi o morro cantando
Sempre o sol me queimando
E assim vou me acabando
Quando o tempo avisar
Que eu não posso mais cantar
Sei que vou sentir saudade
Da minha mocidade
Este ensaio propõe-se a analisar a canção “Folhas Secas”, de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, a partir da perspectiva semiótica desenvolvida por Luiz Tatit, em seu livro Semiótica da canção [1].
Tatit propõe um método de análise em que as entidades tradicionalmente identificadas na superfície de um texto ou de uma melodia (como, por exemplo, as recorrências melódicas ou lingüísticas, os saltos intervalares, as mudanças de andamento na melodia da canção, as funções narrativas, os contrastes rítmicos...) sejam inter-relacionadas em um contexto mais amplo e profundo do que o mais comumente traçado, de forma que ofereçam parâmetros teóricos homogêneos para a análise de melodias, de letras/ poemas, de arranjos instrumentais, de interpretações, de video-clips, ou de “qualquer modelização que o sentido receba”. Nesta medida, Tatit propõe-se a considerar também a conduta artística de um intérprete/ performer como geradora de sentido.
Neste trabalho, este fato se traduz na busca da diferenciação entre as três diferentes interpretações da canção “Folhas Secas”, apresentadas em vídeo, respectivamente, pelos autores, por Elis Regina e por Chico Buarque, tanto no que se refere às questões melódicas e de andamento por eles escolhidas, quanto, em menor medida, às questões mais ligadas à performance e interpretação de cada um e às imagens editadas no vídeo.
Seguindo o modelo de análise de Luiz Tatit, em um primeiro momento, este ensaio estuda a questão junção X disjunção entre sujeito e objeto na canção escolhida, como critério de leitura tanto lingüística como musical. Tatit propõe que, a partir do grau de proximidade entre estes dois elementos, são compostas as letras das canções e é desenvolvido um determinado tratamento melódico. Nem sempre um estado de conjunção na letra, por exemplo, exige o mesmo estado expresso na melodia. Por vezes, eles têm o mesmo tom, por vezes não. Em “Folhas Secas”, ver-se-á que, apesar de certa nuança conjuntiva no refrão da canção, ela é predominantemente passional, fato intensificado pela interpretação de Elis Regina e, em menor grau, pela interpretação dos autores.
A partir da proposição de Saussure sobre a silabação e do modelo de Hjelmslev que lhe deu continuidade, Tatit analisa a recente reflexão de Zilberberg sobre a sílaba que, atrelada ao pensamento estrutural, estende as questões levantadas anteriormente em princípios temporais “cujas leis principais podem ser resumidas pela expansão rítmica de Saussure e pela determinação sintática de Hjelmslev”. Zilberberg estabelece, a partir deste pensamento, diferentes dimensões do tempo que, inter-relacionadas, tornam-se elementos relevantes tanto para a análise melódica quanto para a descrição das letras e, portanto, pertinentes a um estudo que pretende analisar os dois componentes básicos da canção.
Finalmente, este ensaio procura estudar “Folhas Secas” sob os critérios dos níveis profundos do percurso gerativo. Conforme Tatit, ao proceder-se desta maneira
“a proposta semiótica de um plano ab quo da significação, onde se processam as primeiras apreensões do sentido, surge enriquecida, não apenas com modulações contínuas destinadas a compor categorias discretas no nível modal-narrativo ou a contribuir diretamente para a aspectualização do discurso, mas, sobretudo, com a concepção de um nível fórico – matriz de todos os processos sintagmáticos – e um nível missivo, instaurados pelo próprio sujeito da enunciação, no momento em que seleciona os valores primordiais geradores tanto da face lingüística como da face melódica.”[2]
A importância da extensão das análises das letras às análises das melodias, mais imediatamente, e também da expressão corporal do artista e das imagens do vídeo é o fato de possibilitar a leitura da canção como uma rede de significados que se estabelecem por meio de diferentes linguagens em que se manifestam. É, portanto, permitir uma leitura pluridimensional, não linear ou flat, pela qual não seria possível perceber as diferenças, mais ou menos sutis, de “Folhas Secas”, interpretada por seus autores, de “Folhas Secas”, cantada por Elis Regina e da mesma canção interpretada por Chico Buarque. Porque a composição é e não é a mesma para cada uma de suas interpretações, que lhe imprimem novas perspectivas de significação, proporcionando a quem as vê e escuta, diferentes sensações.
A passagem de um enfoque primordialmente lexicológico, nas análises semânticas, para um enfoque narrativo, que se deu à luz das idéias de Vladimir Propp, fez do livro Sémantique Estruturale, de Greimas[3] (GREIMAS, A. J. Sémantique estruturale – recherche de méthode. Paris, Larousse, 1966.), um projeto de expansão e abertura ao enunciado textual.
As formulações de Greimas a favor do texto como um todo têm por base o /fazer/, onde o foco da pesquisa incide “sobre a transformação do estado de junção do sujeito do enunciado”. Mas, embora esta epistemologia do /fazer/, que, conforme Luiz Tatit, é “expressa paradigmaticamente nas categorias e nas operações do quadrado semiótico, com um projeto descritivo baseado na elaboração de estados juntivos”, trouxesse a primeira impressão de que quanto mais ampla a dimensão considerada, mais elementos disponíveis haveria para a estruturação do sentido de um texto e, portanto, se apresentasse como uma nova opção muito interessante à análise semiótica, algumas lacunas foram deixadas em sua proposta analítica que precisaram ser explicadas mais tarde.
É então que, depois desta expansão das formulações semânticas, dá-se a revisão das etapas pendentes, ou aquilo que Tatit chamou de “refluxo” ou condensação. A pesquisa semiótica assume, neste momento, duas direções: “a exploração meticulosa das instâncias profundas e a reconstrução epistêmica do sujeito da enunciação.” Os estudos voltam-se para os aspectos subjetivos do sentido e buscam estudar as paixões por meio de seus simulacros construídos em textos. Nesta medida, cada vez mais intensamente, as estruturas narrativas começam a ser vistas como o germe que compõe o universo passional do sujeito e o /fazer/, um ato de potência situado na instância do /ser/ e pré-dinamizado pelo /querer/.
Este movimento epistemológico de condensação traz a lexicologia novamente como elemento importante à análise semiótica, parcialmente esquecida quando da expansão da narratividade. Os estudos semióticos podem desenvolver-se, agora, a partir de ambas as perspectivas e de uma relação de complementaridade entre elas.
a) Identidade
A partir da introdução das formulações passionais no estudo semiótico, o sujeito epistêmico passa a responder por todos os estratos gerativos do discurso, desde seus níveis mais profundos. Introduzem-se no percurso gerativo valores tensivos e fóricos junto às discretizações modais e narrativas, o que gera um aprofundamento do conceito de enunciação. Para Tatit, o estudo da dimensão passional traz, ainda, a introdução da dimensão do tempo ao percurso gerativo, já que os estudos semióticos marcados pela narrativização instituíam o espaço, na medida em que as categorias se dispunham ao longo do texto. O autor cita Zilberberg[4]: “o tempo seria apenas a contensão do espaço enquanto que o espaço seria apenas o desdobramento do tempo.”.
A perspectiva da paixão introduz, também, os conflitos e as moderações na abordagem semiótica. Nesta medida, as relações juntivas entre sujeito e objeto, que a princípio expressariam uma identidade perene entre ambos, passam a apresentar uma tendência dialética que pede a diferença complementar. Quando, de maneira inversa, sujeito e objeto são disjuntos, há a manifestação de uma atração pela identidade, uma busca do objeto pelo sujeito. Em outras palavras, a intensificação da identidade gera um aumento no valor da alteridade e vice-versa.
Esta “identidade parcial” entre sujeito e objeto mostra que o verdadeiro vínculo do sujeito é com o valor do objeto e não com o objeto em si. É este valor que o sujeito busca alcançar, e não mais o objeto, tendência que o mantém numa busca constante e que o faz sacrificar o seu contato intenso com este último. “Seu contrato final é com o devenir”, explica Tatit.
Admitir a identidade é, portanto, admitir também a alteridade que produz o desdobramento do sentido. “A conjunção com o objeto é função local que manifesta a tendência à concentração. A conjunção com o valor é função à distância que manifesta a tendência à extensão.” A interrelação entre estes dois modos conjuntivos compromete, definitivamente, a análise semiótica com o processo.
b)“Folhas Secas”: uma canção passional
A reconstrução do sentido pela semiótica atual dá-se pela apreensão da inter-relação dos elementos verbais e dos elementos não-verbais de um texto.
Em se falando mais especificamente na canção, pode-se dizer que ela apresenta a relação sujeito/ objeto reproduzida na letra, na melodia e nos outros recursos musicais, às vezes envolvendo elementos vizinhos, outras vezes, elementos distantes, fazendo com que haja sempre o “estreitamento dos laços entre expressão e conteúdo” nas análises atuais, explica Luiz Tatit.
Além de expressar a relação sujeito/ objeto na letra, por meio das escolhas lingüísticas, a canção promove a remotivação de outro componente do discurso oral, que é a entonação.
Quanto ao aspecto melódico, pode-se dizer que pressupõe a imbricação dos ataques rítmicos - representados foneticamente pelas consoantes e acentos vocálicos-, com as durações de sonoridade - representadas foneticamente pelas vogais-, dando origem ao perfil rítmico-vocálico. A condução rítmica está sempre presente e, ainda que possa ser discreta, é sempre decisiva. O canto define-se como sendo a oscilação entre estes ataques e contornos, valorizando ou a conjunção imediata entre os motivos ou a conjunção à distância, mediada por uma rota a ser percorrida.
A dimensão extensa dos ataques e das durações traduz-se, respectivamente, em aceleração e desaceleração, introjetadas no acompanhamento instrumental pela ação conjunta do pulso – a batida – e da harmonização. As canções aceleradas prevêem uma identidade entre sujeito e objeto, uma relação fluente entre ambos, sem obstáculos, com tendência à simultaneidade. Em contrapartida, a ordenação típica da desaceleração, por meio dos alongamentos vocálicos, evidencia “os contornos indispensáveis à realização da trajetória melódica em direção aos motivos idênticos ou (...) à tonalidade harmônica.” Aqui, sujeito e objeto estão em disjunção temporária, o que não representa, entretanto, a perda do valor, nem a perda do desejo do objeto pelo sujeito. “A busca das identidades melódicas à distância gera os desdobramentos que abrem a canção para uma narratividade também no plano da expressão”.
Estes dois diferentes percursos que envolvem elementos da letra e da melodia são geradores de canções “temáticas”, no caso do primeiro exemplo, e de canções “passionais”, no segundo.
É como esta última que se apresenta a canção “Folhas Secas”, conforme discutido a seguir.
A primeira parte de sua letra, ou o refrão, segundo define Luiz Tatit, pode apontar, em uma leitura mais rápida, para um estado conjuntivo entre sujeito e objeto, principalmente se contrastada com a segunda parte da canção, ou seu desdobramento. Diferentemente do refrão, esta traduz muito claramente a disjunção.
A canção fala da perda da mocidade e de suas conseqüências para o eu-lírico: a impossibilidade de cantar e de celebrar a sua amada escola Estação Primeira de Mangueira. Estando quase todos os verbos do refrão conjugados no Presente do Indicativo e falando a primeira parte efetivamente do momento atual em que a velhice ainda não chegou definitivamente (embora o tom geral da canção possa levar a pensar que ela está próxima), pode-se pensar que há a conjunção entre sujeito (o poeta) e objeto (a mocidade e toda a alegria de viver que há nela). Mas, ao deter-se mais cuidadosamente nos versos, percebe-se que apesar de não haver uma distância temporal entre o eu lírico e sua escola, há uma distância espacial:
“(...)Penso na minha escola
E nos poetas da minha
Estação primeira (...)”
O verbo “pensar” tem aqui o sentido de lembrar, resgatar a memória de algo que não está presente, mas distante, a escola e seus poetas. As folhas secas da árvore homônima em que provavelmente esteja pisando o eu lírico enquanto entoa a canção, fazem-no lembrar das muitas vezes em que “subiu” o morro de Mangueira. Não existe mais a distância espacial, o poeta está (estava) no morro, mas o fato destes versos apresentarem o único verbo conjugado no Pretérito (Perfeito) de toda a composição gera uma outra distância, agora temporal, entre o sujeito e o objeto:
“(...)Não sei quantas vezes
subi o morro cantando(...)
O último verso da primeira parte anuncia a proximidade da disjunção definitiva e irreversível que aparece no desdobramento da canção. É como se toda a primeira estrofe estivesse se preparando para a perda irremediável que ocorrerá na segunda:
“(...) e assim vou me acabando”
verso quase trágico que afasta o sujeito cada vez mais de seu objeto de desejo. Afastamento projetado para o futuro, expresso pelos verbos conjugados neste tempo (“avisar” – Futuro do Subjuntivo e “vou” – Futuro do Presente do Indicativo), mas que já está na dor do eu lírico (não “posso” – Presente do Indicativo) e já é, nesta medida, sua realidade.
Há um jogo constante na canção entre as distâncias espacial e temporal. Na segunda parte os versos:
“(...) Sei que vou sentir saudade
ao lado do meu violão
da minha mocidade (...)”
mostram o poeta saudoso, distante do tempo em que tinha a possibilidade de cantar, mas ao lado do seu violão, o instrumento companheiro.
Este movimento constante, que aproxima o eu lírico espacialmente de seu objeto, mas, simultaneamente, o afasta temporalmente, e vice-versa, é que pode fazer parecer, numa leitura mais rápida, que há um estado conjuntivo entre ambos na letra desta canção. Mas esta oscilação, na verdade, apenas reforça a disjunção entre os dois elementos, mostrando o sujeito numa busca incessante de algo que só se alcança parcialmente. “Folhas Secas” é, portanto, uma canção passional, como já mostra seu próprio nome, que fala das folhas que não fazem mais parte de sua árvore geradora, de “sua mangueira”, mas estão mortas no chão.
Nenhuma das três interpretações potencializa tanto este estado passional como a de Elis Regina.
Há, na interpretação de Elis Regina, uma clara desaceleração da canção, seu andamento é mais lento do que aquele que normalmente lhe é imprimido. A permanência da voz da cantora na seqüência melódica, feita especialmente por meio dos alongamentos vocálicos, expressam muito claramente a distância passional do sujeito e do objeto. Plano de expressão e plano de conteúdo se identificam, na medida em que não há esperança de reencontro com o objeto de afeto, na letra de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, mas a certeza de sua perda futura, quase presente. A valorização de um percurso narrativo pela interpretação de Elis Regina (feita pelo alongamento das vogais e pelo andamento mais lento) não se dá, portanto, no sentido sujeito/ objeto, onde o primeiro busca o segundo, motivado por um /querer/, mas no sentido contrário, onde há uma consciência, um /saber/ deste sujeito de que cada vez mais seu objeto estará dele afastado.
Isto também se traduz pela escolha dos instrumentos. Há apenas um instrumento percussivo, a bateria, e a base harmônica é feita pelo piano acústico de César Camargo Mariano, fato pouco comum no samba, tradicionalmente tocado com violão e flauta.
Violão e flauta presentes na interpretação de Chico Buarque, que juntamente com muitos outros instrumentos percussivos e backing vocals, produzem um andamento mais rápido na canção. O arranjo que Chico Buarque imprime à “Folhas Secas” dilui o seu tom passional. A certeza da distância futura do objeto de afeto – a mocidade, o samba, a escola – convive com sua presença, com o agora do eu lírico, que também é o agora do intérprete. Chico Buarque interpreta a canção na quadra da Estação Primeira de Mangueira, em um show que comemora a sua escolha para ser tema do samba-enredo do carnaval de 1998. A alegria desta celebração contamina o tom predominantemente disjuntivo da composição, que se mistura com a vida. A saudade de um objeto que vai se perder, cantada em um ritmo mais rápido em “Folhas Secas” remetem à saudade de Nelson Cavaquinho, uma das grandes referências de compositores da escola, e à alegria que traz a presença de Chico Buarque na Mangueira.
O registro das imagens em vídeo também traduz muito claramente esta diferença. A interpretação de Chico Buarque é gravada em cores, diferentemente das interpretações de Elis Regina e dos autores, gravadas em preto e branco, e tem um registro realista, na medida em que o palco é visto quase como o veria alguém que estivesse assistindo o show ao vivo. Já as imagens hiperbólicas de Elis Regina e Nelson Cavaquinho, próprias do programa Ensaio da TV Cultura, intensificam a passionalidade da canção.
A interpretação de Nelson Cavaquinho apresenta dois instrumentos de corda, o seu e o de Guilherme de Brito. Tem, como em Elis Regina, um andamento desacelerado, que é valorizado pelo canto de Brito, que alonga os sons vocálicos, intensificando a passionalização, mas que não é destacado pela interpretação de Nelson Cavaquinho. Esta não apresenta alongamento vocálico, na medida em que o intérprete divide estes sons, numa maneira quase infantil de cantar:
“Quando eu piso em folhas se-cas
Caídas de uma manguei-ra
Penso na mi-nha esco-la
E nos poetas da mi-nha
Estação primei-ra(...)”
“Folhas Secas” dos autores seria, portanto, uma interpretação de tom predominantemente disjuntivo - diferentemente da interpretação de Chico Buarque-, porque melancólica e nostálgica, mas que não apresentaria a dor do canto de Elis Regina, que é uma dor quase física, aquela de quem arranca alguma parte de si.
Estas nuanças significativas só são passíveis de apreensão quando se consideram as diferentes modelizações que o sentido recebe.
3. Silabação
A partir da reflexão sobre a sílaba tal como desenvolvida pelo lingüista Zilberberg, fortemente baseada nas formulações anteriores de Saussure e Hjelmslev, Luiz Tatit propõe uma abordagem da canção em que o sentido é estabelecido por um tempo que não mais se apresenta linear ou “compacto”, mas, sim, se constitui por uma combinatória complexa de diferentes dimensões.
Para melhor compreensão desta abordagem de Zilberberg, é interessante rever, ainda que brevemente, as idéias lançadas e desenvolvidas por Saussure e Hjelmslev sobre a silabação.
Saussure não se deteve na explicação da sílaba como som isolado e foi além das formulações feitas pela fonologia. Para ele, a sílaba interessava por seu aspecto complexo e consecutivo. Destes dois traços, retirou as noções de sua reflexão: do primeiro, explica Tatit, veio a noção relacional; do segundo, a noção de regra; e de ambos, a de dependência interna entre os elementos de uma cadeia fônica. Nesta medida, Saussure preocupou-se com uma “fonologia dos grupos”, que considerava a existência de certa inter-relação entre as sílabas, onde tanto era importante estudar a preparação mecânica e acústica dos órgãos para a emissão de um som subseqüente, quanto o era estudar a presença de resíduos das articulações anteriores no som recém-emitido. O parâmetro de seu estudo foi, portanto, um parâmetro sonoro e o lingüista dividiu-o em duas tendências: sons que se abrem e sons que se fecham.
Os sons que se abrem seriam aqueles que constituem um movimento explosivo. Os sons que se fecham, um movimento implosivo. A maioria dos fonemas poderia ocupar as duas posições, determinadas pelo contexto sonoro. Conforme Tatit, este “enfoque funcional” que Saussure deu à sílaba foi decisivo nas reflexões posteriores de Hjelmeslev e Zilberberg.
Hjelmeslev, um saussuriano convicto segundo Tatit, adota exatamente este sentido “categorial” atribuído à sílaba (ou seja, a sílaba é uma “classe munida de função”) e o expande no plano de expressão e no de conteúdo:
“Colhendo os resultados destes estudos e, portanto, já tratando a sílaba como categoria conceitual, Hjelmslev tinha como objeto a sílaba como categoria lato sensu. Não apenas a materialidade sonora produzida pela fala mas todas as manifestações dos mais diversos sistemas semióticos, compreendendo sempre os respectivos planos de expressão e de conteúdo.”[5]
Conforme Tatit, é a partir destas duas abordagens que Zilberberg estabelece as “coordenadas teóricas” que o levam da dimensão lingüística à dimensão semiótica em seus estudos sobre a silabação. Zilberberg retira da proposição de sílaba de Saussure, consecução de implosões e explosões na cadeia fônica, o seu modelo rítmico. Da proposição de sílaba de Hjelmslev, concebida como “categoria geral a ser articulada nos dois planos da linguagem”, retira uma equivalência entre ritmo e sintaxe que respondem pelo plano da expressão e do conteúdo, respectivamente. Mas, é importante salientar que, entendidos como novas categorias, tanto o ritmo como a sintaxe podem ser operados nos dois planos, de acordo com o enfoque adotado:
“Assim, uma modulação entoativa rege sintaxicamente uma seqüência de acentos, da mesma forma que o tormento causado pela perda de um objeto de valor e a alegria de sua recuperação perfazem um ritmo narrativo.”[6]
Partindo de toda esta reflexão, Zilberberg insere o ritmo na investigação sobre o tempo, que adquire diferentes dimensões, conforme supracitado, permitindo que a organização temporal do sentido seja determinada pela interação destas dimensões, como mostra Tatit nas análises de suas canções.
Estas dimensões temporais estão organizadas em categorias extensas e intensas.
A categoria intensa compreende as dimensões cronológica e rítmica, que se opõem. A dimensão cronológica relaciona-se com o fluxo sucessivo do devenir, estabelecendo uma ordem histórica onde há as noções de antes e depois. O tempo cronológico apresenta relações exclusivas, de onde se inferem separações ou polarizações. O tempo rítmico, por sua vez, opera neutralizando a sucessividade e recuperando intervalos desprezados na dimensão cronológica. Apresenta relações participativas, das quais se extrai uma tendência à simultaneidade. Tatit explica que o tratamento rítmico reduz o aspecto inexorável do tempo cronológico.
A categoria extensa é articulada pelas dimensões mnésica e cinemática. No modelo formulado por Zilberberg e utilizado por Tatit, as categorias intensas são sobremodalizadas pelas categorias extensas.
Quando o tempo mnésico incide sobre o tempo cronológico, o devenir sucessivo, que tende a converter o presente em passado irrecuperável, submete-se ao “controle mnésico da lembrança e da espera (como memória do futuro)”. O passado é, então, constantemente presentificado, detendo a fluência da dimensão cronológica. Há um efeito implosivo provocado pelo tempo mnésico sobre este último, que dá à sua evolução ininterrupta uma abertura decrescente no percurso sintagmático.
De forma contrária, a incidência do tempo mnésico sobre o tempo rítmico provoca uma abertura crescente neste percurso. O tempo rítmico se disjunta do tempo cronológico - diante do qual mantém “função neutralizadora” na ordem intensa, uma vez que faz coexistirem as impressões de simultaneidade e sucessividade, conforme visto anteriormente – e se conjunta ao tempo mnésico, instaurando o ritmo à distância e realizando a expansão.
A combinatória dos tempos mnésico e cronológico estabelece, portanto, a expansão da abertura decrescente, realizando a concentração (ou “expansão da pequeneza”). Por sua vez, a influência do tempo mnésico sobre o tempo rítmico expande a abertura crescente na cadeia sintagmática, realizando a extensão (ou “expansão da grandeza”). Concentração e extensão contêm em si as funções cinemáticas, na medida em que a concentração “luta contra a dispersão sonora provocada pela velocidade do tempo cronológico”, provocando a aceleração melódica, enquanto que a expansão é a responsável pela desaceleração do processo.
Tatit considera que a reflexão a respeito da sobremodalização de determinadas dimensões temporais sobre outras, desenvolvida por Zilberberg, é especialmente interessante para o estudo da temporalidade na música. Em contrapartida, explica ele, a melodia oferece um roteiro no plano de expressão daquilo que “a semiótica de hoje estabelece como relação básica entre descontínuo e contínuo do plano do conteúdo.” Nesta medida, Tatit propõe que estes tempos inter-relacionados, quando considerados em sua forma extensa, gerem dois tipos diferentes de progresso melódico: a concentração melódica – própria das canções velozes e causada pela atuação do tempo mnésico sobre o tempo rítmico – e a extensão melódica – própria das canções lentas e resultante da atuação do tempo cinemático sobre o plano de expressão de uma canção. O tempo cinemático rege a duração no plano superficial da canção que, por sua vez, relaciona-se com as oscilações “ligadas à vida interior do sujeito enunciativo” pertencentes ao plano do conteúdo.
Reconhecendo “Folhas Secas” como uma canção melodicamente extensa, se discutirá aqui como os processos característicos da extensão melódica contribuem para a construção de seu sentido.
“Folhas Secas” é uma canção que apresenta um andamento lento. Tatit explica que as canções de andamento lento tendem a privilegiar a duração que gera, por sua vez, a desaceleração. Na desaceleração, a emissão das notas é ampliada, fato que valoriza “os contornos melódicos do percurso sintagmático” e que, nesta medida, compatibiliza-se com letras que mostram um distanciamento entre sujeito e objeto. Este distanciamento também relaciona-se com a valorização do percurso narrativo, normalmente caracterizado por uma busca deste último pelo primeiro.
Na canção aqui estudada, efetiva-se a valorização do percurso narrativo, mas num sentido de afastamento do sujeito e do objeto, contrário ao supracitado. O “eu lírico” desta canção parece percorrer uma trajetória que se inicia com uma conjunção (no tempo, mas não no espaço) com o objeto pelo qual tem afeição e, ao final da narrativa, mostra a consciência de que estará em completa disjunção com ele (temporal e espacial) em um futuro talvez próximo:
“(...) Sei que vou sentir saudade
Ao lado do meu violão
Da minha mocidade.”
Dos três diferentes andamentos apresentados pelas três interpretações estudadas neste ensaio, a de Elis Regina é que tem o andamento mais lento. Esta desaceleração mais evidente caracteriza-a como uma interpretação em que o sofrimento e a dor do sujeito são muito intensos e o estado disjuntivo deste e seus objetos de afeição (a mocidade e a escola) está muito claro porque, ainda que a disjunção esteja temporalmente distante, o sentimento de perda já é presente. A interpretação dos autores, por sua vez, um pouco menos lenta, destaca um sentimento de nostalgia provocado pela certeza e pela espera de uma perda futura, diferentemente da perda sofrida na interpretação de Elis Regina que é sentida no “agora” de seu canto. Chico Buarque imprime à canção um andamento mais acelerado, o que, muito provavelmente, leva-o à utilização de um número maior de instrumentos, inclusive percussivos, em seu arranjo. Esta aceleração compõe uma interpretação menos intimista. Parece destacar-se, talvez um pouco contaminada pela celebração real do cantor na quadra da escola, um certo estado conjuntivo temporário do sujeito com o objeto e uma alegria remanescente em uma nostalgia já instalada neste sujeito.
Poder-se-ia dizer, portanto, que o canto de Elis Regina é o mais intensamente passionalizado. A passionalização de uma canção é gerada pelo seu desenvolvimento na direção horizontal, onde os estados de paixão decorrentes da perda ou ausência dos objetos são menos importantes que os vínculos que permanecem “em forma de saudade, esperança, desejo, enfim, valores investidos na duração”. A passionalização é a manifestação extensa da desaceleração. Conforme explica Tatit, a “desaceleração é sempre extensão que arrasta a obra para o campo da duração e do tempo vivido intensamente”.
A forma intensa da desaceleração, chamada tonalização, é desenvolvida verticalmente, onde se destacam os tons e as alturas das notas emitidas mais longamente sob a influência do tempo cinemático. A maior permanência nas notas, realizada em uma canção desacelerada, permite que haja um investimento nas oscilações de altura e que o sentido seja também estabelecido pelas ascendências e descendências do perfil melódico. Tatit explica que inflexões que não teriam relevância em contextos mais velozes passam a assinalar sua presença, marcando no espaço percorrido da tessitura o valor da duração.
Na tonalização, ocorre o alongamento dos percursos melódico e discursivo por meio das retenções vocálicas e das pausas, entre outros recursos interpretativos da canção. Este alongamento permite um “desvio de rota” que é exatamente a exploração do campo da tessitura. É como se o tempo maior utilizado para percorrer a trajetória pudesse ser também usado para um “passeio por outras regiões”. Este “desvio de rota” aumenta o tempo da espera ou da lembrança do sujeito que vive mais intensamente a disjunção com o objeto e a conjunção à distância com o valor deste objeto.
Em “Folhas Secas”, a interpretação de Elis Regina, mais intensamente passionalizada é também a que apresenta tonalização maior. A intérprete explora grandemente os sons vocálicos não só na medida em que aumenta sua duração, mas também na medida em que intensifica suas possibilidades de emissão, estendendo-os no campo da tessitura e oscilando suas alturas – as vogais mais longamente emitidas são as mais altas e as mais baixas. Em contrapartida, Nelson Cavaquinho, apesar de também imprimir à canção um andamento bastante desacelerado, não “verticaliza” com a mesma intensidade o percurso de sua interpretação, na medida em que não estende a emissão de grande parte de suas vogais, mas separa-as, conforme visto no capítulo anterior:
“Quando eu piso Em folhas sEcas
CaÍdas de u-ma mangueIra
Penso na mInha escOla
E nos poe-tas da minha esta-ção primeira”
A interpretação de Guilherme de Brito é mais tonalizada que a de Nelson Cavaquinho, pois sustenta mais longamente a emissão de suas vogais percorrendo maiores espaços no campo da tessitura. Já Chico Buarque, apesar de alongar a duração de seus sons vocálicos, parece não fazer aí maiores incursões, apresentando uma interpretação onde a marcação rítmica destaca-se tão fortemente quanto a alongamento de suas vogais. É evidente, porém, que em nenhuma das interpretações a passionalização e a tonalização são tão intensas e claras como na de Elis Regina.
Quando se abordam estas variações no eixo vertical da canção surgem dois modos de inflexão melódica, um que é chamado de movimento disjunto e outro chamado de movimento conjunto.
No primeiro caso, o perfil melódico vai se formando gradativamente (ou conforme Tatit, por “graus imediatos”) e pode-se dizer, por isso, que ele executa o percurso sintagmático que liga os dois extremos da inflexão. É o que acontece com as frases musicais do refrão de “Folhas Secas”, que se caracterizam por uma gradação descendente. A primeira frase, por exemplo, começa na nota G e termina em B (abaixo da pauta). A segunda, começa em E e termina em A (também abaixo da pauta), o que não só caracteriza uma tendência descendente nas próprias frases, como no refrão em si, visto que cada frase começa um pouco mais abaixo do que havia começado a frase anterior a si.
Descaracterizando esta continuidade e regularidade, há, entre a última nota emitida de uma das frases do refrão e a primeira nota da frase subseqüente um salto descontínuo, que caracteriza o segundo movimento supracitado. A primeira frase do refrão, por exemplo, termina em B e a subseqüente começa em E, caracterizando um deslocamento ascendente de dois tons e meio. O mesmo deslocamento ocorre entre as segunda e terceira frase, que também apresenta um salto ascendente no campo da tessitura de dois tons e meio. O salto repete-se entre todas as frases do refrão. Este deslocamento espacial no campo da tessitura - diretamente relacionado com a duração da nota que se prolonga -, diferentemente dos graus estendidos de maneira regular pelo movimento contínuo sobre o percurso sintagmático, não preenche este percurso, mas o suprime e é, por isso, chamado também de síncope.
Estes movimentos, verificados até aqui na dimensão intensa, quando estudados em sua forma extensa, isto é, considerando toda a amplitude da canção são chamados, respectivamente de gradação e transposição. A gradação corresponde a um movimento conjunto de ascendência ou descendência “ordenadas em progressão contínua ao longo de um trecho amplo da canção e a transposição é o movimento descontínuo que se refere a grandes contrastes de tratamento melódico, “decorrentes (...) da mudança de registro no campo da tessitura.”
No decorrer de toda a primeira parte da canção “Folhas Secas”, poder-se-ia dizer que há o movimento extenso da gradação descendente, já que, apesar dos saltos intervalares ocorridos na dimensão intensa, a configuração geral aí estabelecida é predominantemente regular. Seria pertinente relacionar a esta progressão gradativa no campo da tessitura o estado disjuntivo que vem se anunciando na letra. Parece haver uma espera e uma preparação emocional do “eu lírico” para a disjunção definitiva – parcial até este momento - com seu objeto de afeto.
Quando esta perda do objeto se efetiva (Quando o tempo me avisar/ Que eu não posso mais cantar...) há a transposição no percurso melódico, realizada entre o refrão e a segunda parte. A última nota emitida pelo primeiro é o G (abaixo da pauta) e a primeira nota emitida pelo desdobramento da canção é o B, caracterizando um salto intervalar ascendente de valor maior que uma oitava. Realiza-se, então, o grande movimento disjunto e estabelece-se o eterno vínculo do sujeito com a falta e com a saudade do objeto de desejo. A estabilidade desta condição possivelmente relacione-se com as frases musicais que formam a segunda parte refrão e que constituem um percurso melódico ondular ou modulado, que ascende e descende regularmente no campo da tessitura.
A gradação, ao mesmo tempo que vai mantendo a regularidade de um caminho descendente na primeira parte desta canção, também prepara o enunciatário para o rompimento com esta regularidade realizada pelo salto intervalar para a segunda parte. Pode-se dizer que ela gera neste enunciatário uma tensão e uma expectativa em relação a sua supressão que correspondem à espera pela conjunção definitiva com a disjunção do “eu lírico” de seu objeto de afeto. Em contrapartida, este movimento gradual do progresso melódico poderia ser associado ao percurso sintagmático percorrido pelo sujeito de afastamento contínuo e crescente de seu objeto desejado. Neste sentido, pode-se considerar que ambos os processos de variação tem igual relevância na elaboração desta canção, tendo funções semióticas complementares e interdependentes.
4. Geração
Luiz Tatit comenta em seu livro uma entrevista dada por Algirdas J. Greimas, na década de oitenta, em que ele declara que “a base de um fazer semiótico é o programa narrativo” e que “é preciso habituar as pessoas a pensar que visam (sempre) alguma coisa”. Ao fazer esta declaração, que conforme Tatit pode parecer redundante a todos os que conhecem a semiótica, Greimas destaca a pertinência de um estudo das estruturas mais profundas do programa narrativo e do estudo do campo da paixão, além do campo da ação.
Nesta medida, tanto a paixão pode ser depreendida do discurso como um todo, “abarcando as funções de sujeito, de objeto e a própria relação de junção entre eles”, quanto, no plano mais profundo, pode delinear uma “sintaxe rudimentar” em que existam um protótipo da função de sujeito e um protótipo da função de objeto. Seria como se as paixões fossem “um reflexo semântico das prefigurações sintáticas”.
Enquanto Greimas enfoca, muito especialmente, em suas reflexões, o programa narrativo, Zilberberg destaca o conceito de anti-programa que, no nível profundo, produz as primeiras manobras com a tensividade. Explica Tatit:
“Nessa instância, o conceito recebe sua formulação temporal e passa a ser representado pela <parada> ou interrupção, evitando, assim, a metalinguagem espacializante que traduz as oposições em recortes, discreções ou delimitações. Se a <parada> corresponde ao anti-programa ou, em seu nível, à interrupção do continuum fórico, a <parada da parada> corresponde ao programa narrativo ou à retomada da foria na forma já direcionada do devenir.”[7]
Na medida em que Zilberberg insere o anti-programa na investigação semiótica, acrescenta à proposta de Greimas alguns aspectos que haviam ficado pendentes em sua reflexão, como: “a identificação da tensividade fórica com uma dimensão espaço-temporal profunda de onde emanam valores sintáxicos primordias que serão investidos nos níveis superiores”; a subordinação de todos os estratos gerativos, inclusive do plano tensivo, à instância da enunciação; e a recuperação da forma hjelmsleviana, comum aos planos de expressão e conteúdo que considera especialmente em sua reflexão a categoria silábica e a oposição universal entre elemento intenso e elemento extenso.
Zilberberg introduz, no percurso gerativo, um nível missivo, que pretende explicar a passagem das “modulações tensivas para as discretizações modais e actanciais”. O conceito de missivo desdobra-se em remissivo e emissivo, onde o primeiro refere-se à <parada>, às contenções ou saliências, e o segundo, à <parada da parada>, às distensões ou passâncias.
A partir da introdução do nível missivo, o fazer enunciativo torna-se uma prática rítmica que “alterna concentração e expansão em suas múltiplas formas de multiplicação da linguagem”. Em determinado momento do desenvolvimento de sua teoria, e baseando na epistemologia de Hjelmslev, a semiótica adotou intensamente a inflexão sintagmática na reflexão sobre a construção do sentido, deixando à parte o estudo dos modelos fonológicos. Mas a necessidade de definir as condições da geração deste sentido conduziu os estudos teóricos para o campo da tensividade, onde se constatou uma “vibração rítmica que ora se concentra e ora se estende.” Retomou-se, então, o estudo da categoria silábica que, na verdade, já havia sido estabelecida pelo próprio Hjelmslev como uma categoria pertencente tanto ao plano de expressão quanto ao plano de conteúdo. A forma anteriormente estabelecida por Sausurre para dar conta da substância fônica da cadeia falada, encontrou, por fim, sua correspondente no plano do conteúdo, neste momento do desenvolvimento da teoria semiótica. Como a sílaba, os níveis tensivo e missivo, que também alternam concentração e expansão, constituindo um ritmo, podem explicar os dois planos da linguagem.
Este ritmo apresenta uma evolução bastante complexa no nível do conteúdo, onde os resultados de uma primeira escolha entre valores remissivos ou emissivos instruirão as modalidades e os actantes dos níveis subseqüentes e estimularão a ação contrária dos valores recessivos. Veja-se: a apreensão da foria como totalização decorre de uma escolha dos valores remissivos, que concentram e contêm o fluxo espaço-temporal, gerando uma condição de fechamento e espera. Esta condição provoca, no nível aspectual, uma reação dos valores recessivos que buscam transgredir estes limites em favor da continuidade do fluxo supracitado. Da mesma maneira, a apreensão da foria como infinitização, advinda do fazer emissivo, com sua tendência à expansão do mesmo fluxo e uma condição de abertura e distensão, gera sua própria negação, a <parada>. Ou, como explica Tatit, “antes de definir um objeto como seu destino narrativo, o sujeito modal procede à negação do excesso ou da falta em busca de uma medida de equilíbrio”, onde, obviamente, a falta relaciona-se aos valores remissivos e o excesso, aos emissivos. Para Zilberberg, na fase da resolução aspectual das tensões fóricas, o sujeito conjunta-se com a “negação do excesso ou com a negação da falta”.
Estas “transvalorações” sucessivas não se apresentam somente como processos de negação dos valores missivos, mas também são processos de conservação destas categorias no nível discursivo. Assim, na instância enunciativa, tem-se o valor remissivo como regulador rítmico e criador do tempo, na medida em que “concentra, nominaliza e modaliza”, e tem-se o valor emissivo como criador de espaço, na medida em que “difunde, verbaliza e narrativiza”. Nesta instância, as funções remissivas instalam uma descontinuidade entre sujeito e objeto, enquanto que as funções emissivas destacam a relação de identidade entre ambos.
Portanto, a oposição missiva estabelecida por Zilberberg, ao transitar do plano do conteúdo para o plano de expressão e vice-versa, constitui, segundo Tatit, “um verdadeiro modelo de predicação” que instrui os níveis subseqüentes, “tendo como resolução figurativa (nestes planos) a noção de <parada> e <parada da parada>”.
Folhas Secas
a) Análise da letra
O nível discursivo da letra da canção “Folhas Secas”, conforme já foi discutido, apresenta um afastamento gradativo do sujeito enunciativo de seu objeto de afeto e desejo. Este objeto é, simultaneamente, a mocidade e a escola, na medida em que a existência da primeira permite a proximidade e o convívio com a segunda. O afastamento do sujeito destas duas “manifestações” de seu objeto é contínuo e gradativo ao longo de todo o refrão, como se houvesse nesta primeira parte uma espera pela <parada>, que se efetiva na segunda parte da canção.
Há, na primeira parte de “Folhas Secas”, uma gradativa nostalgia da conjunção com o objeto que se concretiza no desdobramento da canção. Esta nostalgia pressentida no refrão acontece em dois momentos. Nos quatro primeiros versos, o sujeito, ainda que usando uma temporalidade no presente, encontra-se espacialmente longe de seu objeto querido. Em um segundo momento, constituído pelos quatro últimos versos, há um afastamento temporal do “eu lírico” em relação à escola, por meio da lembrança de momentos passados, expressos pelo uso do verbo no Pretérito Perfeito do Indicativo (Não sei quantas vezes/ Subi o morro cantando...) acompanhado de Gerúndio. O Presente do Indicativo no último verso do refrão não invalida a predominância do passado, tendo possivelmente seu efeito diminuído pelo significado do Gerúndio que lhe segue: “E assim vou me acabando”.
Na segunda parte da canção, estabelece-se a duração do estado disjuntivo no futuro, ou seja, a impossibilidade definitiva de conjunção com o objeto.
Estes elementos do nível enunciativo instauram a narrativa do anti-programa, regida pela <parada> e na qual, teoricamente, predomina um /querer/ estar perto do objeto durante todo seu percurso (ou anti-percurso) narrativo. Porém, em “Folhas Secas”, a categoria modal dominante é a do /saber/, que se manifesta no nível discursivo como a certeza da impossibilidade de cantar e de fazer parte da escola de samba querida como o fazia anteriormente:
“(...)Sei que vou sentir saudade
Ao lado do meu violão
Da minha mocidade...”
O fim da mocidade e o afastamento da escola pelo sujeito no nível enunciativo e o afastamento entre destinatário e destinador no nível narrativo são sintomas da predominância de um estado passional disfórico e de valores remissivos nos estratos mais abstratos do texto.
A disjunção narrativa corresponde a uma ruptura, a uma <parada> no interior do fluxo fórico que estabelece a continuidade entre sujeito e objeto. Os valores remissivos impõe limites ao continuum deste fluxo e o limite expresso na enunciação é a passagem do tempo cronológico que traz o fim da mocidade e interrompe o convívio do poeta com a escola.
Neste processo, não há um sujeito volitivo que “quer” buscar seu objeto de desejo novamente, mas um sujeito deôntico que se conforma com a irreversibilidade de seu destino, que “sabe” que seu percurso está determinado por um /não poder ser/. Este /saber/ determina a nostalgia do continuum e a perspectiva da instalação do estado disfórico definitivo desde o início da enunciação.
b) Cifra modal e cifra silábica
A silabação fornece parâmetros rítmicos para os modelos sintáticos do plano do conteúdo, na mesma medida em que o nível tensivo-fórico devolve ao plano de expressão “critérios descritivos altamente compatíveis com o devenir da sonoridade.”
Estas relações são identificáveis em “Folhas Secas”. Partindo-se do pressuposto que, nesta canção, a modalidade /não poder ser/ converte um valor remissivo e que este valor instaura definitivamente a impossibilidade da conjunção sujeito e objeto, pode-se fazer uma analogia com a teoria da silabação, onde /não poder ser/ traduz, conforme Luiz Tatit, uma seqüência implosiva (>>), na medida em que esta impossibilidade se revela na obstrução da narrativa, determinada pela contensão da continuidade do fluxo fórico.
c) Análise da melodia
O primeiro sintoma, na construção melódica, de um comprometimento do cancionista com os valores remissivos deveria se manifestar na opção pelo anti-programa que, por meio da interrupção do continuum fórico e por um movimento involutivo que privilegiasse a <parada>, repercutiria na concentração melódica, o que resultaria em um andamento acelerado da canção.
Alguns recursos estabelecidos pela escolha dos valores remissivos, já comentados no segundo capítulo, seriam, na forma intensa, os saltos intervalares, que em “Folhas Secas” ocorrem entre as frases musicais do refrão, e a transposição, na forma extensa da organização do material melódico, que, conforme Luiz Tatit, determina um forte contraste de exploração do campo da tessitura que ocorre, mais comumente, entre a primeira e a segunda parte da canção, como se dá no exemplo estudado.Estes recursos, pela velocidade com que impõem mudanças de altura, suprimem etapas que poderiam ser percorridas no caminho melódico da canção, estabelecendo o processo acelerado que confirma a velocidade como expansão e nega a duração.
Mas, apesar de “Folhas Secas” apresentar estas saltos intervalares e a transposição stricto sensu determinados pelos valores remissivos predominantes, a canção não será veloz, mas lenta, fato resultante de outros recursos expostos a seguir.
Para cada salto intervalar, existe, no plano intenso, uma compensação estabelecida pelos graus imediatos na canção, que recuperam a duração omitida na passagem brusca de uma nota a outra. Assim, em “Folhas Secas” tem-se frases musicais em graus sucessivos descendentes que seguram o andamento da canção, no refrão. No plano extenso, para compensar a velocidade imposta à canção pela transposição, todo seu desdobramento compõe-se de uma progressão gradativa, que reconstitui passagens suprimidas na ascensão súbita de uma nota a outra, e que leva à sua desaceleração.
Ainda que, em “Folhas Secas”, a escolha dos valores remissivos seja evidente, a desaceleração provavelmente ocorra por um percurso contrário ao que estes valores normalmente estabelecem para ser percorrido. O sujeito, aqui, não espera e não busca com urgência a compensação dos valores carentes, mas tem plena consciência de que deles se afasta gradativamente e acomoda-se na sua condição disjuntiva. A transposição melódica entre as duas partes da canção ocorre exatamente no momento em que a já sabida disjunção se estabelece definitivamente no plano discursivo, no futuro que lhe aguarda.
A opção passional da perda realizada em “Folhas Secas” determina que os valores emissivos fiquem latentes, favorecendo o predomínio de seus valores opostos. Mas, mesmo latentes, possivelmente colaboram para a reconstituição da duração na canção, contidos no que Greimas definiu como a nostalgia que reconstrói a experiência e, quando o faz, repara os conteúdos disfóricos e as imperfeições, projetando sobre um outro tempo “o que poderia ter sido a conjunção ideal entre sujeito e objeto”[8]. Para Greimas, explica Tatit, quando a nostalgia incide sobre o futuro comporta conotações eufóricas, que na canção estudada não se manifesta somente no futuro da segunda estrofe, mas também no presente da primeira, pela certeza que o sujeito tem da perda que se instalará em sua vida. Neste sentido, os valores emissivos reforçariam a disforia, mas contribuiriam, simultaneamente, para o estabelecimento do andamento desacelerado da canção.
A partir do modelo de análise de Luiz Tatit, buscou-se aqui, portanto, diferentes perspectivas para a leitura da canção “Folhas Secas”, que envolvem as questões melódicas e líricas, num âmbito mais geral, e, mais especificamente, “os traços que particularizam o modo de entoar em cada grande cancionista – tudo aquilo que ele ‘pronuncia’ em sua ‘dicção’ singular”, e que permitem uma abordagem ampla que trabalhe com a proliferação de significados.
[1] TATIT, Luiz. Semiótica da canção - melodia e letra. São Paulo, Escuta, 1999.
[2] TATIT, Luiz. Semiótica da canção, p. 15.
[3] GREIMAS, A. J. Sémantique estruturale – recherche de méthode. Paris, Larousse, 1966.
[4] ZILBERBERG, C. Raison et poétique du sens. Paris, Presses Universitaires de France, 1988.
[5] TATIT, Luiz. Semiótica da canção – melodia e letra, p. 68.
[6] TATIT, Luiz. Semiótica da canção – melodia e letra, p. 69.
[7] TATIT, Luiz. Semiótica da canção – melodia e letra, p. 131.
[8] TATIT, Luiz. Semiótica da canção – melodia e letra, p. 151.
Referências bibliográficas:
GREIMAS, A. J. Sémantique estruturale – recherche de méthode. Paris, Larousse, 1966.
TATIT, Luiz. Semiótica da canção – melodia e letra. São Paulo, Escuta, 1999.
ZILBERBERG, C. Raison et póetique du sens. Paris, Presses Universitaires de France, 1988.
* Adriane Rodrigues de Oliveira é doutoranda do curso de pós-graduação em Literatura da UFSC.